– Pergunta: O que te leva a afirmar que em moçambique há mais escritores que leitores?
– Resposta: Ricardo Piglia, escritor argentino, na sua obra A Cidade Ausente, diz-nos o seguinte: “Um relato estranhíssimo. A história de um homem que não tem palavras para nomear o horror. Alguns dizem que é falso, outros dizem que é a pura verdade. Os tons da fala, um documento duro, que vem da realidade”.
Eu como activista e jornalista cultural em primeiro lugar e em segundo como poeta, vivo e conheço muito bem o universo literário moçambicano, ademais esta minha afirmação vem secundar a velha e “sempre nova preocupação dos livreiros locais” de que a literatura não vende: esta afirmação distorce todo o caminho que trilhamos os dias todos, uma vez que a cada dia surge um novo lugar onde se organizam saraus e tertúlias de poesia, nos mesmos lugares há pouco espaço para debates sobre a própria literatura, nos mesmos lugares compra-se mais cerveja do que livros que os próprios escritores convidados fazem questão de levar consigo, e também o tipo de perguntas que o público faz aos convidados mostra um tamanho desconhecimento da obra do autor convidado, é caso para dizer que se conhecem mais os nomes que a obra.
Se a leitura faz-nos crescer, a escola tem um papel imprescindível, a mesma escola que ensina a ler é a mesma que não compra livros, não tem políticas claras (a ausência do plano nacional do livro), as bibliotecas escolares não dispõem de livros, a nossa literatura quase que não existe nas bibliotecas públicas, escolares e municipais, e a mesma escola não propõe tarefas para que os alunos pratiquem essa competência. Ainda não se acredita completamente na ideia de que isso deve ser feito não apenas no início da escolarização, mas num processo contínuo. Neste processo contínuo da literalização é aí onde as bibliotecas públicas e as universidades, o próprio ministério devem ter a obrigação de comprar um número exacto de cada obra publicada e massificar as actividades em prol do livro.
O mais preocupante é saber que temos cada vez mais universidades em distritos e províncias sem bibliotecas e muito menos livrarias. É preocupante também saber que os jornais não chegam a estes lugares, é preocupante saber que um semanário de 3 mil exemplares não esgota numa cidade como Maputo, é preocupante saber também que uma edição de livro com 500 exemplares acaba anos e anos nas prateleiras de uma livraria.
Afinal, o que é que queremos formar? Se os estudantes não frequentam as bibliotecas, não compram livros, não lêem jornais, não participam em debates, o que é que lêem e onde frequentam?
É preocupante também saber que temos editoras sem editores, preocupadas somente com os patrocínios e tampouco com a divulgação dos seus autores, as editoras só falam do livro no dia do lançamento e tudo acaba. Afinal qual é o papel das editoras?
– Pergunta: E esse “alagamento” de escritores confere-lhes qualidades suficientes para usar um título tão nobre?
– Resposta: Com certeza, um doutor, economista, pedreiro, jurista, fotógrafo, político e também escritor (é aqui onde brilha a luz), e este “alagamento”, tal como intitulas, eu preferiria usar o termo “tsunami”, dada a sua força e o seu efeito tiro e queda, que lhe dá a cara, portanto este processo de “tsunaminazação” de poetas e escritores do karaoke em muitas das vezes, nao é um problema para um sistema literário, é um ganho para o enriquecimento do mesmo, mas torna-se problema quando os mesmos escritores não são leitores, é aqui onde tudo se estraga, quando temos um escritor e um poeta que não conhecem os materiais para a Construção da Palavra e “A Noção do Poema” tal como pediu Nuno Júdice.
– Pergunta: Há poucos ano houve um debate acesso sobre a provável morte da literatura moçambicana, pois certos escritores e críticos literários afirmavam que há cada vez mais menos publicações de qualidade. Qual é o teu posicionamento?
– Resposta: Creio que foi um debate muito forte iniciado pelo Dom Mido e Andes Chivangue, e vejo este debate em duas perspectivas, a primeira é esta defendida por Andes Chivangue, e que parece muito pertinente que vai de acordo com o que disse acima sobre a ausência de leitores e da crítica.
“Mais preocupante ainda é que prevalece um medo abismal em relação à necessidade de se realizar alguma denúncia da referida realidade. Por exemplo, se Andes Chivangue publica um livro e Eduardo Quive não tem uma crítica favorável sobre o mesmo, o que normalmente acontece é que este não critica, no entanto, fala em fóruns não muito apropriados. Isso coarcta a nossa evolução”, aqui.
A segunda perspectiva é esta, defendida por Francisco Noa, também muito pertinente e actual:
“Há, de facto, uma crise literária em Moçambique”. Mas, segundo afirmou, não se deve avaliar apenas pela falta de leitura. Para aquele docente, são vários os factores que contribuem para a “morte” da literatura moçambicana. De entre os vários aspectos, apontou a falta de produção, o acesso aos livros, a recepção. “Estamos numa fase de crise literária que pode durar anos para terminar”, disse.
Acrescentou que, para se ultrapassar essa crise, devem ter-se em consideração vários aspectos. A título de exemplo apontou que existem no país vários jovens com talento para a literatura, no entanto “falta-lhes orientação, um conjunto de referências e muito trabalho na escrita”, aqui.
Resumindo: uma literatura desenvolve-se com leitores, crítica (apesar de ser ainda tímida), referências literárias, festivais, debates, congressos, espaços para publicação, tertúlias, e hoje temos estes mecanismos. Podem não ser da maneira de como gostaríamos que fosse, a título de exemplo o “apagado” Arrabenta Xithokozelo (com tertúlias no Teatro Avenida), onde despontaram poetas de grande qualidade como Leo Cote e Macvildo Bonde, o Centro Graal (com suas noites de leitura e não sei se ainda continuam), a AEMO com o Grande Ciclo de Palestras, os saraus do ICMA, Ntsindza, a FFLC com Programa Literário e o Programa Cultural, a Revista Proler, o Jornal Pirâmide e o Jornal Debate.
Vale referenciar aqui o papel não menos importante do Kuphaluxa, um grupo de jovens que abraçaram o activismo literário como a causa primeira, jovens que desde o primeiro momento assumiram-se como leitores e embaixadores da literatura moçambicana. Este mesmo Kuphaluxa criou um espaço nobre na literatura mocambicana e lusófona, que projectou a literatura moçambicana a nível mundial, através da Revista Literatas, uma espécie de incubadora de novos escritores moçambicanos. Vale a pena referenciar alguns nomes surgidos deste grupo –Nelson Lineu, Japone Arijuane e Álvaro Taruma–, estes têm uma coisa em comum diferentes dos demais –a qualidade.
Num país onde temos escritores de qualidade invejável como Lucílio Manjate, Aurélio Furdela, Mbate Pedro, Sangare Okapi e Jaime Munguambe são casos para dizer que a literatura moçambicana está de boa saúde e recomenda-se.
– Pergunta: Que achas que falha na massificação da escrita em Moçambique?
– Resposta: Esta pergunta acho que não era para mim (risos), deixa tentar responder….. Ao meu ver, o que falha na massificação da escrita é a massificação da leitura, seria primeiro massificar a leitura para poder massificar a escrita, porque hoje vivemos numa época onde a escrita auto-massificou-se, todo mundo é poeta ou prosador.
Contudo creio que para que haja a massificação da escrita é urgente pôr o livro em todos os lugares, é urgente as escolas terem os livros, é urgente tornar o estudante amigo do livro, e volto dizer, a minha preocupação é a massificação da leitura.
– Pergunta: Que levaste de bagagem para a Argentina… Lembrando que funcionas como cartão postal para os nossos escritores….
– Resposta: Para Argentina levei comigo a cultura e a literatura moçambicana, por exemplo, levei música de Jose Mucavele, Azagaia, Stewart Sukuma, Granmah, 340 ML, Ghorwane e Fanny Mpfumo, levei também livros de Carlos Paradona Rufino Roque, Emmy Xyx, Aurelio Furdela e Álvaro Fausto Taruma e tive a honra de tocar estas músicas nos encontros de confraternização e nas minhas apresentações no próprio Festival e na Universidade Nacional de Córdoba.
– Pergunta: Que imagem trazes da quinta edição do Festival Internacional de Poesia?
– Resposta: Foi uma experiência super-maravilhosa, ser o primeiro poeta africano (moçambicano em particular) a participar no festival, a figura de cartaz de um grande festival, onde o meu primeiro livro foi o livro do ano do festival, uma vez que anualmente a organização do Festival em cada edição escolhe um livro para publicação, e fui o felizardo, foi honroso participar num evento que a cada dia contava com um público diferenciado, salas cheias, e o livro a ser bem recebido, a comunicação social e os leitores sempre a destacar as qualidades do livro: isso é gratificante.
– Pergunta: E que mais valia esta participação trará do ponto de vista estético e temático para a tua escrita?
– Resposta: Esta rica experiência traz novas e outras formulações estético-temático, uma vez que bebi muito da literatura contemporânea latino-americana e os contactos que fiz com os escritores e editores locais, pois muitos deles, depois de ler o meu livro, ficaram mais interessados em conhecer a literatura moçambicana. Foi com estes e alguns professores universitários que deixei os livros de autores moçambicanos que levei comigo.
– Pergunta: Que imagem os demais escritores latinos têm da escrita moçambicana? Que sabem eles de nós?
– Resposta: De Moçambique não conhecem nada, apenas 5 ou 7 argentinos e dos demais escritores de países latino-americanos dos tantos que conversei que conhecem Moçambique perto de Africa do Sul, Paulina Chiziane e Jimmy Dlulu. Há um olhar exótico sobre o continente africano, que incomoda, há uma ausência de interesse em conhecer África por parte deles, e com esta minha participação abriram os holofotes para Moçambique, todos querem conhecer. Ao contrário de nós, que sabemos tudo sobre eles, eis a nossa vantagem de sermos periféricos.
– Pergunta: Há pouco tempo o presidente do fundo bibliográfico de língua portuguesa disse que o preço do livro não era o imperativo para pouca leitura… Qual é a tua opinião?
– Resposta: Totalmente de acordo, porque existe muita gente com poder de compra e não se interessa em ler. Acho que este desinteresse parte da escola e da família, porque a escola e a família (muitas vezes) não abrem esta janela fantástica chamada leitura. O que é que uma criança que quando completa anos recebe de presente video-games, celulares e outros brinquedos, menos livros; o que é que um jovem que cresceu numa casa cheia de carros e vinhos e sem nenhum livro vai fazer depois da sua formação?
Vou dar um exemplo dos jornais, sejam diários ou semanais, quantos moçambicanos com poder de compra que trabalham na zona da Av. 25 de Setembro há que não sabem o que é comprar e ler jornal? Se o lêem é que a empresa onde trabalham compra um ou dois jornais.
Para mim a questão da leitura deve ser intensificada com projectos claros por parte da escola (plano nacional da leitura) e da família (fazer-se tiques de compra de livros para os filhos), porque enquanto o jornal e o livro estiverem ausentes na escola e em casa, continuaremos neste marasmo, enquanto os nossos estudantes continuarem com esta desastrosa falta de referenciais do pensamento e cultura moçambicana, o terramoto sempre será de magnitude 7 até o mais infinito.
Só para terminar, vou dar um exemplo que a mim incomoda bastante, quando vejo os cadernos de desenho à venda na rua e quem faz as capas, sabes quem é?
Marginais, digo MARGINAIS os cantores norte americanos de “RAP” marginal, com os seus charutos, whiskies, as suas tatuagens, os gestos obscenos, Lil Wayne, Whizzy Khalifa, Rick Ross e companhia limitada, é caso para dizer que o que se assiste nos programas de entretenimento é o que se estuda na escola, estas são as referencias dos estudantes moçambicanos.
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