[Mais do que RESPONDER à questão proposta por RAIAS POÉTICAS — 2020: A LITERATURA ACONTECE EM RECOMEÇO ININTERRUPTO’, 4 interrogações. ]
1.
Quando acontece a Literatura? Quando um autor escreve (permita-se-me a lapaliçada). Sentenciado a ser ‘Sísifo’, ou agindo como trânsfuga, o autor começa e recomeça, reflectindo sob a aura literária que elege como cânone (predominante) no que escreverá a seguir, corre esse risco, se não conseguir a diferença estética.
Saberá, por certo, articular com a intencionalidade evocada da aprendizagem, a vontade de reescrever a Literatura, não de modo idêntico, mas com o propósito de alcançar os degraus para um patamar ideal de superação, quer pela tentativa de aperfeiçoamento, quer pelo afrontamento. E, arbitrariamente, emerge a sua verdade, o que o motiva a concretizar com remissões, com o apagamento do que não quer transmitir, e repudia ou assume a imitação do que consagra, do que pretende corrigir. (Isto não é à toa!)
2.
Quando se revelou (e se rebelou) o autor, e assim se expôs, sem obstruções de originalidade ou cópia de entendimentos diversos do que é a Literatura?
Ao cumprir o ‘trabalho de Sísifo’, dessa persistência, contraditória em escolher a sua linhagem, desse esforçado comportamento experimental, é de admitir, que o autor extrai uma diferenciação que justifica recomeçar o acontecer da Literatura.
Qual o alcance do modo de apreender no seu percurso absorto de formação, de experiência de vida, na persistência em vencer agruras? No empenhamento na aprendizagem, o que o faz avançar e recuar, alterar opiniões, enumerar hesitações formuladas por silêncios de reflexão com empoamento de sentimentos, ou fazendo tábua rasa de problemáticas de resposta consensual, ‘desfolhando’, ou seja, destruindo livros que o implicaram a escrever, a que deu ênfase, sob suspeita, a reescrever, na continuação do decalque, do cruzamento, do entrelaçamento indeterminado que confunde, e, muito vivamente, expõe a sua afirmação de compreensão e se manifesta insubmisso, transgressor ou acomodatício, rendido ao gosto crítico promotor, mercantil.
3.
Que contexto condiciona o autor? Haverá que solicitar à crítica, aos leitores, ao editor, um consentimento? Quando se impõe que seja diferente, sem seguidismos, o seu contributo na renovação da Literatura? Quando o impulso da continuidade se configura surpreendente na sua derivação? O que se repete, o que o autor evidencia, o que afina, qual a semelhança ‘que se anula’, que dissemelhança? (Deleuze, sublinha que ‘o interior da repetição é sempre afectado pela diferença’.)
Como poderá ecoar essa ambição no espaçamento intervalar entre o momento em que a obra é desconhecida e é exposta, relatada? Que censura condiciona o recomeçar da Literatura? A das classificações abusivas, a da hostilidade crítica desvalorizadora? Censura veemente contra a desmesura ou a candura, a alienação, o empenhamento político? A da reprovação por escolhas de recursos formais de aparência conciliadora com a improvisação temática?
A que enervação o autor assim condicionado, será exposto?
(Mesmo que seja pelo orgulhoso júbilo de ser a areia de uma ampulheta, de cair lentamente e chegada a altura, inverter, ir, dar-se, de avesso, descer lentamente na medição da vida, convencido que enche os ‘buracos’ (Sartre), ou abdica de si e afirma o furtivo?) As derivações acontecem articuladas com a enclausura, o escrever-só, mas haverá permissão crítica para um autor caligrafar obcecado a sua verve obsessiva? De que modo? O autor recusa o reconhecimento quando é proferido no pressuposto de ser entendido, no que escreve, como mera repetição ou como excentricidade, mas aspira, julgo eu, a uma aproximação a uma forma que seja errância de conteúdos, que desencadeiam significados que os leitores atribuem com a autonomia das suas próprias experiências e conhecimentos.
4.
O que faz perdurável a Literatura?
A Literatura prossegue com o gesto enfático do autor (efémero) soprando o enigma das representações, ininterruptamente, com divergência, com aplauso, por labirínticos percursos, negando-se a fundamentalista filiação, a transferências programadas que não raspem o pergaminho e recomecem a escrevê-lo, a reescrever, alternando cortes e referências, desencadeando tensões, sobretensões, indefinidamente, alternando as infinitas turbulências do uivo com espaços onde sobressai o sossego da interiorização. Processo contínuo de descontinuidade, rememorável para que a Literatura comece de modo peculiar a cada recomeço: em vaso furado ou em tubo comunicante, de uma obra a outra obra: na ruptura e na captura.
Em conclusão: Questiono a relação complexa que privilegia subjacentemente a maneira única de escrever, assumindo que é recuperável, num mesmo momento, a literatura heterogénea de autores que desmoronam cânones ou os ressignificam, numa dialéctica de contrários, com a ambição de avançar para uma Literatura perdurável. Em ininterrupto recomeçar que faz conhecer literaturas para a transição da repetição reescrita.
Afinal, permita-se-me dizê-lo, escrever é repetir, é a repetição autoquestionada, proscrita e rescrita [rescrito, alude a decisão pontifícia] de um nenúfar e mais um nenúfar e mais nenúfares.
_________
NENÚFAR RESCRITO, nada de Monet
Escrevo um nenúfar e mais um nenúfar e mais nenúfares.
Ocupo as páginas com púrpuras, dourados acendidos na sombra da sua flor elevada, efémera.
De um antigo escrito rasgo a folha larga,
Decalco, coloco-a sobre outro nenúfar idêntico.
E recomeço a gorgolejar o nenúfar para o pulgão, as folhas mortas e o pregão pascal da florista.
Por que não escrever um outro ainda vagamente nenúfar, por quê? Há nenúfares que me ocupam como se eu fosse
apenas água a reter da negrura, da vida difícil.
O nenúfar rescrito dá o falso Sol, vacilado por nuvens pesadas, a ondulação da claridade.
(Texto proferido na mesa 2 da 9ª edição do Raias Poéticas Online)
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