Insinua-se em 1997 com A voz que nos trai, Prémio Teixeira de Pascoaes de poesia; abalroa em ruído no ano a seguir com O corpo de Helena (teatro), A arma do rosto (poesia) e Um prego no coração (novela); e no outro chuta-se fugaz ao Olimpo com Natureza Morta –Prémio Saramago e primeiro da saga. A partir daí, quase um sumiço.
Mas Paulo José Miranda (1965), formado em Filosofia, continuava a publicar depois daquela irrupção. Com dificuldade, rotando o mundo, sem receber atenção. Natureza Morta em 1999; Vício em 2001; O Mal e O Tabaco de Deus em 2002; aforismos de A América em 2008; Com o Corpo Todo em 2011; Filhas em 2012. Romance este, numa Oficina do Livro que já pertencia à Leya, que supus talvez mudança do ciclo, pois o selo por fim parecia querer editar toda a obra nova e anterior. Na iniciativa entra a Abysmo, e o autor volta em oferta maciça: em 2014, A Máquina do Mundo, Todas as Cartas de Amor, Exercícios de Humano (prémio SPA/RTP 2015); em 2015, A Doença da Felicidade; e há nada um último livro de poesia, Auto-retratos. E voltou a atenção do meio, prémios. E voltou também ele ao lar.
Como do seu raro percurso humano decorre um escritor com aura, resulta irresistível aludir à aventura do desvio. Há 4 anos escrevi coluna sobre o autor no SG relacionando-o com o limbo, esse lugar onde ficavam as almas dos não-batizados, incluindo crianças e gente de bem a olhar para um céu negado sem culpa. A metáfora que o Vaticano já enterrou continuava útil, pois revisada a teoria dos Saramagos ser sempre rampa de lançamento ao empíreo topava a excepção do primeiro, que quase ninguém recordava, que custava achar para ler, que estava num limbo. Teria a ver a sua largada constante. Aquando o seu prémio ele já andava com a namorada num festival de cinema na Turquia, veio receber e ficou poucos dias. O Nobel estava de fresco e era o centro de atenção, ninguém ligou muito ao rapaz, voltou para Istambul e comprou uma câmara à namorada. Ela filmou o primeiro documentário com o qual se fez revelação no festival de Tribeca, Nova Iorque, 2006, e ela passou a ser reputada realizadora, Pelin Esmer. Ele ignorado escritor. Entre ambos um namoro acabado. O PJM só voltou em 2004 a Portugal e em 2005 largou ao Brasil, emigrante ilegal ao princípio, sobrevivendo com aulas particulares de música. Viveu no Rio, São Paulo, Florianópolis, Curitiba, por aí. Era difícil achar os seus livros.
O novo ciclo é recente. Foi Filhas e foi o João Paulo Cotrim da Abysmo ir lá procurá-lo. O autor veio teoricamente em visita fazer campanha por junto e conheci-o nessa, de Correntes, ele na noitada rotundo e feroz, eu já a lê-lo e preferindo-o na letra, sabendo que o tipo aí não ia ser mais ignorado. Se já antes havia quem o afirmasse o melhor escritor de todos os que receberam Saramagos, mesmo tudo isto sendo sempre relativo. Se já agora lá vinha ele de escrever e reescrever, voltado do limbo. E depois ficava. Será difícil agora não achar os seus livros.
*
Carlos Quiroga: Um Prego no Coração, Natureza Morta e Vício, eram tríptico sobre o processo de criação em Cesário Verde, Domingos Bontempo e Antero. O plano cresceu em O Mal por culpa da bolsa da Fundação Oriente e Macau ou Pessanha era incontornável?
Paulo José Miranda: O plano cresceu precisamente por causa da bolsa. Esse livro, O Mal, já não faz parte da trilogia do século XIX, se bem que tenha influência directa da mesma. Por outro lado, Pessanha é um poeta incontornável.
–Vício já se devera a outra Bolsa –Portugal parece que te estimava desde o princípio! Por que fugir-lhe assim durante tanto tempo? Era correr de ou correr para?
PjM: A minha vida foi acontecendo. Nada foi planeado, para o bem e para o mal. Talvez estivesse a fugir de mim, cometendo o erro de me levar na bagagem.
–Nesse suposto diário dos últimos meses de vida de Antero andam reflexões, palimpsesto, intertextualidades, O Primo Basílio e outros Eças… Encerrou-se esse tipo de narrativas que revisitam criadores ou fica algum na gaveta?>
PJM: Continuo trilhando o caminho dos outros.
–Terá sido decisivo o romance Filhas, com o seu perfil histórico, do feminino, a saga de emigrantes, para te colocar num mapa de interesse mais amplo?
PjM: Não sei se me pôs num mapa mais amplo, mas estás certo ao identificar esse romance como algo que sai da minha escrita usual. Foi um romance que me impus escrever, muitas vezes contra a minha própria vontade. Se bem que os temas abordados me interessem de sobremaneira.
–Poesia, romance, ensaio, escrever compulsivamente, para não matar e para não te matar… Dizias isso por desespero, apelo, exagero de emigrado? Continuas a dizer?
PjM: Sem exagero e com um pouco de tudo.
–Também dizias que te aterrorizava voltar a Portugal, sair da penumbra, que aconteceu para vencer esse medo?
PjM: Cansei-me do estrangeiro, de ser estrangeiro. Mas fundamentalmente entendi que teria de regressar para que os novos livros pudessem ser levados a sério.
–Toda a tua escrita aponta para a profundidade existencial, turbação do mundo, acreditas que haverá agora público amplo para ela?
PjM: Não sei. As pessoas preferem o entretenimento à reflexão.
–No teu roteiro vital houve algum masoquismo? Era necessário rodar o mundo assim a doer para escrever? Sofrer porque pelo menos escrevem-se versos…?
PjM: Não. Que eu saiba, não sou masoquista. E não acho que se deva sofrer para escrever. Devemos evitar o sofrimento e escrever sempre que se possa.
–Por certo que nas tuas narrativas anda também uma inusual carga poética, seguramente difícil para amplo consumo. Serás poeta acima do tudo ou será ridículo pretender arrumações dessas especialmente contigo?
PjM: Julgo que a minha escrita, mesmo na prosa, é a escrita de um poeta. Não quer isto dizer que seja uma prosa poética, mas que são modos de pensar o mundo que passam pela poesia.
–O romance A Máquina do Mundo, tipo assassino de videojogo em cenários de thriller e recheio de crueldades, podia parecer inesperado na tua linha de montagem, e é raro na própria Lusitânia. Como foi o processo, a intenção, será o “tratado de filosofia heterodoxa acerca da violência” que disse o Valério Romão?
PjM: Sem dúvida, a forma do livro e o fundo onde a narrativa acontece são estranhas, mas há toda uma reflexão acerca da violência e do mundo que liga este livro aos meus outros livros, e que o Valério Romão muito bem viu, ao afirmar isso.
–O título tenho entendido que foi coisa do Cotrim: por que estava vazio tal espaço, que costuma saber bem como ocupar um autor?
PjM: Nem sempre dou importância aos títulos.
–A propósito e agora que tu ficas, e há Abysmo (que bom nome para certos autores!) e talvez outros abrigos, como será a tua urgência do ir a lume? Pode-se adiantar algo do que vai em breve da cozinha, ensaios sobre Eça, Pessoa, outros inéditos?
PjM: Acaba de sair mais um livro de poesia. Sem capa. Entramos logo no primeiro poema. Não há intermediário entre o produtor e o consumidor.
–Para fechar, do nome da antiga freguesia Aldeia de Paio Pires onde nasceste, atribuído à memória de um guerreiro do século XIII recompensado com doação de terras –Pelayo Pérez Correa, e Grande Mestre da Ordem de Santiago: acorda em ti, homem tão viajado, algum eco Santiago, a Galiza…?
PjM: A Galiza sempre me esteve próxima, pois o meu pai é de Ponte de Lima, cidade não muito longe da Galiza. E depois também há todo um imaginário celta que me agrada. A Galiza tem sido uma viagem eternamente adiada.
*
Notas: Fotografias de Francisco Uhlfelder. Esta entrevista foi publicada no número 81 da revista de Biblos Clube de Lectores.
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