O Rap não é apenas um género de música, é uma forma de crítica social, de expressão e descrição de uma confinada realidade. A definição da palavra «Rap», isto é, a conjugação de «rhythm and poetry», revela o seu espírito artístico. Ele, consolidou-se com o tempo e deixou de ser uma oposição ao racismo norte-americano que assenta no «american dream». Sem fixar-se na época conturbada ou de ouro, o Rap não é só negro, na medida em que se alargou a outras minorias como as hispânicas, aos brancos e, posteriormente, a outros negros e aborígenes que acreditam que podem exteriorizar as suas zangas por meio de uma base poética.
Para o caso moçambicano, o Rap ainda se infunde na ideia americana (aspecto negativo). Contudo, não está ligada a actos de vandalismo e delinquência dos seus actores (aspecto positivo). Mesmo existindo rappers inspiradores de países de língua portuguesa como MV Bill (Brasil), Valete (Portugal), Ikonoklasta (Angola) e que são referências na lusofonia, alguns rappers moçambicanos estão ainda aglutinados ao «american dream» por ele evidenciar-se como o, verdadeiro, lugar da auto-realização e de acesso a fama. Os estilos musicais evoluem, aglutinam-se aos outros e recriam-se para obter novas subtilezas sonoras. Ele, por não ser um elemento exclusivo têm-se confundido com outros géneros musicais ou tem servido de suporte para os mesmos. Por exemplo, já ouvimos experiências de Rap-Rock (Jay-Z e Linkin Park), Rap e Jazz (Mos Def e Rony Jordan), Rap, Samba e Bossa Nova (Marcelo D2 e Gilberto Gil) e Rap e Instrumentos Tradicionais Africanos (General D). Em Moçambique, a fusão do Rap com a Marrabenta teve o seu auge com o grupo Mabulo. Contudo, antes do Projecto Mabulo o Rap moçambicano fez despontar o Pandza. Ou seja, alguns rappers tiveram de desertar do sentido clássico do Rap e tornaram-se «mainstreams» (comercias) fazendo, editando e comercializando o Pandza. E o grupo que inaugurou essa nova era, foi Xtaca Zero composto por Duas Caras (Xcopeta), Jay Pee (Galo da Zona) e N-Star (El Negro).
Uma apreciação básica: Pandza (que significa «rachar, partir» em Xichangana) não é um termo novo na Música Moçambicana. Esta palavra é recorrente em algumas músicas do género Marrabenta ou da Música Ligeira Moçambicana. Por exemplo, Eugénio Mucavele faz uso desta palavra referindo-se a uma mulher que não quer ficar no lar porque ela quer «mapandzar a vida» («curtir ou amantizar», traduzindo contextualmente o trecho da música). O outro exemplo merecedor de ênfase é da cantora Zaida Chongo que, em cima do palco, no auge da dança dizia «tsova, / nipfune kutsova (parte / ajuda a partir)» que, de algum modo, tem uma similaridade com a palavra «pandza».
Com o descerrar do Pandza surgiram, obviamente, duas alas. Os «puritanos do Rap» (declarados undergrounds) e os «liberais do Rap com tendências Pop» (proclamados bounces). Contudo, não é só a própria música e mensagem do Rap que sofreu mutações com o surgimento do Pandza. Mas, também, as próprias vestes e as simpatias político-sociais. Os puristas do Rap condenaram veementemente o Pandza num argumento que se sustentava no seguinte substracto: os «rappers de gema» devem preocupar-se em manterem-se fiéis as ideologias do mesmo, obtendo o reconhecimento dos seus seguidores que, por seu lado, valorizam a construção harmónica de base predominantemente electrónica, vocalização virtuosa, tom declamativo, bem como a construção das frases, por vezes de articulação complexa, que componham uma mensagem «eficaz» com versos a rimarem em orações de final imprevisto, que permitam causar um impacto dramático ou jocoso (e. g., Banda Podre, Squad Boss, Hélder Leonel, Simba, Iveth). Os liberais do Rap, fazedores e defensores do Pandza, socorriam a sua deserção com a seguinte tese: com este estilo – Pandza – desfrutamos de maior êxito comercial, pois existe a opção de revelar as invenções musicais de acordo com as leis da oferta e da procura do mercado discográfico, abrangendo um maior número de fãs que se procuram inserir numa «moda» (e.g., Mega Júnior, Fily Baby, Dan O. G, Dj Damost). Também, existia um terceiro grupo que concilia os dois pólos acima mencionados, adquirindo reconhecimento artístico e comercial, embora privilegiem a descrição da realidade que se vive nas cidades, designadamente a nível de conflitos ou aproximações inter-étnicos (e. g., Trio Fam, Vacina Boss/Dopaaz).
Mesmo com a reprovação que o Pandza sofreu, inicialmente, este género musical, rapidamente, tornou-se obrigatório em festas e locais de convívio em Moçambique. A Música Moçambicana recebia mais um género que norteava-se por um discurso musical onde o modo de vida resumia-se em símbolos de ostentação como carros de luxo, mulheres seminuas (de preferência mulatas) e consumo de bebidas alcoólicas de elevado custo (e.g., Zico e MC Roger). Consintamos ou não, a verdade é que o Pandza se tornou uma alavanca económica para alguns produtores musicais, para os fazedores desse estilo e para as editoras que vendiam esse estilo. Ele reinventou uma rede de vários grupos que se estendem desde as audiências, aos promotores, aos animadores, aos educadores, aos técnicos de som. Desta forma, esse género tornou-se uma acção colectiva perante a estagnação da Marrabenta. A Marrabenta perdeu algum espaço por causa deste estilo, pois os jovens vinham com ideias ousadas que sufocavam os altruístas da música que se quer que seja de unidade nacional. Alguns tornaram-se endinheirados com o Pandza. Ele fez surgir empresários musicais e «labels de música»: Xs Label, Bang Entrenimento e República do Pandza. O mesmo, abriu espaço para que algumas mulheres que gostam de Rap, mas que não podiam fazê-lo, cantassem: Dama do Bling e Lizha James. Também, temos de assumir que, o Pandza inaugurou um campo de promiscuidade musical e de uma vocalização vazia. Até já temos «reis e rainhas do Pandza» que engordam publicidades de telefonias móveis e casas bancárias.
Actualmente, temos de assumir que o Pandza é de Moçambique e que germinou do Rap. Obviamente, que poucos são os rappers que se aguentam em pé com esse estilo pois este ainda é trespassado por uma série de contradições que vão desde a violência, à homofobia, ao sexismo, à poligamia e aos incondicionais hedonismos que contrapõem às suas aspirações de um mundo melhor (e.g., Azagaia e Iveth). Contudo, é com o Pandza que a maioria dos moçambicanos, jovens, se identifica. Mesmo, assumindo-se que o género nasceu no Sul de Moçambique (Maputo), os cantores de outras províncias quando querem entrar no cenário musical nacional, principalmente quando emigram para a capital do país, sentem-se coagidos a cantar Pandza.
Os pandzeiros têm os seus erros e as suas virtudes. Eles conseguem produzir, distribuir e nessa lógica a música circula. Este género musical faz parte de alguns rituais e se congrega em alguns momentos cerimoniais do cidadão moçambicano. Mas, também, os pandzeiros inventaram alguma linguagem que não é perceptível para muitos. Dizem frases que gramaticalmente não cabem nos novos acordos ortográficos ou talvez caberão no futuro. Exemplos, dois, retirados de algumas músicas: «na tua maneira de me ver / você que você me quer» (DJ Ardiles); «Quantos bois o teu pai quer» (Romeu Pascoal).
No cerne de toda esta miscelânea de orientações e valores, devemos assumir que o Rap dilui-se e esbateu-se contra o seu principal motor de existência: a luta contra o racismo. O Rap não é só negro, é latino, é branco, é global, mas continua a ter uma identidade grupal, distintivo, embora largamente associado aos negros. Para o caso de Moçambique, «o Rap não se assume como uma música de revolução e nunca o será, pois todas as músicas podem fazer revolução ou não, dependendo do contexto» como sempre defendeu Niosta Cossa. Rap é uma música que tem o seu espaço e com seguidores característicos. O Rap, em Moçambique, tem a dignidade de ter feito nascer o Pandza, o que prova que ele tornou-se híbrido ao ponto de descondensar-se e abrir espaço para que dele surjam novos estilos musicais. O Rap não deixará, nunca, de ser um estilo irreverente e individualizado. De facto, o Rap e os seus fazedores são filauciosos e, por relação, o mesmo se verifica para os que fazem Pandza.
O que o Pandza herda do Rap é a representação do: (i) egocentrismo, (ii) machismo (iii) exibicionismo de mulheres supérfluas no aspecto vocal e linguístico e (iv) recobro do encadeamento na constituição de uma identidade cristalizada e reveladora de formas de articulação simbólica das diversas etnias que constituem a nacionalidade moçambicana. O Pandza deve ser amparado por se constituir como um dos legados de Moçambique. Mas antes de o catalogarmos ou definir o seu lugar devemos, sempre, lembrar que é filho do Rap (arte de ritmo sincopado, análogo aos sons tribais, com um conteúdo que ora é de crítica social, ora evidencia um egocentrismo desmesurado, onde a guerra de rimas é a estaleca determinante).
Se assumirmos os factos, precedentemente, concatenados, sem ressentimentos, podemos, de peito cheio, ir para o segundo estágio e «cantar orgulhosamente para o bem da nossa moçambicanidade», que, também, «o Pandza é nosso filho»!
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