Três assuntos diferentes mas relacionados provocam estas notas. Um é a recente campanha eleitoral, quase bélica, das eleições “plebiscitárias” catalãs; outro, a edição pela Real Academia Galega duma listagem de apelidos galegos castelhanizados e retornados à sua versão galega “normalizada”; o terceiro, o VI Congresso da Associação de Escritoræs em Língua Galega, celebrado em Pontevedra o passado 26 de setembro. Começando pelo primeiro é preciso fazer uma comparação entre como os políticos e os locutores dos meios de comunicação de toda Espanha se esforçaram por pronunciar à catalã os apelidos (não vamos a mais palavras) dos políticos catalães frente aos dos galegos, e podemos estendê-la aos esforços dos media extra-espanhois, nomeadamente os portugueses. Entre-se em Youtube e recolham-se os trechos de manifestações de fala ao longo dessa campanha. Vá-se ao sítio da RTVG na web e ponha-se ouvido. Quem faça isto último logo verá que triste é a situação da língua galega, que ruim porvir lhe espera à matriz do sistema galaico-luso-africano-brasileiro.
Ao longo da contenda eleitoral nunca se escutaria pronunciar Jordi Pujol como Khordi Pukhol. Os seus grandes inimigos (os de “Jordi, enano, habla castellano”) fizeram sempre o intento de pronunciar pelos menos um aceitável Yordi Puyol. No entanto, ninguém tentou pronunciar Rajoy ou Feijóo como Rashoi ou Feishó. Os locutores das cadeias francesas e inglesas lutaram por dizer Ragggoi e Rahoi respectivamente. Os da RTVG teimaram no absurdo de khekhear a fundo. Nesses dias volveu ao recordo de muitos galegos conscientes aquele chiste famoso do Carrabouxo contra a inconsciência linguística do governante galego que zelosamente guarda no armário político o seu avô galeguista: “Soy Mariano Rajoy y voy al pazo de Raxoi”.
Há tempo que a Real Academia Galega recebeu encargo, da Junta de Galiza, para se manifestar acerca da correção dos apelidos galegos. Podemos pôr em questão se a RAG deve ser ou não o órgão oficial encargado de matérias de idioma. Repassando a lista dos seus membros logo se vê que boa parte deles não tem a mínima autoridade a justificar tal encargo, mas sim há outros que a têm. Detenhamos logo a crítica neste ponto, concedamos-lhe a virtude (“Valor se le supone”, como na cartilla da mili) e vaiamos à listagem confeccionada.
Tem uma crítica difícil de rebater pelos académicos: está feita para adaptar os apelidos galegos a uma forma gráfica que jamais tiveram. Por exemplo, faz normativo Sanxurxo a partir de agora quando sempre (desde que o galego se escreve) foi Sanjurjo; ou Xestoso, quando sempre se escreveu Gestoso; para não falarmos dos mencionados Rajoy e Feijoo, os quais aparecem na lista como Raxoi e Feixó. Contudo, a Academia acerta noutros casos como Seixo ou Ameixeiras.
¿Que pode haver trás do empenho académico acientífico? Política.
Sim, e que ninguém se assombre: há política guiada pela mesma falta de visão que levou o galego à norma oficial. Essa falta de visão faz com que o mundo inteiro imite os absurdos de Rakhoi e Feikhó.
Como –estou seguro– a maioria do público leitor de Palavra comum é gente nova (benditos os que me vão pagar a pensão), quisera que me permitissem navegar no tempo para trás e situar-nos na altura em que redigimos (e desenhamos) o original de O galego hoxe, a gramática mais vendida jamais na Galiza. Encargou-lha La Voz de Galicia à “equipa de língua” da Agrupação Cultural O Facho. Por fortuna ainda somos deste mundo todos os intervenientes naquela aventura de há quarenta anos, e podemos falar.
Nesse momento histórico, quando o grito das manifestações era “Galego na escola”, enfrentamo-nos à questão gráfica e decidimos optar pela solução que o professor Ricardo Carvalho chamava “demótica”. Partíamos duma absoluta castelhanização, uma escolarização na que só importava a forma visível do castelhano; ainda mais, durante séculos a educação administrada pelo Estado Espanhol na Galiza negara a existência de Portugal (ainda lembro o professor de Literatura do liceu que, falando ao voo de autores portugueses, mencionava Eca de Queiros, incapaz de pronunciar sequer Esa de Queirós).
Por tanto, e de acordo com o editor, armamos aquelas quase 200 lições dum jeito “pre-autonómico”. Ora, fizemo-lo com a advertência firme de que o galego não se devia escrever assim porque sempre mostrara na escrita formas menos simples, distintas das castelhanas. Dois membros da equipa, o José Maria Monterroso Devesa e eu, embora sendo novos, levávamos muitos anos de contato com a realidade dum galego transcontinental, universal, e usávamos a grafia histórica.
Nessa altura já começara a guerra entre enxebristas e lusistas. Todos mantínhamos que o importante era elevar o idioma de categoria social, começando por metê-lo na escola e nos meios de comunicação. Ninguém colocava a hipótese de abandonar a morfologia e a fonética galegas. Mas alguns advertíamos das consequências de escrever em demótico: uma delas, que a gente vise o iota galego como jota castelhano, e em paralelo os fonemas ge e gi.
A batalha seguiu, intervieram figuras do peso mundial de Rodrigues Lapa e Guerra da Cal, junto com Carvalho, e, frente a elas, moviam-se jogadores de segunda divisão que não viram mundo nem pelo furado da porta. No meio, apareceu uma geração de professores novos que tentaram as “soluções de compromisso” para a grafia do galego.
Essas soluções trariam duas vantagens para os alunos da matéria: a puramente científica (as coisas são como se podem demonstrar) e a político-cultural (a bandeira visível duma língua é a sua grafia independente). Esta segunda, no caso galego, levar-nos-ia à aproximação gráfica, facilitadora, do mundo cultural ao que pertence naturalmente a Galiza, que não é o hispano-americano pois o castelhano é língua imposta, a ferro e crucifixo (a Igreja Católica muito ajudou a serem os galegos “un pueblo de almas rendidas”).
Dois digníssimos galeguistas míopes que não tinham viajado, Pinheiro e Filgueira, levaram a Galiza a que hoje triunfem Rakhoi e Feikhó; a que se mantenha o absurdo de “Yo soy Rakhoi y voy al pazo de Rashoi” (como o deveria ter escrito o meu colega –da engenharia de Telecomunicação– Carrabouxo). O reintegracionismo resiste desde a fortaleza da AGAL, mais não tem audiência pública. E, no entanto, os galegos teimam em que os seus filhos aprendam uma língua impossível de pronunciar com jeito como é o inglês: pelo visto, os meninos podem aprender os sons corretos de jumping ou Geology mas nunca os de juntoiro ou de gentalha. Nascem com os neurônios prontos para imitarem fala alheia e sem sinapses para a própria…
¿E pode ter esta diglossia tremens alguma saída racional?
Retornemos a Pontevedra em tarde de bruma outonal. Entremos numa sala que permite ver a ponte nova do Lérez. Participemos na discussão sobre a Lusofonia que mantêm duas dúzias de escritores em galego. Ouçamos o que dizem. Resumamos.
Alguém recorda que o atual presidente da RAG acusava o professor Manuel Rodrigues Lapa de “colonialista”, pois o “português mais galego do mundo” (frase de Lapa sobre si) incitava os escritores galegos a se abrirem à comunidade lusófona escrevendo em português normativo… mas conservando as peculiaridades léxicas galegas. E ainda hoje mantém tal tese o senhor Alonso Montero, ou Afonso Monteiro segundo a listagem que fez a entidade presidida por ele.
Dentro da “Irreal Academia do Impaís” há outras personagens, como o senhor Lorenzo (Lourenzo segundo lista que ele assinou), às que lhes faz mal sentirem falar de Carvalho ou de Guerra da Cal, quem praticaram o ditado de Lapa num formato que se aproxima da morfologia do galego, sendo fácil de entender pelos luso-escreventes.
¿Devemos seguir a suposta auctoritas desses académicos incoerentes, que mantêm o “espírito da colónia” (da Castela) nos seus apelidos? Obviamente, não.
Mas hoje está pode-se ativar com vontade política a Iniciativa Legislativa Popular Paz Andrade, em memória do académico empresário com muita geografia ao lombo, defensor da galecidade e da galeguia mundial. Na possibilidade de termos o português como língua do bacharelato na Galiza, ¿como vão reagir as mentes ágeis do alunado ante a rentabilidade duma grafia galega demótica, “não necessária”?
No fundo da grafia castelhana do galego há uma visão da Espanha desde a Caverna Madrilena (que eu faria mais extensa, com o Ave pelo meio: a Caverna Madrileno-Sevilhana). Nessa visão, a Galiza é uma província como as Astúrias, sem direito mais que a “dialeto”, como o bable, escrito com grafia “nacional”. Outra grafia, próxima da do português “separatista” é um atentado à unidade da Espanha.
Todos os escritores da reunião de Pontevedra aceitaram a ideia da “democracia gráfica” pela que advogaram assinaladamente Vítor Vaqueiro e Alfredo Ferreiro:
Ofende a razão que se obrigue os escritores a escreverem o galego com uma grafia chocante para qualquer pessoa com conhecimentos linguísticos e vontade de projeção ao mundo.
É uma vergonha que os concursos literários na Galiza estabeleçam nas suas bases a rejeição das obras apresentadas se não se adaptarem às normas gráficas da RAG.
Ofende a razão que a Junta negue a compra de exemplares para as bibliotecas de obras que não estiverem escritas em “normal”.
(Por vezes convém lembrar aos mais papistas que o Papa os atrevimentos gráficos demóticos de algum gênio da Literatura Castelhana como Juan Ramón Jiménez, felizmente fracassados)…
Nas conclusões do Congresso ficou claro que a AELG deixa em liberdade absoluta os seus membros para elegerem o formato gráfico do galego no espaço de publicação de cada um dentro do sítio da Associação na web; e reclamar dos administradores da Cultura da Galiza essa mesma liberdade.
Esperemos que a Universidade (onde devem mandar razões, não ideologias) entre no jogo de democracia gráfica que promovem os escritores. Os velhos enxebristas culpáveis de trinta anos de atraso no desenvolvimento do galego –como língua à defensiva dentro dum sistema diglóssico– já passaram à Historia ou estão no seu declínio profissional. Das faculdades saem filólogos capazes de viajar e manejar grandes bases de dados. A Sociolinguística já não é curiosidade mas ciência consolidada.
Façam-se estudos e demostre-se a rentabilidade duma grafia do galego comum com a da Lusofonia. No entanto, que ninguém reprima aqueles autores que optarem por experimentar com códigos coerentes mas diferentes. Façamos país do Impaís Desnortado.
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