O ovo inicial era Lupária, a terra das lobas,
na selvagem ternura com fanais rotos
e o monte bravio das aguadeiras
que chegavam desde o vale do Pico Sacro
com cheiro a manancial.
Lupária, a terra das saudades antigas,
receptora espermática do logos,
a terra dos relevos torna sol,
a geografia da estirpe longa,
da nossa estirpe de adúlteras,
de mulheres livres,
da nossa estirpe que sempre gorentou
as cerejas primeiras,
da nossa estirpe que paria varões
e desejava filhas por simples afã de viver;
da nossa raça de esperantes vivas;
a nossa raça de heranças femíneas
e olhos verdes com poder de seiva,
de olhos bravios com brilho de faca doce;
nós as filhas da forneira,
a cozer o pão de milho nas manhãs de inverno,
a sobreviver sem fome nos lábios feitos carne
e verso velho;
as raparigas das neveiras em Meixãofrio
a sentir arder o lume nas entranhas
dos dedos gelados;
as filhas místicas dos desejos,
a santa, Teresa, a santa;
as longas sombras de Ramona,
a que voltou sem homem e com filhos,
a linha de luz de Cármen, a dos santos,
os beijos de Antónia, generosos de carne,
o longo percurso de Dolores.
Nós, as parideiras, as mães de mundo longo,
as filhas para o mundo,
as galaicas,
as descendentes da rainha,
da grande Lupa,
a decifradora dos sonhos,
a senhora dos astros.
Contam que houve um tempo no que as terras foram massa única, até que o mundo explodiu mais uma vez e nasceu o Pico Sacro. Apareceram continentes nas duas beiras daquele faro: Gondwana ao Sul, Laurásia ao Norte. As pedras removeram-se e saíram à luz profundidades, com elas, o espírito das mouras.
Do monte Ilicino, sombra das fragas sagradas, ao Libredom, e do Libredom ao Pindo espalharam-se as forças da Terra e das Idades, aguardaram o nascer dos rios e dos carvalhos para procurar olhares e criar palavras.
Desde o pé deste Ilicino, que chamamos Pico Sacro, vejo cada tarde a bela Lupa, a donzela encantadora, a mãe destes vales, a rainha velha, passar na sua rua, cultivar a horta, pentear os cabelos.
Em tardes de inverno, visito-a e fico presa de um íris gelado. A sua voz tem séculos de água a fluir desde o coração do mundo. Conta, sem tempo, do nascer dos rios, dos fentos, dos carvalhos, das libelinhas, das cobras e da gente. A sua voz diz escamas de sete cores e dela abrocha fonte de contar.
Já a montanha arqueou pátria sobre o mar.
Aqui deixam as gaitas eco aberto,
intercala um universo sons de fada
e ficam silêncios por criar.
É idade de plenilúnio, de geadas,
noite em lar.
O lume sabe de retornos.
Voltou a cinza a dispersar
lembrança longa
e o achádego procura cultivar
rostos e palavras,
perdido este naufrágio no borralho,
descoberta esta arca no sentir.
Prometem os presságios revoltas com flor de cerejeira,
no tempo verde do carvalho,
olhar de paz e luz no coração.
O lenho que hoje arde será terra
da semente plena
em sonhos por lavrar.
A velha Lupa verque tempo no círculo e as estórias podem ser.
Fiava quando levava as pedras na cabeça e deixava a tarefa para chanta-las. Assim construiu um castro, e marcou com o dedo maiminho desenhos nas peças sobrantes. Encantou cada pena e ficou a viver na menor delas, perto do rio Sar. Morava na pedra-moura, na rocha encantada. Ali guardou a roca de fiar e com ela o tesouro do seu amor. Era velha como sou eu neste tempo, por isso podia tender um arco e baixar por ele as pedras do céu, mas quando entrou na pedra moura, foi para aguardar. Deixou invernos passar, sentiu o tempo do calor na sua fibra de pedra, partilhou consigo mesma os diálogos da memória e saiu quando um rapaz sentou no seu penedo. Espelhava a água empoçada a figura gentil do homem e a jovem mostrou-se engalanada para namorá-lo. Os loiros cabelos que a adornavam tinham sido fiados com ouro puro e o brilho da pele da moura refletia a cor das luas transcorridas. O rapaz, deslumbrado, não podia acreditar. A moura perguntou “Queres o meu tesouro?” ele não podia querer senão o seu encanto e assim disse. Ganhou vida eterna e amor ditoso na mesma rocha da que ela tinha aflorado. O lugar onde ficaram resguardados não é longe daqui, ganhou o nome de A Rocha, na exaltação da pedra-moura que ali continua.
O silêncio criou-se em Lupa como uma licença do sentir. Depois retomou genealogia de irmãs.
Percorria a lavandeira velhos caminhos de sonhos:
cantava e branqueava os dias no sol-pôr do rio novo,
enquanto o sangue esvaia linhas de luz sobre a água
e os espíritos diziam no reflexo das palavras
cristais de frio com penas no oco longo das mãos brancas.
De morte lavava prendas a lavandeira entre as canas,
então as armas batiam e os silêncios batalhavam.
Os braços tornavam lua um leve entornar de asa
e desciam encarnados em ave líquidos olhos,
revoltados sobre a idade os ninhos azuis do corvo.
Eu queria retomar-nos sobre o tempo em luz de alvas,
lamber uma terra virgem no bico de Morrigana
pentear-me ao pé do poço
espelhar-me então no povo
e sublevar-me em cantigas de lavandeira encantada.
Chamam-na meiga: a mestra, a sanadora. É temida, porque é mulher e sabe, mas é uma de nós, as que sabemos. Se oculta no lavadouro da nascente do Pontilhão, perto da tua casa. Encontraram-na há poucas noites umas raparigas que voltavam a casa depois da festa. Não esperavam ver ninguém ali àquelas horas. Saudaram. A lavandeira retribuiu e aproveitou o encontro para pedir ajuda às meninhas que se achegaram solícitas à que julgaram vizinha. Ela tendeu a roupa para que lhe ajudassem a torcer e foi então que as moças, assustadas, viram o vermelho que tingia a água e a prenda, rápida, uma delas, que tinha escutado os contos ao pé da cozinha velha, destorceu e percorreu caminho. A companheira que não virou o sentido que a meiga lhe tinha dado ficou encantada na forma de um salgueiro, para ser no tempo minha irmã. Correu a amiga no caminho dos seus saloucos e contou o que tinha acontecido, ainda fico estranhada que não tenhas assistido aos lamentos, mas se calhar o meu agora é longo de mais para o teu tempo. Chorou a aldeia inteira ao pé do corpo da rapariga que apareceu no regato, enquanto o vento acarinhava os ramos do salgueirinho novo.
Ficou o ar denso e a memória do escutado na casa da avó a dançar com este eco.
Abrolham mananciais das mãos da deusa.
Os segredos do éter pairam no espírito
com voz de silêncios milenários.
E pousa um papo-ruivo no ramo despojado do pessegueiro novo,
o mistério encarnado neste frio de inverno,
no estatismo de um pulo retorna o universo,
entorna-nos céu.
A percepção vertical revela
o equilíbrio do tecto a inexistir.
Que não caia sobre nós o firmamento,
Que desçam as alturas de uma aura
e chova horizontal numa montanha,
por sermos cosmos partilhado
a expandir.
Sorriu com lábios novos a velha Lupa. Sabia que era encanto para mim o seu contar. Passou a mão no cabelo que semelhou de ouro no último sol do inverno e mais uma vez falou:
Foi no encontro do rio Sar com o Sarela onde um labrego parou. A jornada tinha sido longa e a sede não perdoava, ajoelhou—se, fez copo com as mãos e bebeu. No momento de erguer-se viu uma peça que brilhava entre as ervas, procurou e viu que se tratava de um fermosíssimo pente, forjado com o ouro que a Terra entrega, nunca com o roubado que amaldiçoa a quem rompe a paz da Mãe em violação. O homem voltou a casa feliz com o achado. Contemplou até bem entrada a noite, sem poder engolir comida até que o sono chegou. De súpeto, uns golpes o acordaram. Batiam na porta uma e outra vez. Abriu. Ninguém. No dia, o labrego pensava feliz no seu pente e contemplava, nas noites sonhava com ele até o brusco acordar que se repetia. Uma voz acompanhou na novena noite aos golpes na porta: “Devolve-me o meu pente se quiseres descansar”. O homem compreendeu. De manhã deixou o pente onde o tinha encontrado e viu como o apanhava no bico uma galinha de ouro seguida de sete pintainhos, para entregar-lho à xana que sorria desde as águas.
São muitas as nossas formas, os nossos sentires, a cobra, a chuchona, a marinha, a assumcorda, a marimanta, a dona, a feiticeira, a agoireira, a dama do castro… As nossas histórias pairam nos caminhos, ficam nas antas, erguem nevoeiro nas montanhas, por enquanto estas três a criar mundo.
PARA PROCURAR:
– http://www.masalladelaciencia.es/reportajes/lugares-encantados/78-lugares-de-leyenda-pico-sacro-la-montana-magica-de-galicia
– http://andrepenagranha.wordpress.com/
– http://omundodaslendas.blogspot.com.es/
– http://anuariobrigantino.betanzos.net/Ab2002PDF/2002%20039_062%20Marcial.pdf
– http://www.blogoteca.com/archetenrreiro/index.php?cod=100136 (Palestra de Branca Garcia Fernández-Albàlat
– http://www.galiciaencantada.com
– http://books.google.es/books/about/Etnograf%C3%ADa_y_folklore_de_Galicia.html?hl=es&id=5_vZAAAAMAAJ
– http://www.rios-galegos.com/lendas.htm
– http://www.boqueixon.es/downloads/biblioteca/cova.do.pico.pdf
– http://www.culturagalega.org/noticia.php?id=19457
– MARIÑO FERRO, X.R., La brujería en Galicia, Ed, Nigratea, Vigo, 2006
– PABLOS, Francisco, Centón de leyendas y mitos de Galicia, Ed. Nigratea, Vigo, 2002
– GARCIA PORRAL, X.C., Lendas castrexas. Antropoloxía da tradicion oral no concello de Lalín, Ed. Lóstrego, Santiago de Compostela, 2010
– ALBERRO, M., Paradigmas de la cultura y la mitología célticas. Ilustrados con sagas, Ed. Piedras Angulares, Gijón, 2010
– BALBOA SALGADO, A., A Galicia celta, Ed. Lóstrego, Santiago de Compostela, 2007
– CARRÉ ALVARELLOS, L., Las leyendas tradicionales gallegas, Ed. Espasa-Calpe, Colección Austral, Madrid, 1977
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