Pode um homem correr mundo
nos quatro ventos plantar
o rosto, a alma e o fundo
de tudo quanto é seu
que nenhum vento pode arrancar
a raiz da terra onde nasceu
(in Obra Completa / Dispersos e inéditos, Editora Campo das Letras, Porto, 1997.)
A haver viagens que não fez, lugares e pontes por onde não passou; passadas e sinais, que o levaram a reinos que, em sonho, imaginou, só o destino foi para ele, Luís Veiga Leitão (1915-1987), paixão ardente – amor vivido, hora feliz, soidade sua.
Cavaleiro das sete partidas, para o qual correr mundo, com os anos, mais por ele fora passando o tempo, que o tempo que por ele tinha passado, não se cansou de, cortesmente, festejar a vida, e ser, da alegria, ideal mensageiro:
Como o Santo de Assis, que venerava, irmão sol, da criação, da natureza; como poeta, amador da cousa amada, incansável paladino da perfeição e da beleza; como viandante, marinheiro em terra, plantador no mar.
Já sobre a obra de que o poeta, ele mesmo, à maneira de Montaigne, foi matière, que outra recomendação dela mais assertivamente falaria, senão a que a dá como ofício de mestre artesão para o qual a harmonia criativa, preencheu o vazio emocional de que a excelência moral do homem se tornou função reveladora, razão primeira, valor perene?
É que, a provar-se que: “Delimitados somos prelos deuses” (Obra Completa / Dispersos e inéditos, Editora Campo das Letras, Porto, 1997), nunca a alma do poeta foi pequena para ir á luta com eles “na treva mais adunca”, na esperança renovada de, qual Sísifo, os vencer, não fosse o poeta esse guardião da metamorfoses canettiano, que aprendeu a evitar que “a lâmpada da amizade” alguma vez pudesse vir a apagar-se.
Da prolongada ausência com que a Ditadura Salazarista, e o regime autoritário, o forçaram ao exílio de mais de década e meia, em Terras de Vera Cruz / Brasil, onde com a fina ironia que se lhe conhecia afirmara ter “cursado generalidades”, o que se poderá dizer, para lá da ignominiosa afronta pátria, é que viveu modestamente do seu trabalho, decorrente da incerta empregabilidade por que passou, sem pôr em causa as leis da gravidade intelectual e das várias profissões a que teve de sujeitar-se: vendedor de enciclopédias, jornalismo, comentador televisivo, até que o destroçado o império colonial, enfim, trouxesse de regresso à casa-mãe todos os que haviam sido expatriados.
Juntando-lhe as viagens que, antes, e depois da diáspora, muitas foram por reinos nunca dantes navegados (França, Itália, Grécia, Rússia e outros), talvez a ilusão de espírito nunca tivesse contrariado o espírito de ilusão do navegador solitário que merecera demandar paragens nunca vistas, perder países, merecer voltar, fazendo jus à arte de se confundir (anotando, escrevendo, desenhando) com a descoberta de novos mundos que, graças às cartografias do destino, e para quem, do coração, fez bússola, teria sido capaz de visitar, sem desistir de procurar, encontrar sempre, enquanto se ia procurando.
Nota biobibliográfica de Luís Veiga Leitão
Poeta cronista, autor de um livro de viagem por ele ilustrado com desenhos à pena (arte que cultivava com e espontaneidade), Luís Veiga leitão nasceu em Moimenta da Beira, Portugal, vindo a falecer no Brasil, país de acolhimento entre 1967 e 1976, durante uma visita realizada em 1987, a convite do estado brasileiro.
Preso político é demitido do cargo de Funcionário da Federação dos Vinicultores da Região do Douro para passar a exercer outras profissões. Delegado de informação médica, em Portugal; colaborador de imprensa, bibliotecário, locutor televisivo, pesquisador iconográfico, etc., no Brasil.
A edição da Obra Completa (Porto, 1997), inclui os livros: Latitude (1950), Noite de Pedra (1955), Livro da paixão (1986), Rosto por Dentro (1992), bem como toda a prosa do poeta vinda a público na imprensa com o título Crónicas Ambulantes (1957-1982) e textos de auto-reflexão, crítica literária e política.
Representado nas mais destacadas antologias portuguesas e estrangeiras; traduzido para diversos idiomas.
(Nota biobibliográfica do poeta, assinada pelo autor desta apresentação e escolha poética no Dicionário de Literatura portuguesa, brasileira, galega e africana, vol. 2, Figueirinhas Editora, Porto, 2003).
ESCOLHA POÉTICA
Latitude
Que nos cubram de ameaças e de espanto
Que nos cortem as asas mas o canto
Voa muito mais largo do que as penas
(in Latitude, 1950)
Cela 13
As paredes medem só
Inteiriçado corpo no chão
Morrem, ao cabo, em quilha de barco
– Ventre vazio de um porão
Na solidão de charco.
(in Noite de Pedra, 1955)
Relógio
Batem horas. Pancadas de posse
Martelando meu crânio suado.
Batem horas no companheiro ao lado
– um relógio de tosse.
(in Noite de Pedra, 1955)
Marinheiro de Ulisses
Não me prendam ao mastro maior
que o canto bruxo das sereias
me levam ao hímen das águas
Que teu corpo, amor, me leve
ao reino de suas ondas
à púrpura de seus bosques
ao coral de suas grutas
Lá onde o amor e a morte
Bebem pelo mesmo nácar
(in Linhas do Trópico, 1977)
Os grandes amigos
São como as árvores
de grande porte.
Quando elas partem
As raízes ficam
Aquém da morte.
(in Rosto por Dentro, 1992)
{Publicado na Plataforma Macau em maio de 2015}
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