Quando cheguei a Lisboa há algo mais de um ano, com anos nos pés e na alma de percorrer as terras do Barlavento algarvio, vinha com esperanças de renovar aquilo que os manuais refletem como vida e obra. Os que vivemos fora do nosso território primeiro e medimos os anos de vida pelas paragens que fizemos sabemos que o melhor de viver em terra alheia são as descobertas inesperadas. Esperava uma cidade de intensa vida cívica e académica. Recebeu-me, felizmente, a cidade dos poetas.
Samuel Pimenta, jovem escritor português cujo Geo Metria (Livros de Ontem, 2014) quero apresentar com estas linhas, faz parte dessa humanidade em trânsito que flui e dá rosto a esta cidade de Lisboa. Sempre que penso em ele penso na terra, que a história deu em chamar Portugal, mas que é, também aqui, não só território político, mas, por cima de qualquer lógica, terra de humanidade, mãos e frutos, ofícios e árvores. Samuel nasceu em Alcanhões, aldeia do Ribatejo, terras por onde passa o Tejo já largo, próximo à desembocadura, dando vida a uma muito fértil região conhecida como a lezíria, voz que em árabe significa “ilha”, referida originalmente às ilhas que próprio rio forma, com secular sedimentação, no seu interior. Ouvindo-o falar da sua aldeia e da sua infância bem poderíamos chamar a esta breve resenha “onde o mundo se chama Alcanhões”, pois pelo verbo do Samuel ouvimos a voz desse centro mágico dos afetos e as impressões físicas primeiras que falam de um mundo contínuo em que tudo roda, se encontra e faz sentido, casa inalienável do coração que com tanto amor e saber o escritor guarda.
Samuel é filho dos muitos fios com que se foi tecendo o tempo nas margens do Tejo. Como as oliveiras entre as que cresceu, tem algo na alma que lembra o azeite, humilde e sagrado, sinal de civilização e vida coletiva, algo dos alargados horizontes da planície da lezíria e os seus céus imensos, algo da fluidez calma e fértil do rio, algo da matéria óssea da arquitetura gótica do próximo Santarém, algo também da marca histórica de fronteira entre a Europa cristã e a muçulmana, visível nas fortalezas que se foram levantando nesta faixa ocidental da Península Ibérica, audível também nos muitos nomes árabes dos lugares e os outros ecos sonoros com que a língua gerada a norte foi convivendo e dialogando com mais ou menos paz ao longo dos séculos. Este antigo eixo entre o norte e o sul que tem marcado o meu próprio percurso, já não (finalmente não) com desejo de fixar fronteira e fazer guerra em qualquer sentido que guerra e fronteira possam tomar, mas de desimpedir caminhos que a história do poder encheu de entulho e propiciar assim o encontro e a comunicação através da língua que ainda é originalmente minha. Sendo Lisboa uma cidade que como em nenhuma outra do Atlântico europeu se sente a lógica e o imaginário do império (não interessa onde esteja o centro), é de saudar este livro, testemunho de quem se sabe e se ama filho da terra. Conheço o Samuel e o seu hábito de se comprometer, a sua identidade feita de identificações, a sua natureza ligada. Sou testemunha do seu esforço por levar o poder da palavra amorosa ao coração da cidade. Esse núcleo, ponto central de uma grande força expansiva que lhe deu o gesto dos braços abertos com que me recebeu, é o que se sente com a leitura do Geo Metria.
Uma das muitas chaves para interpretar este livro tem a ver com a busca do ponto de confluência entre a vivência da terra incomensurável e a descoberta do ofício poético, cousa difícil nestes tempos que ainda não se desprenderam da superstição da novidade, sobre a que tanto ironizava Rosalia de Castro (por exemplo no delicioso diálogo entre a musa e o poeta que dá início a O cavaleiro das botas azuis). A voz do Geo Metria é a voz do poeta em demanda da arte para a sua vocação. Permita-se-me neste ponto uma divagação sobre alguns paradoxos aparentes da época contemporânea que muito me fazem pensar e que, quanto a mim, dão outra dimensão à experiência poética do Geo Metria. Um deles é a simultaneidade da extensão da universalidade da escola e a transformação do cânon literário dito ocidental, entendamo-nos, os currículos. Durante o último século e meio, à par da hierarquização dos saberes sob a capa da especialização, foram-se perdendo no ensino oficial os modelos clássicos e o ensino da retórica e precetiva literária, cousa que creio muito marca as obras que nos chegam às mãos nestes tempos de crescente monocultura universal, à que muito custa resistir, também na escola. Pode ser que isso facilitasse aquilo da “reinvenção da arte da escrita”, como animava Novalis. Pode ser que isso possibilitasse a abertura do cânon e a descoberta de outros centros de referência. Mas também pode ser que privasse ao cidadão, com formação académica (obrigatória), do saber secular acumulado nas instituições académicas para o domínio técnico da palavra pública. Aquela afirmação que fazem os retóricos, sejam gregos, latinos ou humanistas do Renascimento de que não há oratória sem democracia sempre me pairou no pensamento. Quebrada em grande medida a linha de transmissão da arte poética pela via académica e também pela via da transmissão oral, tenho a preocupação de pesquisar como os poetas contemporâneos aprendem o seu ofício. Procuro apurar em todas as minhas leituras qual é a fonte da invenção, aquele movimento pelo que a inquietação interior e o desejo ou necessidade de comunicar se transformam em palavra material, oral ou escrita. E aí descubro um novo aparente paradoxo. Sendo esta época que faz técnicas até as relações amorosas, tudo continua a apontar para essa estranha balança sempre em desequilíbrio entre o engenho e a arte. Engenho, vocação, o deus que se agita em nós, como o chamava Ovídio, as vias da expressão sublime, esses reflexos dourados que lampejam no olhar, na pele e na voz do meu fraternal amigo Samuel Pimenta.
A poética que se desprende das páginas de Geo Metria apela ao equilíbrio das dualidades, a matéria e a sua medida, cifra da arte e da palavra criadora, uma natureza humana contínua entre estes dous extremos, a necessária preservação da vida e a marca humana da mão que transforma. Surpreende é a falta de referências culturais históricas, a procura do momento inicial, uma espécie de grau zero, essencial e abrangente, da expressão cultural humana. Conhecimento iniciático do ofício, que se demanda desprovido das hierarquias que estabelece a vedação do acesso a um saber criativo que é naturalmente, essencialmente, gratuito, essa magia que pode ser de todos, como lembra aquela Penélope navegante da poeta Xohana Torres. As muitas dualidades do livro, entre a luz e a escuridão, o interior e o exterior, o vertical e o horizontal, a linha reta e a curva, o masculino e o feminino, criam tensões narrativas da iminência de que algo se vai passar na extensão do poema de tão curto verso, com tanto espaço branco à volta. Uma narrativa que volta uma e outra vez ao momento inicial da vertigem da passagem do caos à forma, do “romper a concha”. As palavras evocam formas, movimentos e expressões essenciais (o reto, o vertical, a pedra, o menir, o sagrado redondo, o côncavo, o círculo, a roda, a vida, os mandalas, a dança, a espiral), elementos construtivos primários (a pirâmide, o vértice, a aresta), cores básicas (branco, vermelho sangue) e elementos orgânicos sem distinções individualizantes e sem dispersão descritiva (são árvores, aves ou pássaros, asas, serpentes). Não posso deixar de fazer aqui uma mínima referência, merecedora de mais extenso comentário, à linguagem gráfica do artista João Saramago, que com tão firme traço evocador de formas orgânicas primordiais ilustra a capa e a contracapa e algumas das páginas deste livro, belo exercício de harmonia de linguagens.
Há ainda o ofício do intérprete que aqui assumo e que não quero agora exercer como análise de intertextualidades mas como exercício de diálogo com todas essas outras vozes não textuais que estão presentes na génese da palavra poética. Nem o conhecimento é transferir conteúdos de uma vasilha para a outra nem a literatura é cópia da medida já descoberta nem a interpretação descoberta da genealogia ou, pior, de redes clientelares que a sociologia da literatura pode bem descrever se quer exercer a sua função. Até porque o livro do Samuel nos chama para uma outra experiência. Surpreende pela pureza e a falta de peso culturalista, como se não encontrasse o poeta outra maneira de assegurar a vitalidade da palavra, a verticalidade moral da sua intenção e a inteira liberdade do seu espírito. Quebrar moldes e afirmar a vida para descobrir uma cifra sempre em mudança, quebrar o limite também nas fontes, que se querem primeiras e libertas dessa endogamia que tanto marca a cultura institucional portuguesa (teria de dizer ibérica?), como bem soube ver Eça de Queiroz. Saúdo o livro de Samuel pela sua honestidade frontal, à busca de um referente humano comum, um centro da expressão cultural que nos comunique e liberte, que sei ligada a esse osso moral que liga o escritor à terra. Sei do seu compromisso sagrado com a palavra que a tudo nos ligue, como rio sempre a fluir fertilizando a terra e fazendo possível a vida em comum. Esse movimento contínuo entre o interior e o exterior que marca as páginas deste livro desprende uma poética feita da observação da natureza e de um profundo trabalho introspetivo. Outra parte do labor poético vem do confronto com essa experiência histórica que o poeta não consegue despir e que testemunho na extraordinária capacidade que tem o Samuel de convocar as pessoas à sua volta com motivo de uma tertúlia em que descobre essas fontes poéticas não canonizadas ou de levar a poesia à rua com leituras públicas, entre outras iniciativas nascidas da sua expansiva generosidade. Sempre a necessidade de comunicação, o horizonte da liberdade e o centro do amor como marcas indeléveis deste jovem escritor a quem desejo, pelo bem dele e de todos, tão longa vida.
O Samuel e eu cruzámo-nos em Lisboa, cidade do rio onde tantos caminhos da história comum da humanidade encontram encruzilhada. Curiosa pesquisadora dos caminhos como sou, assim entendo o meu ofício de intérprete que quis exercer com estas linhas, ser leito para que as águas fluam, livres e sem mais medida que o seu próprio ritmo em ondas, sem mais cânon, genealogia nem espaço comum que o amor à palavra, à humanidade e à terra.
“Pórtico
A terra gerou-nos e o céu rasga-nos por dentro.
As estrelas d’alva são mestras, guias peregrinas
e o magma que nos dilata e endurece a raiz que nos liga
a deus, ao espírito sagrado dos filhos que encarnam
uma e outra vez.
A terra gerou-nos e o céu rasga-nos por dentro
sementes que o orvalho nutre e o luar amolece
luz hipnótica da mãe que nos ama do alto.
Sobre as pedras em bruto a brancura do talhe e da mestria.
A terra gerou-nos e o céu rasga-nos por dentro
a liberdade a vida e o esplendor
matriz de um sonho limpo, da profecia cumprida.
Somos os novos homens da madrugada que um sorriso anuncia
faróis que ao bruar das vagas jamais se apagarão.”
(Geo Metria, p. 17)
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