Basta alguns minutos de conversa para Luís Osório desvelar facilmente a sua inquieta lucidez pelos fenómenos emergentes do mundo. Inteligente e luminoso, com um sereno magnetismo que não deixa o próximo indiferente, Luís revela ser capaz de aproximar-se muito mais de uma ideia de “verdade” num livro de Roth ou DeLillo do que em qualquer telejornal, e que a escrita, é para si um encontro com os seus fantasmas.
Escritor e jornalista de reconhecido mérito, Luís Osório foi Director do Jornal “A Capital” e colaborou com o “Diário de Notícias”, Jornal “Expresso” e Revista “Visão”. Na rádio, foi Director Geral do “Rádio Clube Português” (2006 -2009) e na televisão desenvolveu programas como Zapping e Portugalmente. Além do jornalismo, foi encenador e responsável pela dramaturgia de “Vagabundos de Nós”, com texto de Daniel Sampaio, que esteve em cena no teatro Maria Matos, em Lisboa (2004). Ganhou o Sete de Ouro, o Gazeta Revelação e o Prémio Inovação Manuel Pinto Azevedo. Mãe prometes-me que me lês (Guerra & Paz, 2018) é o seu sétimo livro e sucede à Queda de Um Homem, (Teorema, 2017) primeiro romance.
Gabriel Garcia Marquez, numa entrevista com Pablo Neruda, afirmou e passo a citá-lo “à medida que vou avançando no trabalho literário vou perdendo o sentido da realidade que o jornalismo me deu”… Como foi essa ruptura que fizeste com o jornalismo? Achaste necessário perder esse “sentido da realidade” que Gabo referia e encontrar uma linha de fuga ao próprio real?
Não diria uma linha de fuga ao real, mas uma nova tentativa de o encontrar, uma tentativa a partir de um universo ficcional e literário. Interessa-me muito a contaminação entre os dois mundos, diria até que não existe em mim uma diferença declarada entre o que é real e ficcional, sou o resultado de tantas coisas, da força e miséria de tantos personagens, da força e miséria da história dos povos, dos países e de mim próprio. Não te sei dizer mais do que isto. Conheço melhor o Tony Soprano, Aureliano Buendia ou o Baltazar Sete Sóis do que qualquer vizinho que more no meu prédio. Sou capaz de me aproximar muito mais de uma ideia de “verdade” num livro de Roth ou DeLillo do que em qualquer telejornal. A minha ruptura com o jornalismo é uma procura de mais, não por recusa do que a profissão tem de arqueológico, mas da necessidade de abrir o mundo para lá das convenções.
” O que mudou mais acentuadamente no jornalismo foi a desistência de criar projetos que oferecessem às pessoas o que elas precisam e não o que elas querem”
O jornalismo é hoje bem diferente da época de Gabo; a fadiga da informação, a hipercomunicação, o dilúvio constante de notícias, onde não sabemos distinguir a verdade da mentira, até mesmo o fenómeno das fake news, parecem lançar o caos numa sociedade cada vez mais sem respeito nem distância. Como se sobrevive a tudo isto? Será ainda possível uma conduta ética no jornalismo?
Julgo que não será possível. Porque o abominável é que a maioria das pessoas se sente mais representada neste tempo do que em qualquer outro. Gosta de poder dizer as coisas sem intermediação, aprecia uma sociedade justiceira que atenue injustiças e misérias pessoais. O que mudou mais acentuadamente no jornalismo foi a desistência de criar projetos que oferecessem às pessoas o que elas precisam (uma arrogância necessária para criar projetos novos) e não o que elas querem. Hoje, até pela insustentabilidade do negócio, os investidores oferecem o que as pessoas querem consumir. E como muito bem dizes deixou de existir respeito e distância, é quase tudo virtual e passível de ser corrompido. É possível uma conduta ética no jornalismo, mas o movimento terá de ser global, de uma vanguarda que pense e aja globalmente.
E a escrita, Luís, é para ti esse encontro com a verdade das coisas?
É um encontro com os meus fantasmas. Todos os dias tento estar um bocadinho com eles, convoco-os e fazemos essa viagem arqueológica juntos. Uma escavação para dentro de mim próprio onde talvez um dia possa encontrar um qualquer diamante que tudo explique, porventura uma palavra definitiva.
É este um tempo difícil para a vida de escritor? Isto é, achas que temos menos tempo para pensar, ler e escrever numa época que muitos já definem como a “da precipitação”?
Muito difícil. Porque vai contra a corrente do tempo. Um escritor só sobrevive na lentidão e o mundo é o contrário disso. Um escritor só consegue encontrar o fio do seu leito na procura e o mundo exige respostas imediatas. Um escritor tem de ler e pensar num mundo coberto de solicitações. Um escritor é hoje um cristão de regresso às catacumbas de Roma. Um mundo culturalmente pagão que vive do pão e do circo. Um mundo em que se entra nos livros e se sai como se entrou, como se os livros fossem uma pastilha elástica. Continuo a acreditar na arte, forma mais eficaz de questionamento humano. Mas a arte terá de sobreviver com custos para quem ousa arriscar ser proscrito.
“Um escritor é hoje um cristão de regresso às catacumbas de Roma”
Afirmas numa entrevista que os escritores estão demasiado virados para o seu umbigo, não se leem uns aos outros… O escritor também foi absorvido pela totalização da produção e passou a ignorar o tempo do Outro, aquele que cria comunidade?
Sim, tenho essa ideia. Os artistas, pela primeira vez desde há pelo menos três séculos, não estão na vanguarda do pensamento, esse lugar foi-lhes “roubado” pelos cientistas. Por várias razões, a começar pelo triunfo do individualismo, da exacerbação do ego, da ausência de uma vontade de ir juntos, de ser soldados ao serviço de uma transformação do tempo em que são contemporâneos. Não nos lemos uns aos outros, é verdade. Talvez na poesia seja diferente, mas em Portugal ninguém se odeia tanto quanto os poetas. No outro dia, numa mesa de poetas, acabou tudo ao estalo.
No teu primeiro romance “A queda de um homem” (Teorema, 2017) falas de alguém a quem não lhe é permitido saber se está vivo, se está a sonhar, se matou, se foi morto, ou se é um monstro. Quiseste descrever o homem actual, aquele que é incapaz de aceitar a alteridade? Conta-nos um pouco mais sobre esta história e o que te levou a ela?
Um personagem a quem não é permitido saber se o seu caminho é iluminado por sombras ou se feito de sombras por ser a única forma de alcançar a luz. O personagem e o próprio leitor a quem ofereço a possibilidade de em todas as páginas poder definir o seu próprio caminho enquanto leitor, acredito nessa dialética de liberdade entre quem escreve e quem lê. Mas sim, dizes bem. O ponto de partida em “A queda de um homem” é esse, uma incursão a este tempo, ao Homem atual, um ser incapaz de aceitar que o caminho se deve fazer com os outros. Por isso também o exercício de escrever um romance sem nomes porque cada personagem é um paradigma de um tempo, cada personagem contém todos os nomes.
“A escrita é um encontro com os meus fantasmas”
A personagem principal fez-me recordar o romance de Albert Camus “O estrangeiro” onde se descreve uma espécie de estrangeiridade como sentimento ôntico e existencial… um homem estranho no mundo, um estranho entre os homens e também um estranho para si mesmo. Achas que há lugar para o “estranho” num tempo em que o silêncio e o respeito, condição fundamental da esfera pública, parecem já não existir?
O melhor elogio que poderia ter. Porque “O estrangeiro” é um livro de vida, de formação, de uma estranheza que me obrigou a ver a existência como uma permanente escavação, uma urgência de descoberta e de perdição, de combate e apaziguamento. Há cada vez mais lugar para o “estranho”, é o caminho para a “salvação” literária e (logo) humana.
Leio com frequência aquilo que escreves nas redes, o teu estilo mais diarístico, que de uma forma muito subtil, bela e eloquente revela a outra face do escritor. É importante o escritor revelar a sua carne, os seus assombros?
É importante o escritor ou o poeta escrever bons livros, deixar a sua marca nos que um dia continuarão a ter sede. O resto é secundário. Em mim essa relação com os leitores, com o mundo é assumidamente pouco densa (o que não é incompatível com ligeireza). Interessa-me uma relação direta, única forma de não depender exclusivamente do que não controlo. E diverte-me muito.
“O lugar para o “estranho” é o caminho para a “salvação” literária e (logo) humana”
Descreve-nos um pouco o teu último romance “Mãe, promete-me que me lês”?
É uma carta à minha mãe. Uma mãe que morreu há dez anos. E que se transformou numa personagem literária. Mais uma vez o meu desejo de contaminar a ficção com a realidade e o seu contrário. É também uma carta à literatura. “Por favor, promete-me que lês”.
Na perda da mãe uma das principais urgências que se vive é, inevitavelmente, o facto de se deixar de ser filho, de perder esse espaço de um amor incondicional e de uma segurança vital para nós. Este livro é uma tentativa de ainda conseguires ser filho?
É uma tentativa de combate ao esquecimento de um outro em mim. Uma súplica à memória. Um registo do que em mim já não é realidade, mas ainda não era ficção. É um compromisso com a literatura como única forma de sobreviver para lá da minha última partícula.
Como sabes a Palavra Comum está sediada na Galiza. Imagino que já tiveste oportunidade de visitar esta nossa terra irmã. Que recordações guardas?
Não fui muitas vezes, sabes? Parece impossível, mas é a verdade. Duas vezes apenas. Em criança fui a Santiago de Compostela. E há uns anos à Corunha. Sempre me pareceu que sou tão daí, como daqui – mesmo que não tivesse ido vez alguma.
Fotos de Luís Osório por José Lorvão.
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