– Palavra Comum: O que é para ti a música? E o teatro?
– Gonçalo Guerreiro: Ambos fazem parte desta necessidade que tenho de representar e reinventar a vida. Ao fazê-lo sinto que lhe dou um sentido mais honesto. O teatro permite-me integrar a realidade social, compreender melhor os seres humanos, exaltar as suas paixões e eventualmente denunciar situações que me incomodam. Com a música tenho uma relação mais íntima. A música canaliza as minhas emoções numa outra esfera e faz apelo a uma existência mais sensitiva e pessoal.
Um espectáculo de teatro envolve várias pessoas e tem um processo de produção lento. Mas eu tenho esta ansiedade de produzir com regularidade, de concluir os processos criativos e chegar a um resultado final com relativa rapidez. A música satisfaz-me esse desejo muito mais rapidamente que o teatro. A composição de uma canção é mais imediata e só me envolve a mim. Quanto à gravação de um disco ou a preparação de um concerto, isso é outra coisa…
– Palavra Comum: Como entendes -e practicas- o processo de criação artística?
– Gonçalo Guerreiro: Normalmente parto de uma ideia ou um tema. Este “princípio fundador” tem que ser muito sugestivo e evocador porque é o que vai motivar o desenvolvimento de todo o processo. Depois passo alguns meses a viver com este estímulo e vou anotando tudo o que dele possa derivar. Passo a relacionar-me com o mundo através daquilo que estou a criar. Depois desta fase, defino uma data para começar a trabalhar a sério, ou seja, dedicar uma boa parte do dia a concretizar as ideias e a criar uma base teórica do trabalho. A fase seguinte é a da materialização e construção física da obra no final da qual se confronta com o espectador. Tudo isto tem prazos definidos desde o início e pode levar entre 6 meses e um ano.
– Palavra Comum: Como conjugas a interacção entre música e teatro, no teu caso? Achas que são linguagens complementares ou exigem percursos diferenciados?
– Gonçalo Guerreiro: Possuem técnicas diferentes, mas a génese é idêntica. Estou convencido que a exaltação que o teatro produz pode ser a mesma da música, da literatura, da dança ou das artes plásticas. A diferença é que se pensarmos em termos de movimento, som, vídeo, texto, figurinos, cenografia e adereços o teatro é muito abrangente, tem lugar para todas as formas de criação artística. No Elefante Elegante os espectáculos que criamos têm um fio condutor que é apresentado através da gestualidade e da eloquência das imagens. É um teatro que desejamos que seja uma obra de arte total, no sentido de integrar várias formas de expressão. Fazemos espectáculos a partir de acções físicas e essas acções são conduzidas pela música. Trabalhamos muitas vezes com música instrumental e para isso colaboram connosco vários compositores competentes para esse tipo de trabalho. Usamos todo o tipo de música.
O texto costuma estar presente sob a forma de poemas. As palavras não têm a função de guiar a acção, funcionam como um estímulo literário e sonoro que pretende dar densidade ao corpo artístico.
No meu caso, pelo momento, a música e o teatro levam percursos paralelos e independentes ainda que se cruzem esporadicamente. Gostaria de um dia ter competência suficiente para assumir a composição musical de um espectáculo de teatro por um lado, e por outro de encenar os meus concertos coa mesma exigência de um espectáculo de teatro.
– Palavra Comum: Como se combinam -ou se deveriam combinar- Arte(s) e Vida?
– Gonçalo Guerreiro: Acho que existe uma confusão muito grande entre arte e entretenimento. A diversão é um aspecto fundamental da vida, mas essa não é a função da arte. O entretenimento é alienante, afasta o indivíduo da realidade e tem o seu valor indiscutivelmente apaziguador. A arte pode ser divertida, mas não basta. Considero que a arte está para revelar a vida, para nos permitir elevar-nos a partir dela e atingir uma dimensão menos material e mais essencial. A arte agudiza a sensibilidade e traz mistério à existência humana.
– Palavra Comum: Que referentes tens no teu trabalho criativo (desde um ponto de vista amplo)?
– Gonçalo Guerreiro: Talvez a maior fonte de inspiração seja realmente a dança pelas suas características próprias de apresentar o corpo em movimento e pela tendência que tem a ser universal, por ser abstracta. A coreógrafa e bailarina alemã Pina Baush sempre me fascinou.
Oiço todo o tipo de música e não passo um dia sem ela. Gosto muito de descobrir coisas novas e quando encontro algo que me impacta tem uma influência imediata no meu trabalho. O Fado e o Rock são presenças constantes.
Quanto aos princípios narrativos, as maiores influências vêm sem dúvida da literatura. Leio muito os africanos de língua portuguesa e os portugueses da minha geração: Pepetela, Mia Couto, Agualusa, Valter Hugo Mãe, Afonso Cruz e José Luís Peixoto, para citar alguns. Quanto à poesia, leio tudo o que me passa pelas mãos, porque ando sempre à procura de poemas para musicar.
A nível teatral sem dúvida que os principais referentes são Eugenio Barba e Jacques Lecoq.
– Palavra Comum: Que caminhos entendes são necessários para transitarem teatro, música e artes hoje, nomeadamente na comunicação com o público e a sociedade?
– Gonçalo Guerreiro: Acho fundamental que se entenda de uma vez por todas que a cultura não é um luxo de elites senão uma necessidade básica do ser pensante e sensível que é o humano. A Cultura é para todos e todos têm a capacidade de desfrutar do acontecimento cultural. A cultura é o que nos destaca da irracionalidade e o que nos permite criar uma identidade colectiva para poder dialogar com o outro sabendo quem somos e o lugar que ocupamos. Sabe-se que um povo mais culto é um povo mais inteligente e um povo mais inteligente é um povo mais rico a todos os níveis. Seria de agradecer que os poderes públicos facilitassem a promoção dos produtos culturais como uma mais-valia e um bem de consumo generalizado.
– Palavra Comum: Que opinião tens sobre as relações entre a Lusofonia e a Galiza? Que experiências neste sentido?
– Gonçalo Guerreiro: Antes de viver na Galiza vivi noutros países e logicamente fui aprendendo as suas respectivas línguas. Com a língua galega fiz o mesmo, certamente, mas com uma facilidade inédita porque é a única que me permite pensar em português. Dadas as circunstâncias históricas e geográficas que conhecemos torna-se evidente que as duas línguas são uma só. A diferença é que o português esteve protegido de influências externas e o galego não. A diferença é que o galego foi perseguido e o português não. O galego é lusófono e o português é galego. As pessoas que sentem a Galiza como lusófona procuram as semelhanças entre nós e fazem-me sentir num país meu, os outros têm olhos para a diferença, olham para Portugal com desdém e dão-me vontade de partir. Politicamente tem havido vontade em estabelecer pontes entre a Galiza e o norte de Portugal, o que já não é nada mau… Os nossos espectáculos circulam com relativa facilidade neste espaço.
Em casa falo português e educo os meus filhos dentro da lusofonia e da cultura portuguesa. A minha música é em português e o teatro que faço é falado em galego. Tento sempre fundir as duas culturas numa só porque a minha família é o resultado dessa feliz união.
– Palavra Comum: Qual achas que é a situação da cultura em Portugal e na Galiza, a dia de hoje?
– Gonçalo Guerreiro: Em Portugal há um bom nível de produção cultural. Há muitos artistas a desenvolver trabalhos muito bons e como Lisboa está em estado de graça, há bastantes facilidades na internacionalização. A questão é sempre a mesma, o êxito não depende tanto da qualidade do teu trabalho senão da rede de relações na que te movimentas. E depois, claro… convém que as tuas criações sejam também elas regidas pelos parâmetros da moda, mas é preciso estar disposto a isso. Falta em Portugal um circuito de distribuição de espectáculos como o que há na Galiza. Longe de ser perfeito, permite aos espectadores de todo o país ter acesso aos mesmos espectáculos e permite aos grupos trabalhar por cachés dignos. Estes circuitos são parcerias establecidas entre a Junta da Galiza e os Concelhos.
Na Galiza o que falta é público. Em geral as pessoas respondem facilmente às festas, mas consideram que a cultura não se destina a elas. Acho que há uma tendência por parte da classe política em substimar as capacidades do povo. Esta ideia de dar às pessoas o que elas querem parece-me demagógica e interessada em conquistar votos mais do que em cuidar a saúde cultural dos cidadãos. As pessoas não podem gostar do que não conhecem, portanto temos que propor-lhes coisas novas para alargar os seus horizontes. Isso faria com que o público fosse mais exigente e começasse a ver obras de arte que lhe mudassem a sua percepção da Galiza e do mundo.
– Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver? Fala-nos, em concreto, de Ar…
– Gonçalo Guerreiro: Actualmente temos seis espectáculos de teatro a circular e um novo em produção para estrear em Março, mas a música é realmente o projecto que mais me fascina actualmente. Claro que continuo a sentir uma grande satisfação no meu trabalho teatral, mas a música tem-me proporcionado grandes descobertas e revelações. Gostaria muito de gravar mais discos depois deste (Ar) e de conseguir chegar a mais gente. Durante os espectáculos tento estabelecer uma relação muito próxima com o público. Conto-lhe de onde vêm as canções, de onde venho eu e de onde estou neste momento da minha vida. Na Galiza tem corrido bem, devagarinho, mas bem. Em Portugal seria muito importante deixar este legado de proximidade e falar-lhes da realidade galega, do nosso imaginário partilhado e da nossa palavra comum.
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