ÉTICA, PAIDEIA E ANAGOGIA
Algumas questões essenciais sobre a iniciação filosófica
HÁ MUITOS ANOS (recordação)
Há muitos anos um galego trabalhava como barqueiro em Lisboa. Era um homem paciente e bondoso, e tentava cumprir com os seus clientes da melhor maneira que sabia e podia.
Certo dia aconteceu que o seu cliente era um erudito versado em línguas românicas várias que, atentamente, percebeu erros no “português do galego”.
– O senhor nunca estudou língua, não é? – disse o erudito.
– Nom, nom senhor. Nom houbo tempo – disse o galego.
– Pois perdeu meia vida, amigo.
O rio Tejo parecia remexer-se intranquilo. O galego olhava o céu com simplicidade rústica e antiga. De súbito falou:
– O senhor sabe nadar?
– Nadar?. Não, não… nunca tive tempo – disse o erudito.
– Pois perdeu a vida inteira, amigo. Imos ao fundo!
(Retirado do Kitab al-Nasrudim al-Galizi)
“Busca a verdade ainda que seja na China”
(Provérbio)
- Filosofia, ensino, iniciação
Em 1972, publicou-se o livro de José Marinho “Filosofia: ensino ou iniciação?”, editado pelo Centro de Investigação Pedagógica do Instituto Gulbenkian de Ciência. É um texto claramente situado, num contexto específico, e não orientado só a docentes de filosofia. Há nele uma vocação propedêutica respeito da finalidade que Marinho concebe à filosofia, mas ainda assim é suficientemente explícito para situar a questão da educação integral do ser humano em relação com todos os processos intencionais e não intencionais da formação do homem, vindo a ser o ensino filosófico o fundamento, processo e fim de toda a educação.
De tal posicionamento inicial é preciso fazer patente que se está desligando o ensino da filosofia como fundamento da educação dos âmbitos puramente institucionais ou estatais, não podendo estes garantir por si mesmos o conceito de filosofia que sustenta José Marinho sob o perigo de confundir o acessório com o essencial. Num sentido quase irónico, que veremos mais adiante, poderíamos dizer que o estado não pode garantir a educação que defende Marinho, baseada na tradicional iniciação platónica e que, certamente, também não pode impedi-la. Não quero dizer que o estado mantenha um posicionamento neutral ao respeito mas que, em última instância, é impotente naquilo que, para seguir parafraseando a Marinho, mais importa. 1
Desde o início, na introdução, Marinho põe a questão essencial do ensino e da iniciação da seguinte maneira:
“Sem magistério espiritual entendido num sentido transcendente ou transcendental, não há modo de compreender a filosofia em intuição ou lógico discurso, não se alcança ciência possível do secreto e do patente. Carece então de significado a poesia, não alcançam então sentido as formas da imagética e da simbólica, incertos nos detemos quanto à possibilidade de íntima aceitação de qualquer princípio, conteúdo, norma e finalidade do mais espontâneo ou refletido pensar e agir. Poderemos acaso desde o limiar de um trabalho circunscrito anunciar que tudo depende disso?”
Desde já fica patente a referência a um sentido transcendente ou transcendental do magistério espiritual. A oposição a uma compreensão da espiritualidade como uma categoria cultural derivada de um exercício exclusivamente humanista e histórico quere ser claramente marcado pelo sentido que dá Marinho às suas palavras. Magistério espiritual encontraria a sua oposição nos diversos historicismos de carácter humanista e livresco, remetendo a uma ideia de tradição diferenciada do modelo do “Geist” alemão, e, em geral, do conceito de “espírito” dos modernos, para reassumir a ideia de uma sabedoria espiritual mais na linha socrático-platónica e evangélica. O conhecimento filosófico é assim perspetivado como uma autognose que se desvincula do preconceito da filosofia como coisa sapiente, erudita e livresca. Esta oposição, refletida no pensador português, constitui quase um paradigma que nos permitiria estudar toda a filosofia a partir destes dois posicionamentos básicos, determinantes das diferentes formas em que o pensamento se exprime ou faz aparição. Dito de um jeito simples e claro: uma maneira que se transmite pela “letra” típica do humanismo latino, por exemplo, e uma outra que se transmite pelo “espírito”, que sopra onde quer e que não se constitui em património cultural mas em herança de um lar, uma morada que supõe um ethos específico: a chave de um verdadeiro caminho de realização. No segundo caso se cumpriria a máxima do imperativo categórico kantiano: fazer do ser humano um fim em si mesmo e não um meio para outra coisa.
“Entendo por estado, num sentido espinosiano, as diferentes formas em que se organiza a multidão com o objeto de uma organização cívica ou política, seja este concebido sob a forma que seja”
Pondo, pois, esta limitação do historicismo são apresentados os três níveis da educação humana: pedagogia, paideia e anagogia. Neste esquema, nominalmente de origem medieval, a anagogia aparece como a finalidade e o sentido dos outros dois níveis. Propriamente é o âmbito da iniciação espiritual e segundo Marinho, paideia e anagogia resultam “repugnantes para latinos excessivos”. Ora bem, o conceito de paideia como educação tem sido considerado de diversos modos. Na Grécia clássica podemos distinguir dous modelos que nos servirão como comparativa: o modelo isocrático e o modelo platónico.
a) Para Isócrates a paideia elimina qualquer tipo de abstracção metafísica, ligando-se à pragmática das situações humanas. Destaca a doxa e a frónesis concebida num sentido prático, uma inteligência dos assuntos humanos. Destaca a eloquência e a retórica, a importância das questões históricas, a convivência entre mestre e discípulo, a crítica da possibilidade de ensinar a virtude propriamente dita e a necessidade de cultivar os dons naturais. Mescla a esta perspetiva de um humanismo práctico uma forma de nacionalismo pan-helénico como ideal cultural, como ideal de unidade que se exprime no pathos e ethos dos poetas tradicionais. Há uma clara crítica da verdade como algo absoluto. Há também uma crítica à sofística, surgida de um critério experiencial e pragmático, mas seria difícil distinguir grandes diferenças entre um Protágoras e um Isocrátes atendendo às suas tipologias. Se tivermos em conta o conceito de tipologia humana poderíamos dizer que a paideia isocrática, como a de muitos sofistas, concentra-se em torno do ideal humano da personalidade auto-suficiente, concentrada nas virtudes aceites socialmente, sem questionar-se a possibilidade dum conhecimento mais profundo ainda que admitindo a possibilidade dum saber mais convincente na ação prática.
b) O posicionamento socrático-platónico concebe a paideia tradicional com certa ambiguidade. De um lado admite a estrutura dos valores tradicionais gregos para desenvolvê-los desde o seu interior, transformando-os. Admite a facticidade dos modelos ideais da moralidade contemporânea para desloca-los num busca da autêntica excelência pessoal até o limite da própria experiência cultural. Um saber do não-saber que questiona os “topoi” sob os que se constrói a identidade do cidadão e que cria a consciência de um vazio que não pode ser enchido pela propaganda ou pela retórica. Enquanto as diferentes formas da sofística ilustrada admiram o homem superior e culto, o platonismo não elogia aquilo que causa impressão mas o que causa conhecimento, mesmo por meios não plenamente aceites por todos. O amor da sabedoria (a filosofia) não tem a sua origem numa empatia humanista pelo saber como forma de superioridade e domínio mas numa relação surgida do ser, gratuitamente, além de um conceito simplista de utilidade. Todo isto implica uma dupla configuração exotérico/esotérica do saber, abrindo-se para uma relação de intimidade, não só de exterioridade. A consciência de uma carência essencial é necessária para este tipo de aprendizagem. Os aspetos formais da filosofia são um meio, não o fim da mesma.
A esta breve e simplista caracterização mas suficiente para o nosso propósito convém acrescentar-lhe uma problemática. Trata-se de ver como o próprio platonismo se converte numa forma de ideal cultural, transmitido não como uma iniciação mas como uma construção histórico-cultural. Boa parte das críticas anti-platónicas surgidas na Modernidade apontam justamente a esta forma de via platónica historicista e/ou formal-logicista, sendo a de Nietzsche uma das mais fecundas e, portanto, a que permitirá posteriormente vislumbrar uma relação mais autêntica com a própria origem do platonismo como a via espiritual que realmente é. Isto permitirá fazer uma viragem completa, onde o ponto de partida e de chegada são o mesmo… e são completamente diferentes!
Num genuíno sentido platónico a paideia é o momento mediador do ensino dependente da anagogia. Se a própria paideia apresenta problemas à hora de tentar compreender a sua forma de transmissão e metodologia, isto revela-se muito mais difícil com a anagogia. Marinho lembra um debate típico da época clássica em que se põe o problema de se a filosofia se ensina ou não se ensina. O que no fundo é aquele de se a virtude se ensina ou não se ensina. E a resposta incorrecta seria dizer sim ou dizer não, pois levariam a uma contradição prática. Isto é assim para a paideia, é duplamente assim para a anagogia. Vale a pena relembrar mais uma vez as palavras dirigidas por Platão na carta VII aos amigos de Dião em Siracusa sobre a finalidade do seu ensino:
“Com efeito, não existe nem existirá nunca um escrito meu sobre estes temas, pois de modo algum é de algo que se possa falar como de outras disciplinas, senão que é por causa de um frequente contacto com o problema mesmo e por mor de uma convivência com ele que surge este saber na alma, igual que a luz que se desliga de um fogo que surge, alimentando-se então a si mesmo.” 2
Continua Platão explicando a inconveniência da argumentação sobre tais assuntos, exceto para aqueles que verdadeiramente estejam capacitados para tal conhecimento. Certamente, o problema que insistentemente se põe é: que significam então todos os diálogos platónicos?. Uma das respostas mais plausíveis é que são parte de um esforço propedêutico, de familiarização, parte de um instrumental de uma escola iniciática usado no âmbito da Academia, e que não pode ser mais do que isso. Pretender que uma pessoa divulgue todo o que sabe ou pensa é para Platão sintoma de que não sabe grande coisa, não por causa de um ocultismo avaro mas simplesmente porque não é possível nem funcional para o ensino propriamente dito, pelo menos no contexto e nas circunstâncias históricas nas que vivia Platão. A questão que se tem posto neste sentido fala da dimensão da oralidade no ensino platónico como forma de transmissão essencial mas penso que a questão não está tanto na oralidade como na ideia de uma transmissão viva, sincrónica, contemporânea onde tanto a palavra oral como a escrita são parte de uma ação total e mais abrangente, e onde muitos outros elementos são importantes. Em conexão com isto podem-se lembrar algumas afirmações de algum neoplatónico. O místico persa Jalaludim Rumi afirmou que não se interessava para nada pela poesia mas que como bom anfitrião oferecia poemas aos seus amigos. Ele buscava ação, mas havia tão poucos que quisessem ação que acabava por oferecer poemas. Tudo isto foi dito depois de ter feito milheiros de poemas da melhor qualidade. Obviamente isto escandaliza à cultura literária e historicista, tanto de então como de agora, ligada a uma experiência fetichista das valorações mas incapaz de experimentar o sentido indicado.
Um outro exemplo está na hermenêutica medieval do Livro onde propriamente é utilizada a palavra anagogia, e onde o tratamento do texto está ligado a um autêntico esoterismo dependente do magistério espiritual, onde a própria ideia de texto ou Livro vai muito para além da hermenêutica dos “literatos”. Na Tradição do Livro, quer dizer, judaísmo, cristianismo e islamismo, percebidas desde a perspetiva esotérica e fundadas sob um platonismo evidente da-se este especial tratamento da literalidade textual como autognose. É claro que se nos referimos a uma via platónica devemos decidir se o que buscamos é um critério identificativo pela forma ou pelo contrário assumimos que a sabedoria pode ter diferentes formas de dar-se e realizar-se, o que nos leva a um diferente modo de conceber a filosofia. Marinho indica dous modos de se relacionar com a palavra filosofia: a que se identifica com o amor à sabedoria e a que se define como ciência das ciências. Não necessariamente inconciliáveis mas que obedecem a orientações diferentes: mais intuitiva a primeira, mais discursiva a segunda. Para além disso, a própria palavra “amor” põe uma diferença substancial inscrita na articulação copulativa que liga ao filósofo com a sabedoria e a diferença da relação do peripatético com o saber: função metaepistémica cindida.
“Marinho indica dous modos de se relacionar com a palavra filosofia: a que se identifica com o amor à sabedoria e a que se define como ciência das ciências.”
Um dos problemas específicos da tradição culturalista é precisamente a de querer identificar a tradição da filosofia pela sua forma. Dentro do complexo de superioridade da cultura ocidental com respeito a outras culturas destaca-se o milagre grego da filosofia como um ato único e específico atendendo a “método” e “mathesis”, á racionalidade específica da tentativa. Isto é parte de uma propaganda repetida incessantemente de modo aberto e encoberto que não se corresponde com a realidade, no sentido de que aquilo que é propriamente filosófico não pode ser identificado pela sua forma de apresentação mas pelo seu sentido, pela sua consciência ética de auto-conhecimento, aspetos que não são predetermináveis nuns rasgos técnicos ou culturais. De aqui que Marinho se refira deliberadamente a Eurásia e não a Europa, vendo as grandes realizações da metafísica no Oriente e não no Ocidente, ou como ele próprio diz, na tradição remota. O que nos leva a ver o rótulo “filosofia ocidental” como uma particular forma da cisão no interior de uma tradição mais ampla da que se desgalha. Não se pode confundir a maneira externa em que uma tradição opera por motivos culturais e históricos, o que implica uma necessária radicação no espaço-tempo próprio, adequado às maneiras e características específicas, com a essência mesma, com a vitalidade íntima do ser. Como diz um velho aforismo: “A cor da água depende do copo que a contém”. Melhor será beber a água e deixar o copo tranquilo. Se há um axioma que a via iniciática em sua subtileza parece ter sempre repetido é que não se deve confundir o continente com o conteúdo. Claramente não é de estranhar que o fim da filosofia ocidental exceda os limites da sua forma face outras maneiras do pensamento e a expressão (Hölderlin, Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger, e um longo etc.). É sintomático o que neles se aprecia: uma rasgadura imensa no centro da tradição histórica, uma necessidade intensa de superar os limites do tradicionalismo agora disfarçado de progresso, uma profunda pergunta pelo enigma essencial do homem, a necessidade de reencontrar um caminho perdido.
Outro exemplo situa-se no fim da época clássica, após a morte de Aristóteles, em que a filosofia se exprime em escolas de vida e realização prática. Cínicos, estoicos, epicúreos, neoplatónicos são considerados menores com respeito aos chamados clássicos, são parte da “decadência” da filosofia grega. É provável que um Epíteto não seja tão estimulante para os eruditos como Platão e Aristóteles ainda que, em última instância, hesito que na balança da verdade o peso dos livros possa ser decisivo. Chegamos assim a um texto de Marinho intitulado Historicismo e verdade a partir do qual tentarei pensar as relações entre iniciação, tradição e filosofia, como parte de um compromisso ético que evita e se oculta à reflexão histórica nos seus aspetos mais essenciais.
1 Entendo por estado, num sentido espinosiano, as diferentes formas em que se organiza a multidão com o objeto de uma organização cívica ou política, seja este concebido sob a forma que seja. Não podemos falar de um estado despótico, por exemplo, senão como uma correlação de forças e paixões de uma multidão canalizadas despoticamente, e não como o exercício despótico dum sujeito (a abstração do estado) sobre um objeto não menos abstrato (o povo). É, pois, mais importante, com vistas à liberdade humana e à sabedoria, compreender as funções qualitativas que ligam em interdependência aos seres que discutir pela forma política propriamente dita, o que sempre leva a formas de sofística e demagogia. Seja isto compreendido cum granu salis.
2 Platón, Cartas, 1993, Ed. Akal.
Nota do autor: Este texto foi apresentado no simpósio comemorativo do centenário de José Marinho em 2004 na Faculdade de Letras do Porto. Foi publicado no livro “Repensar José Marinho” em 2005 na Ed. Campo das letras
Fotografia de capa por José Lorvão.
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