Sentir o vazio nos olhos, só buratos são agora, e nos braços que algum dia recolheram os filhos e agora… Com o amor transformado em terrível ira, o corpo converte-se num féretro que os alberga. Ficar presa no epicentro do horrível dum funesto feito. Só ficam as bágoas derramadas aos borbotões ao lado deles. Sofrer, chorar. Quiçá só esquecer. Assim o feitiço se transformou em vento ferido sobre a terra. Ventos que levavam a maldição. Promessas de amor eterno que não foram cumpridas. Quem ousa apagar esse sonho?
Ela amava. Amava tanto. Amava até o ponto de querer a sua morte. Mas não. Não o fez. Optou por matá-los a eles: seus filhos. Eis o mito. Medeia. Medeia mata os seus filhos. Por que? Dirá o coro. Por amor. Pelos deuses. O destino fatal. Predições do oráculo. As suas próprias visões. A ama-de-leite não lhe devolveu a razão. As gentes deixaram de querê-la. Queriam a sua morte. Vingança. Jasão não cala. Dói-lhe. Muito. Mas elegeu a outra: Medeia toleou. Deixara-o tudo por ele: família, mátria. Agora que? Perguntaria. A sua tolémia converteu-na em assassina.
Conta-me Olga Novo que Luz estava possuída por Medeia durante a escrita do livro (Medea en Corinto). Luz (diz-me ela) não queria que a sua Medeia matasse os filhos. Não podia. Mas acabou matando-os.
Medeia fere na memória como lume nas mãos, lume que não se apaga com o sangue. Resistir a decomposição do real como bálsamo para cicatrizar as nossas próprias feridas. Abrir os olhos e sentir-se atravessada por um raio que foge da tormenta em Corinto aceitando o imperativo da proibição de decidir sobre outras vidas. Se atravessarmos Europa até Gallaecia veremos as doces imagens que ela contemplava em estado de êxtase frenética até o posterior delírio que a leva a actuar loucamente. Não existe nela um estado claro de consciência, mas a renúncia a ser mãe dos seus filhos. Renúncia fatal.
O vazio enche-se de sangue. Sangue que brota do seu ser desolado. Medeia enche-nos de tristura e faz-nos chorar pelos nossos filhos e ateigamo-nos de medo e misericórdia. O destino fatal, o sino. Somos sujeitos donos de nós próprios? Somos sujeitos livremente actuantes? As suas visões apocalípticas retumbam como um eco na montanha sagrada, quiçá de Corinto, quiçá de Gallaecia. Por que namorar-se doutra, Jasão, que te desiludiu de Medeia? O amor líquido já nos tempos da Grécia clássica escorrega entre as lembranças e o nascimento de uma nova paixão. Por que o fizeste, Medeia? Por que?
NOTA: a obra que acompanha este artigo é de Frederick Sandys.
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