Os galegos fazem clara diferença entre “lume” (de arder) e “fogo” (de explodir, com pólvora). Os portugueses (que bem conhecem os valores das duas palavras) inclinam-se por confundi-las. Os galegos dizem que “há lume no monte”; os portugueses alarmam-se de que haja “fogo na floresta”. Mas uns e outros falam em “armas de fogo”… Como repetia o grande professor Ernesto Guerra da Cal, “Todo o galego está contido no português”; ao que outros respondem que “o português é galego falado com vícios de Lisboa”.
Hoje andamos de novo entre lumes acesos sobre como escrevermos o galego, sobre as coincidências de fala e escrita que alguns “académicos” tentam ocultar… Mas vamos deixar a coisa aqui e falemos de música, das pontes sobre o Minho e do muito que fica por fazer para que se conheçam bem as gentes duma banda e da outra do Rio Pai.
Isto vem ao conto de que se está a apresentar um trabalho trans-fronteiriço e emocionante titulado De Portugal a Galicia Fado (sic, nem sequer Galícia, como escrevem os brasileiros). A autora é a Maria do Ceo (não Céu), cantante que vai escalando degraus na simpatia dos povos da Gallaecia e a Lusitania. Ela é uma mulher de duas terras que não lhe dividem o coração: o seu coração é de toda a parte onde a gente entende a fala comum. Nasceu portuguesa mas as circunstâncias da vida fizeram dela galega, por sinal dos áureos pagos de Ourense, a cidade que se deixa beijar pelo Minho.
A senhora dona Maria do Ceo (que em boca de galego soa a “céu”) tem uma voz límpida, penetrante, e uma dição para lições de galaico-português, pois é capaz de distinguir subtilezas entre as falas do Norte e a que se impôs a força de poder político desde o Sul (“um idioma não é mais do que um dialeto com um exército a respaldá-lo”). Ouvindo-a cantar, volve à mente de quem a escuta (e sabe de História) aquela velha cantilena de “Ai, se a capital de Portugal tivesse sido o Porto: não haveria nem português nem galego, mas a mesma língua”.
Acompanhada por músicos certeiros, a Maria arranca com força de fadista pronunciando um português não lisboeta mas universal, capaz de impactar nas almas de todos os africanos e os americanos que não sofrem as “derivas oficiais” desde o calão da Mouraria servidas pela RTP. Maria do Ceo canta em português do Norte peças emblemáticas do fado da beira do Tejo. Para os seus fãs de aquém-Minho é um agasalho: as vogais da cantante são as dos galegos e as dos brasileiros, não engolidas, obscuras, como as das senhoras das casas de fado de Lisboa (ou as suas imitadoras no Porto).
Ora, chegando a como modula a língua da Galiza, chapeau, madame do Ceo: nova lição para certas cantantes galegas incapazes de pronunciar com jeito todos os fonemas da sua Mátria (notoriamente o “elhe”, tão galego como português). A sua versão “celestial” dos meus versinhos de mocidade faz-me brotar água nos olhos. Que bem me soa!
E devemos aplaudir-lhe a escolha de canções galegas que fez para disco e palco. Cumpre-me não cair na emoção gratuita quando vejo Tenho saudade entre elas. Já foi dito mil vezes que é “a melhor balada da história da canção espanhola moderna”. A Maria do Ceo supera a versão de Andee Silver (e não sabemos se a do Júlio Iglésias, que nunca publicou por tristes questões “monetárias”). Dá no alvo. Era fácil. Como dizia a minha avó, “com presunto todos os pratos têm gosto”.
Mas esta mulher valente não fica tranquila com um “número 1” nas listas do pop espanhol (casualmente cantado em galego pelo genial Do Barro). Ela introduz um repertório “sem respaldo de Madrid” (falemos claro: em Portugal só existe o que existiu em Madrid. O Eixo Madrid-Lisboa é fortíssimo). A Maria atreve-se com clássicos galegos desconhecidos no além-Minho, como um Negra sombra que causa arrepios, um Lela que faz namorar a qualquer alma sensível (outro génio por trás da canção: Castelao)… Não esquece as canções do povo anónimo e mesmo faz belíssima homenagem àquele homem consciente da “galeguia” global que se chamou Carlos Casares Mourinho…
Desde este recanto da Palavra comum vaia o meu aplauso à Maria do Ceo, portugalega ativa, empenhada em mostrar o que mais a inspira como cantante nas duas partes duma nação natural (que a política dividiu e ela une com paixão de artista). Todos os galegos ficam-lhe com dívida pois, no momento de fazermos contas, a proporção deles amantes de Portugal é muito maior do que a dos portugueses sequer interessados na Galiza (“quatro molestas províncias espanholas” que lembram as origens da nação conquistadora de mares e terras longínquas para os nacionalistas portugueses, ainda alimentados pela historiografia oficial do Estado Novo).
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