Os meus livros têm banda sonora. Músicas que oiço em repeat, são como o canal que procuro para sintonizar a emoção certa e então entrar pelos cenários da imaginação. Cada livro que escrevi guarda estes sons como seres que se escondem dentro das páginas e que espreitam tal qual fantasmas que alguns leitores conseguem sentir, outros não. Estabeleço com estas composições sonoras uma relação para toda a vida, mesmo depois de entregar o livro e de ele circular por aí.
Dead Combo é a banda sonora de “Dormir com Lisboa”, o meu último livro. A banda faz parte desse conjunto de recortes que compõe tudo o que há dentro do livro, e já não sei dizer se a culpa é minha, se fui eu que os puxei lá para dentro, se é do Pedro Gonçalves e do Tó Trips, que invadiram o espaço do livro sem pedirem licença. Quando os vi pela primeira vez ao vivo no Teatro São Luiz, o Jardim de Inverno não estava cheio. Pedro Gonçalves e Tó Trips eram dois tipos soturnos, vestidos de preto, de olhos baixos e de poucas conversas, no início do que, provavelmente, nem eles sabiam bem do quê. Tocavam com alma e a escuridão do palco dava apenas lugar a essa luz que vem de dentro quando alguém faz o que está predestinado a fazer.
A composição em palco, tão longe das simpatias forçadas e do fogo de artifício das bandas com pretensões, focava-se no essencial: a música. A intimidade nascia dos sons metálicos da guitarra, do ar quente que cada acorde soprava, da nostalgia do assobio do amolador que qualquer lisboeta recorda com carinho. Tó Trips batia com o pé ao som do compasso, cada vez mais rápido, cada vez mais forte, como se uma corrente o ligasse fisicamente ao som que lhe saía do peito e da guitarra. Pedro Gonçalves segurava o contrabaixo num consolo mútuo, músico e instrumento que iniciam um desafio do tipo “quem dispara primeiro”, para no fim, entrarem no pub e rirem os dois da situação. Dois músicos sombrios que teimavam em virar costas ao público como uma timidez assumida, ou apenas uma declaração descarada de que a música é afinal a única coisa que conta.
Encenação? Talvez, mas por bons motivos. A verdade é que assisti a muitos espectáculos de Dead Combo e sempre sob o desígnio de um sonambulismo premeditado. Olhando para o palco, é a música que salta à vista e, depois, cada um imagina o que quiser. Eu fico hipnotizada, numa luta entre o acordar e o sonhar. Entre os sons articulados dos instrumentos surge uma Lisboa em sépia com crianças que chutam à bola e correm atrás dos pombos, e o eléctrico sobe e desce ruas estreitas, frequentadas por personagens banais com histórias banais, ou por outras misteriosas e então Salvador Dalí surge por detrás de esquinas e quiosques com o seu bigode afiado e olhos arregalados para ver que Lisboa é esta. Dead Combo é isto, uma mistura saudável do que me é familiar em
Lisboa, do que imagino que tenha sido vivido nas ruas por onde passo, mas sempre com um toque de loucura típica de uma noite de febres onde o sonho tem vários princípios, meios e fins.
Mas agora já toda a gente sabe disto. O sucesso espalhou os acordes da banda por todo o mundo, bem como estas duas personagens que continuam sombrias e de poucas palavras. E foi com poucas palavras que a 1 de Outubro os Dead Combo anunciaram o seu fim. Não vale a pena lamentar a notícia e emudecer. Eu cá não lamento. E não é porque a banda vai continuar a tocar em repeat nas colunas cá de casa via Spotify ou CDs. A banda Dead Combo faz parte da minha história literária e num movimento próprio das artes – inspirou a construção das minhas narrativas. Cada vez que leio “Lisboa acordou zangada. Lisboa adormeceu satisfeita. Entre um momento e outro, Lisboa esteve furiosa”, a primeira frase de “Dormir com Lisboa”, a guitarra de “Cowboy’s Cure for Jah” do álbum “Lisboa Mulata” toca ao fundo. Pedro Gonçalves e Tó Trips emprestaram-me estes e outros acordes sem pedir nada em troca. É esta a força da arte e da criação, um movimento que pode começar numa canção, no gesto de um bailarino, numa imagem de um filme, no detalhe de um quadro, e que continua no trabalho de outro artista dando origem a uma linguagem completamente diferente. É um movimento involuntário sem espaço, sem tempo e sem protagonismo. É um movimento livre, sem barreiras. O fim da banda não significa o fim deste movimento. Fica a música que ao longo destes últimos 16 anos inspirou e que continuará a inspirar. Ficam as obras, produto desta inspiração, criadas em silêncio, algumas desconhecidas, de artistas desconhecidos, mas cujo DNA foi afectado. E mesmo que só o artista o saiba, não interessa. O fim já não é possível. Os Dead Combo ganharam ao mais perigoso dos inimigos de qualquer mortal, mas principalmente de qualquer artista: o tempo. É que nisto das artes, anda tudo misturado num sistema de relações e já nem o tempo é capaz de voltar atrás para tirar os acordes dos Dead Combo de todas as obras que eles tocaram. Eu confesso-me agradecida. Faço-lhes uma vénia e volto à minha aparelhagem de som; carrego no replay desta “Lisboa Mulata” e sento-me a ouvir, disponível para a música e para o surrealismo que a acompanha.

Foto de Fausta Cardoso Pereira
You might also like
More from Fausta Cardoso Pereira
Tornado – quando as acácias se esqueceram de florir
Quando gosto de um livro digo-o a toda a gente. Quero partilhar o privilégio do contacto com boa literatura. Quando …
GALEGO-PORTUGUÊS – da teoria à prática
Um galego entende um português? E um português entende um galego? Falam a mesma língua? Falam línguas diferentes? Escreve-se tanto …