a Ricardo Reis
comecemos o dia a oriente junto às ravinas
com as mãos envoltas em anéis de água
e olhemos o azul e acetinado manto
e fiquemos ausentes e livres
e suspensos
e com as mãos envoltas em anéis de água
abracemo-nos simplesmente
e continuemos a olhar o azul e acetinado manto
como se o tempo fosse este momento
assim liso e pasmado
e afinal não nos abracemos, mas olhemos
simplesmente os fios de água na pele
deste dia diferente e fiquemos assim
contemplativos e ausentes
enquanto a água corre e não morre
*
passam os últimos minutos
e passam silenciosos e sombrios
e ainda os últimos rouxinóis
e passam afónicos e aflitos
e passa uma orquestra estoirada
mais as horas com passo apressado
e a ventania dos quintais
e as beatas dos cigarros
e um velho abrigado à sombra
e uma criança que vem da folia
e passam as uvas do pomar
e passa o casal da mercearia com apressado passo
e também o poeta da sílaba ardida
e ainda o músico com uma flauta em chamas
e passa o frio
e passa o temporal
mais as flores que enfeitaram o dia
e passa a pressa
e passa o vagar
e passa o tempo
e passa a pausa
e também os namorados enlaçados
e ainda os que já não se enlaçam
e passam cestos com beijos
e também um ramo de rosas abatido
mais os copos roubados ao jantar
e ainda as garrafas esganiçadas aos gritos
e também as frases derrotadas
e passa a espera
e a espera passa
e passam os tambores gelados
e também um rio em lágrimas
e ainda outro rio em lágrimas passa
e passa uma cascata de ruídos
mais um barco estilhaçado
e um pescador com passo lento
e ainda uma oração vencida
e passa a notícia amparada pelo jornal
e também passa o jornal viúvo da notícia
e passa um cão a morder o país
e o país mordido pelo cão passa
e ainda um livro cativo na garganta
e passam as palavras condenadas
e o silêncio num tabuleiro de sons desfeitos
e ainda o tempo e os cheiros
e também as cores combalidas
e os sabores consumidos
numa taça de romãs a arder
e passa o riso de um pássaro migrante
e o riso de um pássaro migrante passa
e também o choro ofegante de uma árvore
e uma mulher abraçada a uma janela
mais um homem com o telhado aos ombros
e ainda um circo sem palhaço
e passa uma roda
e outra roda passa
e também a última carruagem
dum comboio alucinado
e ainda uma urgência pregada no peito
duma flor estoirada
e passa uma praça
e passa um jardim
e ainda um campo imenso
de gerberas brancas
e uma guerra cabisbaixa passa
e também uma paz comovida
e passa uma religião
e outra religião passa
e ainda uma língua ao lado de outra língua
agarradas a uma Constituição
e passam tratados
e passam leis
e também uma Declaração amarrotada
e ainda um manto de gente
com a emoção em cinzas
e passa a ardilosa razão
e os soluços de uma confissão de amor
e passa moribunda a confissão de amor
e passa ela
e passa ele
e vem a noite
e eles continuam a passar
e rompe o dia
e eles ainda passam
e trazem alfabetos e segredos
e no colo seguram o medo
e passa a esperança
e passa a vida
e ao longe no mar um navio passa
e um navio passa ao longe no mar
e passa tão longe o mar desse navio
e de repente
passa um passo de encontro ao navio
e de repente
outro passo passa
de encontro ao mesmo navio
e também o caminho e a correria
e passo eu e corro para o caminho
e tu passas comigo a caminho do navio
passas comigo e tudo levamos nos passos
passas comigo
e tudo fica
e tudo fica
*
**
Ângela de Almeida é uma investigadora, ensaísta e poeta portuguesa, natural da cidade da Horta, onde viveu até aos 16 anos de idade. Estudou em Lisboa, sendo doutorada em Literatura Portuguesa e, nesse contexto, colabora com organismos regionais e nacionais, participando também em colóquios e congressos, promovidos por instituições portuguesas e europeias. Anteriormente, lecionou no Ensino Secundário e no Ensino Superior, foi editora e assessora para a Cultura. No domínio do ensaio, é autora de Retrato de Natália Correia (1993, Círculo de Leitores), vários estudos introdutórios a obras da mesma autora, A simbólica da ilha e do Pentecostalismo em Natália Correia (2019, Letras Lavadas) e Natália Correia, um compromisso com a humanidade (2019, em publicação). Tem, no prelo, o ensaio, Censura e estilo na Literatura Portuguesa do século XX, resultante da conferência, que apresentou na Universidade Sorbonne-Collège de France. No domínio da poesia, publicou: sobre o rosto (1989), manifesto (2005), a oriente (2007), caligrafia dos pássaros (2018). Publicou também a narrativa poética, o baile das luas (1993) e dois livros de viagem.
Curadoria de Tiago Alves Costa.
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