NOTA: artigo publicado em 2003 na revista de literatura da Universidade Centro de Guarapuava (Estado do Paraná, Brasil).
A figura e a obra de Rosalía de Castro são inesgotáveis nessa universalidade que seus leitores constatarão, como é demonstrado pelo jovem escritor brasileiro, Andityas Soares de Moura, que foi além da leitura da poeta galega para abarcar várias dimensões de sua obra. A importante e sugestiva incursão de Andityas como leitor, antologizador e tradutor faz uma descoberta interessante e especial para o leitor brasileiro, que se verá, com esta escolha, familiarizado com a obra de Rosalía. Mais que familiarizado, estará convidado para penetrar na sua obra poética, servindo-lhe de guia o próprio Andityas.
“Cantares gallegos” e “Follas novas”, as duas obras primas da poeta nacional da Galiza, são apresentadas nessa breve e essencial antologia de Andityas Soares de Moura que qualquer leitor vai agradecer e saber dimensionar. A presente recolha de poemas é fruto de uma sensibilidade extrema que o antologizador demonstra ao se dirigir para os interiores do pensamento poético de Rosalía, não se conformando em ser apenas um leitor ou tradutor passivo. Qualquer antologia pode ser discutida em função de gostos e de outras prioridades que se lhe possam dar. A que temos diante de nós é o reflexo do legado que a própria autora nos deixou. É verdade que na obra de Rosalía não há carências, mas na escolha dos poemas dessa edição manifesta-se, em especial, toda a força, a vitalidade e a transcendência de sua poesia. Entretanto, deixemos que o próprio tradutor nos dosifique estas primícias, por meio das opiniões e notas espalhadas pelo livro ora editado pela pequena – mas valorosa – editora mineira Crisálida.
Nada obstante, não podemos deixar de explorar em nosso percurso certos traços da personalidade de Rosalía à luz de sua época. Neste sentido, queremos sugerir e reivindicar a autoridade da obra de um autor como o Dr. Domingo García-Sabell que, médico e estudioso, fez uma análise científica de Rosalía. Andityas já nos diz em que circunstâncias ela nasceu, onde morou e um longo etc. Mas aqui é preciso contextualizar outros elementos da personalidade de Rosalía. Assim, não vamos entrar em uma vasta cronologia, mas antes legitimar parte da existencialidade rosaliana, procurando esse perfil que García-Sabell nos sugere ao dizer: “Como terá sido a pessoa de Rosalía de Castro? E repetimos: dois caminhos se nos apresentam se tentamos responder tal questionamento. Um, a consideração dos escassos testemunhos válidos que sobre Rosalía como pessoa existem. Outro, a análise estética, ou estilística, ou o estudo das influências literárias que a conformaram, ou a significação dela para a arte do seu tempo e do nosso. Não. Não se trata de nada disso. Trata-se de investigar, de mexer na dimensão existencial que os versos rosalianos possam mostrar e tentar encontrar neles o senso humano, o seu senso meramente humano”. Isto pode nos trazer certas dificuldades, mas não deixa de ser o referente mais dinâmico para descer as raízes da personalidade de Rosalía em função de sua obra. E é a sua obra o que nos leva de uma maneira eloqüente a captar várias freqüências de sua vitalidade existencial, tal como assinala García-Sabell: “Se nos atemos aos dois livros máximos do nosso poeta, ‘Cantares gallegos’ e ‘Follas novas’, chama-nos a atenção o feitio de sua polaridade vital. ‘Cantares gallegos’ é, para dizer com palavras simples, um livro alegre. ‘Follas novas’ é um livro dramático”.
Extrapolando a questão – e à margem da poesia da autora –, observamos nos prefácios que ela fez para seus dois livros de poemas galegos a confirmação dos critérios do Dr. Domingo García-Sabell, que se circunscrevem a uma análise de gravitação antropológica.
Mas como era Rosalía para além desses fatores biográficos? Podemos entrar em sua amarga vida, marcada pelas primeiras relações, em que a sua mãe trata de ocultar a verdadeira identidade da criança ou pelos traumas que ela tem que suportar por força da sociedade galega da época. Estas transcendências não podem ser afastadas da sua própria origem. Portanto, há uma série de versos que, ademais de comover-nos, ajudam-nos a reconstruir a sua existencialidade. O verso: “Toda a chorar me matei”, impõe um estudo desse pranto perpetuado em toda a sua obra. Mas Rosalía não é apenas a poeta do choro. É também a da raiva contida e justiceira e da solidariedade em favor dos oprimidos. Este é o princípio do segredo vital da personalidade de Rosalía, manifestado ao longo de sua obra. Não é por acaso que vários investigadores que utilizaram paradigmas médicos e antropológicos tenham trabalhado esta questão, como é o caso dos doutores Juan Rof Carballo e Agustín Sixto Seco. O último traça várias considerações desta ordem sobre aquela menina que nasceu em Santiago de Compostela aos 24 de fevereiro de 1837 e que conhecemos pelo nome de Rosalía Rita, filha de pais incógnitos, como se diz na sua certidão de nascimento. Era filha de uma fidalga com escasso patrimônio e de um padre. Mesmo tendo pais, esteve algum tempo em um orfanato, para protegê-los do escândalo, e ainda pequena esteve na casa de seu pai, aos cuidados das irmãs, na aldeia de Ortoño. Com estes dados extraordinários podemos concretizar as essências vitais de Rosalía, tal como nos diz Burton L. Wite: “O futuro do menino fica determinado, em boa medida, aos 5 ou 6 primeiros anos de idade, já que a máxima plasticidade e desenvolvimento do cérebro humano têm lugar antes dos cinco anos”. Tal fica constatado na conduta de Rosalía, que não deixa de ser um modelo destas manifestações ambientais.
O Dr. Agustín Sixto Seco aponta quatro chaves importantes na vida de Rosalía que queremos sublinhar. A primeira é a do seu nascimento que, à luz dos conhecimentos psicopedagógicos, é a origem de uma série de elementos que formam a personalidade da nossa autora.
A segunda chave é a do seu casamento com o insigne escritor e bibliófilo galego, Manuel Murguía, que aconteceu em Madri no ano de 1858. Neste caso, relata Sixto Seco:
“a- Por que casa em Madri Rosalía, ela, tão apegada à sua terra?… Não seria porque está grávida e preocupada, ocultando a sua situação quando pode, longe da Galiza, alheia à sua família?
b- Por que não volta a estar grávida em dez anos?… Depois será fértil seis vezes mais, inclusive com um parto de gêmeos. Mas, por que esse silêncio de dez anos? Não será a sua uma voluntária atitude de negação sexual, em forma de reprimenda ao seu marido, e isto não explicaria a conhecida fama de mulherengo de D. Manuel, com infidelidades às costas?”
A terceira data chave de Rosalía que Sixto Seco menciona é a de 1865-1868, época na qual começam a se manifestar as carências e as seqüelas psíquicas próprias de algumas das suas doenças, que foram avaliadas por diversos cientistas tendo em vistas os vários matizes que mudam a personalidade de quem as sofre. É o que a própria Rosalía nos informa nestes versos:
“Teño un mal que non ten cura
un mal que naceu conmigo
i ese mal tan enemigo
levarame á sepultura.
Curandeiros, ciruxanos
doctores en mediciña
pra esta enfermedá miña
n’hai remedio antre os humanos”.
A quarta data chave é a de 1881, quando Rosalía manifesta a seu marido a intenção de não voltar a escrever em língua galega, devido a uma opinião que se tinha feito contra ela. A sua dor e as intransigências contra a poeta do povo galego fizeram irremediável tal decisão. As mudanças bioquímicas provocadas por um tumor cancerígeno que a leva a sepultura aos 15 de julho de 1885 são a causa de um cansaço acelerado que transforma a sua vida.
Depois de simplificar certos quadros da vida e da sensibilidade de Rosalía de Castro é preciso dimensionar os diversos contextos nos quais viveu. E é assim que podemos visualizar a poeta e a sua obra em correspondência e, também, em dependência com o fato histórico. Logo quando nasce Rosalía em 1837, o ministro da Regência, Mendizabal, consolidava a sua famosa Desamortização, pela qual a Igreja e a nobreza sofreram uma perda notável dos seus patrimônios e das suas influências. Ora, os pais de Rosalía estavam, direta ou indiretamente, vinculados a estes dois estamentos. As guerras carlistas, a depressão econômica e demográfica também são elementos que marcam a época, mas a enorme problemática pela qual passa a Galiza de meados do século XIX, que choca a jovem Rosalía, é a famosa fome de 1853, em razão da qual os camponeses abandonaram suas casas e refugiaram-se nas cidades. Diz o seu marido, Manuel Murguía, que estando ela em Santiago de Compostela, avistou um menino tísico pedindo esmola. Tal fato faz Rosalía tomar consciência da situação. Este impacto é lembrando em toda a sua vida, imprimindo na obra rosaliana uma poderosa crítica aos que ostentavam o cetro e o altar, tal como podemos ler neste extrato de um poema de “Follas novas” intitulado “Treme um menino em pórtico húmedo”:
E mentras qu’ él dorme,
trist’ imaxen d’ a dôr y a miseria,
van e ven ¡a adoraren o Altísimo!
Fariseyos, os grandes d’ a terra,
sin que ô ver d’ o inocente a orfandade
se calme d’ os ricos
a sede avarienta.
O meu peito c’ angustia s’ oprime.
¡Señor! ¡Díos d’ o ceo!
¿Por qué hay almas tan negras e duras?
¿Por qué hay orfos n’ a terra, Díos
boeno?”
Estas reflexões, produto de crises morais, sociais e econômicas que depredam a Galiza, levam Rosalía a assumir posturas contestatórias e revolucionárias, como a que encontramos no poema também de “Follas novas” “A xustiza pol-a man”, no qual nos confessa a poeta:
“-Salvádeme, ¡ou xueces!, berrei… ¡Tolería!
De min se mofaron, vendeum’ a xustiza.
-Bon Díos, axudaime, berrei, berrei inda…
Tan alto qu’ estaba, bon Díos non m’ ira.
Entonces cal loba doente ou ferida.
d’ un salto con rabia pillei a fouciña.
rondei paseniño… ¡Ni-as herbas sentían!
Y-a lúa escondíase, y á fera dormía
con seus compañeiros en cama mullida”.
Rosalía é fiel a seu tempo; critica as irracionalidades do seu tempo, e esta é uma característica que é transferida a outros poetas da época.
Catherine Davies, professora da Universidade de St. Andrews, afirma que a Rosalía de “Follas novas” é uma poeta essencialmente social, o que nos leva a concordar com García-Sabell, quando afirma que “Follas novas” é um poemário dramático. Estes dois autores e críticos da obra rosaliana valorizam uma série de atitudes e enfoques pessimistas nela presentes. É certo que os poemas de “Follas novas” são uma crítica nua aos acontecimentos da Galiza do século XIX, e é a partir de tal crítica que se formou uma nova visão galega do mundo. Notamos a nossa grande Rosalía de Castro descrevendo alguns fatos concretos de seu microcosmo nativo para transcender com eles ao macrocosmo, à idéia universal, universalizando a nossa idiossincrasia. Isto para nós, galegos, significa uma etapa central nas experiências da poeta mais penetrante de nossa nação.
A questão galega presente na obra de Rosalía tem várias dimensões, cada uma delas sustentada por freqüentes dramas coletivos. Um deles é o da emigração, produto da opressão centralista e de uma política com a qual o Estado espanhol manteve a sua indiferença, nunca propiciando uma política de enfrentamento dos males da nossa terra. Ao contrário de Rosalía, que manteve uma constante vigilância. A nossa pátria sofria essa agressão permanente e imperialista, a qual teve de suportar desde 1482, ano em que os reis católicos eliminaram as instituições galegas e tentaram matar a nossa língua, que o povo galego conservou mesmo em face de um enorme número de agressões. Passam-se 400 anos e com Rosalía consolida-se o chamado Rexurdimento literário. Um ressurgir no qual sobressai a sua voz, gritando a favor de diversos espaços reprimidos. Entre eles está o da emigração, que Rosalía trata como o problema mais doloroso e sangrado da Galiza. Os seguintes versos avaliam o fato:
Galicia está probe,
i á Habana me vou…
¡Adiós, adios, prendas
do meu corazón!
Em “Cantares gallegos” o emigrante vê-se envolvido na mais profunda carga de sentimentos quando se desprende de sua terra nativa, o que, em muitos casos, levam-no ao desenraizamento. A primeira fase da separação manifesta-se assim:
“¡Adiós, groria! ¡Adiós contento!
¡Deixo a casa onde nacín,
deixo a aldea que conoço
por un mundo que non vin!.
Deixo amigos por estraños,
deixo a veiga polo mar,
deixo, en fin, canto ben quero…
¡Quén pudera non deixar…!
…………………………….
Mais son pobre e, mal pecado,
a miña terra no é miña,
que hastra lle dan de prestado
a beira por que camiña
ó que nacéu desdichado”.
Em “Follas novas” ela insiste ainda mais no drama, começando pelo prólogo, onde diz: “A emigração e o Rei arrebatam continuamente o amante, o irmão e o marido, sustento da família numerosa: e assim, abandonadas, chorando o seu desamparo, passam a amarga vida diante das incertezas da esperança, a negrura da saudade e as angústias de uma perene miséria”. Estas são as viúvas dos vivos e as viúvas dos mortos, sobre as quais, em um forte e contestador poema, fala Rosalía:
“Este vaise i aquel vaise,
E todos, todos se van,
Galicia, sin homes quedas
Que te poidan traballar.
Tés, en cambio, orfos e orfas
E campos de soledad,
E nais que non teñen fillos
E fillos que non tén pais.
E tés corazóns que sufren
Longas ausencias mortás,
Viudas de vivos e mortos
Que ninguén consolará”.
Rosalía sofreu a ausência da Galiza quando esteve em Madri e é aqui que comparte a sua orfandade com os campos desertos daquela Castela inóspita, para onde os segadores galegos iam a ceifar searas em situações de exploração, durante séculos. Por isto exclamou a nossa escritora nacional:
“Castellanos de Castilla,
tratade ben ós gallegos;
cando van, van como rosas;
cando vén, vén como negros!”
A nossa poeta projeta duas realidades ligadas entre si, emigração e exploração. Se revisarmos parte do processo histórico do movimento emigratório galego à Castela, desde os tempos de Felipe II, comprovamos em muitos documentos sua situação de pobreza e escravatura. Ramón Mesonero Romanos escreve em 1839: “Desse infeliz ser, quase humano, com o rosto maltratado pelo vento e enegrecido pelo sol, não era fácil descobrir a idade; fazia três semanas que havia chegado perto de Madri, com seus tamancos de madeira, em companhia de uma coluna de companheiros de armas, com grandes foices e o saco às costas, suspenso por um enorme pau”. Esta imagem tétrica dos segadores foi plastificada pelo próprio Goya, no seu quadro intitulado “A eira”, que hoje se exibe no Museu do Prado de Madri. Quando Rosalía poetiza este problema, tem em conta a fatídica tradição de nefastos desequilíbrios que se produziam na Galiza, trazendo, evidentemente, os fatos à contemporaneidade.
Outro dos parâmetros essenciais da obra de Rosalía é a questão da mulher na Galiza, que, pelas suas condições específicas, oferece um mosaico bem determinado acerca do tema. Em “Follas novas” a autora faz, no prefácio, uma declaração de princípios em favor da mulher galega. Há poucos textos na literatura da Galiza que têm uma posição tão determinante quanto a de Rosalía. Isto evidencia dois pontos significativos na sua tomada de consciência sobre o panorama feminino galego. O primeiro, por verificar ela, in situ, vários fatos relacionados a tal situação, que são posteriormente reproduzidos em sua lírica. Por outro lado, Rosalía foi uma leitora, além da literatura espanhola, de autoras estrangeiras que manifestaram a sua preocupação com a problemática feminina. No decorrer do século XIX viu-se um ressurgimento, em toda a Europa, de convulsões sociais e revolucionárias em favor da integração e da emancipação da mulher, que se exprime em boa parte da literatura romântica da Alemanha, com Bettina von Arnim e Dorothea Schlegel ou com as francesas Mme. de Staël e George Sand. Sobre este assunto, um professor da Universidade de Mainz, especialista na obra de Rosalía, afirmou: “Uma análise comparativa poderia, sem dúvida, evidenciar como a aventura poética de Rosalía e o seu aporte à nova sensibilidade literária da mulher está sintonizada, surpreendentemente, com certas orientações gerais da Europa contemporânea”.
Na questão há um elemento importante que se relaciona especificamente à Galiza, pois Rosalía é receptora de toda uma tradição popular e oral de cantares compostos por mulheres camponesas. Este fato é corroborado pelo Padre Sarmiento, em 1775, quando diz: “Na maior parte das coplas galegas, falam as mulheres com os homens, e é porque elas são as que compõem as coplas sem artifício algum e elas mesmas inventam os tons, os ares que têm que cantar, sem possuir idéia da arte musical”. Esta interpretação também é aceita, com a leitura de “Cantares gallegos” e “Follas novas”, por outra especialista de Rosalía, Shelley Stevens, estudiosa da relação e do grau apologético das raízes populares de determinados versos rosalianos.
Sobre este tema existe um texto do poeta português Eugénio de Andrade que particularmente me impressiona pelo fascínio dedicado ao poema “Negra sombra”, quando diz: “Foi este poema que me levou ao mundo lírico de Rosalía, um lirismo campesino, ‘como de cepa o de árbol arraigado en la entraña misma de lo popular’, para dizer com palavras de Juan Ramón Jiménez. Talvez por isto, ou ainda pelo que nele ressoa misteriosamente das cantigas medievais, cujos resíduos a poeta bebeu na boca do povo, eu preferi sempre os versos que escreveu na sua língua ‘homilde i-oscura’ com esse amor à Galiza, que é a substância única dos Cantares. (…) A poeta transformava-se assim em puro mito, pois mais do que os versos, freqüentemente muito débeis, o que nele se procurava era uma alma, a alma crepuscular da própria Galiza. E não há dúvida de que quem a procurava a descobria, pois se assim não fosse não seria nunca possível identificar a poeta com o seu povo”.
Eugénio leva-nos a outra dimensão ética e estética da literatura rosaliana. Fala das cantigas medievais que aparecem misteriosamente em “Cantares gallegos”. Digo misteriosamente porque depois de seiscentos anos de silêncio Rosalía revive de forma gloriosa essa antiga herança valendo-se das cantigas populares. Sobre isto tinham razão Antonio e Manuel Machado, no seu “Juan Mairena”: “Não se deve separar o erudito e o folclore, porque o saber popular é cultura, fonte viva de ciência, na qual todos deveríamos beber e ensinar aos demais a beber”. Rosalía semeou este exemplo, compreendendo e penetrando na alma da Galiza popular para buscar horizontes longínquos que lhe dão lugar de destaque no vasto universo literário da pátria comum galaico-portuguesa, cujo atributo e testemunho são os nossos “Cancioneiros medievais”.
As cantigas medievais entram prodigiosamente em “Cantares gallegos”, e qualquer cantar de Rosalía tem o perfume saudoso de trovadores e segréis. Em Rosalía de Castro ainda podemos vislumbrar as jarchas, os zéjeles e as moaxajas árabes de Al-Andalus, aos quais tanto devem as cantigas de amigo que floresceram no Noroeste peninsular. Nessa esplêndida viagem, Rosalía leva-nos, sem que saibamos, ao quotidiano de Airas Nunes e Martín Codax, à corte jogralesca do rei-trovador D. Dinís e até mesmo aos aposentos do rei-poeta Almutamid de Sevilla e ao pensamento de Al-Arabí. Não há duvida de que nos “Cantares gallegos” ressoa a vox populi, mas a mesma já foi ampliada e reconstruída por esse glorioso corpus literário.
Rosalía resgatou a tradição da nossa literatura românica e com ela levantou o maior monumento literário do romantismo. O romantismo literário galego foi tardio e ainda que, erroneamente, se tenha dado assento a Rosalía no romantismo espanhol, ao lado de Bécquer, de Espronceda e de Campoamor, ela foi, na verdade, a precursora do modernismo. Nesta linha de raciocínio pergunta-se o professor da Universidade de Nottingham, Richard A. Cardwell: “Rosalía de Castro, ¿precursora dos modernos?”, e aponta as concordâncias que em 1911 manteve Enrique Díez-Canedo, ao pronunciar-se no sentido de que Rosalía fora mesmo a precursora da corrente modernista. Depois da de Canedo, apareceu a sólida opinião de Azorín e mais tarde as de Juan Ramón e de Unamuno. Cardwell procura os nexos que vinculam a autora à corrente modernista, sustentando que Rosalía antecipou-se à Geração do 98, já que sua obra traz uma série de conceitos e características que mais tarde caracterizariam tal escola literária. Não somente em toda a carga paisagística de “En las orillas del Sar”, poemário em castelhano, mas também em “Follas novas” há grandes novidades definidoras deste movimento que surgiu na literatura espanhola. Azorín soube identificar na obra de Rosalía os aspectos mais característicos de sua criatividade, que mais tarde foram retomados e ampliados por vários membros da Geração do 98.
Kathleen Kulp-Hill, da Universidade de Kentucky, estudou alguns temas centrais da obra de Rosalía e comentou: “Para Rosalía o tempo dói. Desde idades remotas, poetas e filósofos perseveraram nesta tragédia essencial do homem. O tema tomou relevo acentuado em princípios do século vinte – é o ‘sentimiento trágico de la vida’ de Unamuno; ‘o doloroso enigma da vida’ de Fernando Pessoa; e a ‘dolor que es amor’ de Antonio Machado –. Entre todos os poetas de todas as épocas ninguém o tem expressado com mais autenticidade e paixão (amar-sofrer) que Rosalía”.
A nossa autora foi analisada por competentes críticos e investigadores literários, que esquadrinharam com objetividade a sua poética, o que nos permite enveredar por algumas hipóteses científicas que nos fazem considerar os diversos espaços e dimensões de tudo o que significa a obra de Rosalía globalmente.
Mas ao fazer estes apontamentos sobre a modernidade de Rosalía temos que nos remeter a uma consideração muito importante que nos vem de uma das mais lúcidas estudiosas de sua obra, Marina Mayoral, que chama nossa atenção para outro recurso estilístico que pode ser encontrado na obra de Rosalía: o simbolismo. Ainda que a corrente não seja uma das linhas mestras da poeta galega, não podemos desprezar sua contribuição. “Follas novas” é o livro com mais indicativos simbolistas, já que nele a autora fez constar conceitos e prioridades nos quais a metáfora tem um papel primordial, pois revela, necessariamente, o universo da própria Rosalía, mais interiorizado ou resignado, sem delírio, de sua “Negra sombra”. Este, com razão, é um dos mais conhecidos poemas que dinamizam seu simbolismo.
Após termos discutido temas referentes à autora e a seu tempo, é forçoso analisar – ainda que rapidamente – a língua por ela empregada. Já apontamos algumas razões dos quatrocentos anos de escuro domínio colonialista castelhano. O panorama lingüístico na Galiza do XIX era terrível e desolador. O nosso idioma não tinha uma gramática e o pior de tudo era que as classes dominantes, ou seja, a igreja, a nobreza e o funcionalismo, falavam e obrigavam que se falasse o castelhano. Só os camponeses e os humildes da Galiza foram fiéis à sua língua nativa, e apenas graças a eles a fala se salvou. Rosalía emprega a língua popular dos desprezados e a transforma em conceito literário. Nessa predisposição da poeta os últimos foram os primeiros, como dita o Evangelho. O nosso Rexurdimento consolidou-se, e foi a língua o atributo mais forte com o qual a nação galega contou para auto-reivindicar-se. Nesse “dialeto grosseiro” compôs a escritora sua obra prima. O nosso idioma nos tempos de Rosalía, já o dissemos, não contava com gramáticas, dicionários e normativas. É significativo, nessa desordem, como ela utilizou as fórmulas que em cada núcleo de população se falavam distintamente, por falta de normas. A sua dialeticidade é muito explícita no prólogo de “Cantares gallegos”: “Mas ninguém tem menos que eu as grandes qualidades que são necessárias para levar a cabo obra tão difícil, sendo certo, entretanto, que ninguém se pode achar animado de um desejo tão grande de cantar as belezas da nossa terra naquele dialeto suave e mimoso que querem fazer bárbaro os que não sabem que supera as demais línguas em doçura e harmonia. Por isto, ainda que me julgando débil em forças e não havendo aprendido em outra escola que a dos nossos pobres aldeões, guiada somente por aqueles cantares, aquelas palavras carinhosas e aqueles chilros nunca olvidados que tão docemente ressoaram nos meus ouvidos desde o berço e que foram recolhidos pelo meu coração como herança própria, atrevi-me a escrever estes cantares, esforçando-me para dar a conhecer como alguns dos nossos poéticos costumes ainda conservam certa frescura patriarcal e primitiva, e como o nosso dialeto doce e sonoro é tão apropriado como o primeiro para todas as classes de versificação”. Isto é mais do que uma introdução ou justificação para seus “Cantares gallegos”; é uma declaração de princípios sobre o amor e a salvação do nosso idioma, veículo emancipador da identidade do povo galego.
Nesta linha e freqüência do pensamento de Rosalía de Castro é obrigatório fazer referência a outra ordem de percepções, especialmente aquela referente à sua aparente ideologia. Tanto em “Cantares gallegos” como em “Follas novas” há diversos espaços indicativos que nos levam em direção ao protesto. Por meio da reivindicação de certas questões Rosalía aponta, com extraordinária lucidez e claridade, problemas pontuais e concretos da Galiza de então.
Aquela faminta criancinha que ela observara em 1853, nas ruas de Compostela, e a Revolução frustrada de 1846 que terminara com os fuzilamentos de Carral (A Corunha), movimento este que tinha uma conotação liberal, progressista e, sobretudo, na qual os autonomistas (precursores do nacionalismo galego) tinham atuado enormemente, estas e outras frustrações animaram os sentimentos de Rosalía. Ela passou então a descodificar alguns parênteses que se sobrepunham à história da Galiza.
Um dos máximos estudiosos da poeta, o professor Francisco Rodríguez, faz notar que: “Rosalía é o produto da opressão nacional e a alba esperançada da libertação. A sua transcendência será inseparável da nossa história, da história da humanidade que luta para sair do silêncio e alcançar a liberdade concreta, necessária, material, longe da alienação e dos preconceitos da opressão”. Estas palavras de Paco Rodríguez provocam em nós uma busca sintética dos valores da obra de Rosalía com vistas a proclamá-los. Assim sendo, poucos ignoram o contato da poeta com aqueles intelectuais liberais e regionalistas que escreveram em diversos jornais como “La oliva” ou “El eco de Galicia”, de importância primordial e de tendências liberais. Deste grupo mencionaremos o poeta romântico Aurelio Aguirre (seu primeiro namorado) e Manuel Murguía (seu esposo), que foi um intelectual de enorme estatura dedicado às causas do regionalismo político galego e às da autonomia. Murguía foi um dos mais entusiasmados precursores do nacionalismo galego. Há autores que dizem que ele era o grande apoio de Rosalía, animando-a a escrever em galego. Neste sentido, existe um trabalho do professor da Universidade de Santiago de Compostela, Justo G. Beramendi, intitulado “Referentes nacionais en Rosalía e no provincialismo”, no qual se destaca a afirmação em favor da reconstrução de uma nova Galiza, com um novo ideário emancipador. Neste projeto está inserida Rosalía, com seu cantar e sua alabança, que ela mesma justifica no prefácio de “Cantares gallegos”: “Atrevi-me a cantar neste humilde livro para dizer, pelo menos uma vez, ainda que desajeitadamente, aos que sem razão nem conhecimento algum nos desprezam, que a nossa terra é digna de alabanças (…). Mas o mais triste desta questão é a falsidade, já que fora daqui pintam os filhos de Galiza como se fossem a própria Galiza, a quem geralmente julgam o mais desprezível e feio de Espanha, quando na realidade é o mais formoso e digno de alabança”. Confirma-se assim outra prioridade no pensamento de Rosalía, que dessa forma preconiza uma dialética que a leva a atacar o centralismo espanhol refugiado no espírito imperialista castelhano. É a poeta quem assinala:
“En verdad non hai, Castilla,
nada como ti tan feio,
que aínda mellor que Castilla,
valera decir inferno”
Essa Espanha negada em Rosalía é a mesma que despreza a fecunda prole galega e que agora está na alça de mira dos humilhados e explorados da Galiza. Este desagravo encontra no espírito da galeguidade um novo conceito para proclamar a nossa idiossincrasia e, também, a independência de ser galego como principal elemento da superação de nossas frustrações.
“Probe Galicia, non debes
chamarte nunca española,
que España de ti se olvida
cando eres, ¡ai!, tan hermosa.
(…)
Galicia, ti non tes patria,
ti vives no mundo soia,
i a prole fecunda túa
se espalla en errantes ordas..“
Quando lemos o ensaio “Rosalía de Castro y su obra” de Claude Henri Poullain, necessariamente nos impressionamos com o capítulo sobre a angústia existencial de Rosalía, que, no seu pessimismo, é capaz de descrever todo um estado de orfandades pelas quais passa a sociedade galega. Um pessimismo que tem respostas em um contexto político e de identidade espraiado na sua obra. Neste ajuntamento de idéias contrastáveis, podemos surpreender o ego da Galiza em sua tomada de consciência, da qual a nossa poeta foi protagonista. Paco Rodríguez, no seu livro “Análise sociolóxica da obra de Rosalía de Castro”, entende o patriotismo, o populismo e o socialismo utópico da escritora como necessidade de “lutar contra os estereótipos da ideologia dominante (burguesa, eurocêntrica e espanholista) no que se refere ao papel assinalado à sua pátria, a Galiza”.
Tanto na prosa como na poética de Rosalía é muito fácil adivinhar sua busca do ser galego. O ser e o estar, emergindo de uma ordem metafísica e existencial, com a qual chegamos ao sentimento do saudoso. Sim, a saudade (soidade) tem em Rosalía a sua eterna morada, e suas manifestações revelam toda uma comunhão com a própria terra, com a mátria galega. A saudade, esse poderoso sentimento que nós – falantes galaico-portugueses – perpetuamos, é a presença inalterável do ser em seu único estar: espaço próprio e marcado por um sentimento de ausência. Tal é constatável na mágoa dura de quem sofreu ao estar longe de sua terra, e centenas de milhares de emigrantes galegos tiveram tal angústia. Ora, Rosalía dá forma à saudade no poema “Castellanos de Castilla”. Mas há outro poema, publicado em Lisboa em 1884 – um ano antes da sua morte, portanto – no “Almanach das senhoras para 1885”, intitulado “Dende as fartas orelas do Mondego”, no qual aparecem dois protagonistas de origem galega, Inês de Castro e Camões. A primeira, filha do Conde de Lemos, desvairou de amor por El Rei D. Pedro I de Portugal. O segundo, neto de um galego de Pontevedra que fugiu para a Corte de Fernando I de Portugal, por ser contrário ao rei de Castela. Os seguintes versos de Rosalía estão impregnados desse sentimento que visa resgatar a memória com a carga e a presença saudosa:
…do Miño atravesando as augas fondas
en misteriosas alas,
de Inés de Castro, a dona mais garrida
i a máis doce e máis triste namorada;
do gran Camoens que inmortal a fixo
cantando as súas desgracias,
de cando en cando a acariñarnos veñen
eu non sei que saudades e lembranzas”.
Singular transcendência do “eu non sei que saudades”. Na sua potente orfandade, Rosalía busca transcender o outro no comum da terra; a poeta envolvesse em uma essência natural e nativa para resgatar Inês de Castro e Camões, ainda que seja apenas na memória. O poema termina assim:
“¡Ou poeta inmortal!, en cuias venas
nobre sangre gallega fermentaba,
esta lembranza doce,
envolta nunha bágoa,
che manda dende a terra onde os teus foron
un alma dos teus versos namorada”.
A soidade de Rosalía foi uma obsessão para o maior poeta saudosista português, Teixeira de Pascoaes, que nos deixou em seu livro “Marános” a seguinte dedicatória inicial:
“Galiza, terra irmá de Portugal,
Que a divina Saudade transfigura,
A túa alma e rosa matinal,
Onde uma lágrima de Deus fulgura.
Terra da nossa infância virginal,
Altar de Rosalía e da Ternura,
Dedico-te êstes versos, que, uma vez,
Compuz, en alto cerro montanhês”.
Mas ainda não é esta a maior revelação de Pascoaes em relação a Rosalía, já que ele tem outro poema por meio do qual apresenta a poeta galega como senhora de um poder iniciático, envolta na sua mátria, em um processo libertador no que a saudade é gloria e também amor redencional:
Ó Santa Rosalía da Saudade,
Do Infinito e do Bêrço em que nasceste,
Cantora da perfeita suavidade
Da ifesfável ternura que é celeste;
Intérprete da nova Divindade
Que tu, Galiza mater, concebeste,
Teu cántico imortal e redentor
É nossa eterna gloria e nosso amor!”
Estas sugestões de Pascoaes levam-nos ao espaço físico da Galiza ou até mesmo às trevas que Rosalía desafiou em seus variados encontros com a saudade. Assim se expressou a escritora:
“Algúns din ¡miña terra!,
Din outros ¡meu cariño!
I este ¡miñas lembranzas!
I aquel ¡os meus amigos!
Todos sospiran, todos,
Por algún ben perdido.
Eu só non digo nada,
Eu só nunca sospiro,
Que o meu corpo de terra
I o meu cansado esprito,
A donde quer que eu vaia,
Van conmigo”.
Nesta referência Rosalía resume todas as formas de saudade e as vivências que configuram as variadas expressões do saudosismo.
Antes de finalizarmos não podemos deixar de falar, mesmo que resumidamente, de uma das vértebras que consolidam a poesia rosaliana: a paisagem. Muitas vezes confunde-se a paisagem na obra de Rosalía com um elemento costumbrista1. Nada mais errôneo. A paisagem rosaliana surge de espaços geográficos, físicos e sentimentais. Assim, não existe lugar para recantos exóticos ou imaginários. Há um território palpável, uma fisionomia autêntica pela qual transita a poeta. Com a ajuda da paisagem Rosalía expressou sentimentos bastante diversos, tanto no aspecto real quanto no mítico. Entre Rosalía e a paisagem galega existe uma inter-relação tão profunda que muitas vezes não entendemos a nossa paisagem sem Rosalía e, do mesmo modo, não entendemos a poeta sem a paisagem, que nos seus relatos líricos tem um marco geográfico bem preciso, que é o das suas próprias andanças, as quais podemos circunscrever às terras de Santiago e Padrón, as mais notáveis e significativas em suas manifestações poéticas. Possivelmente neste entorno estão resumidas as diversas paisagens da Galiza – que são numerosas –, ainda que Rosalía não as conhecesse. Mas a emoção que ela sente diante da paisagem galega transmite ao leitor mais que sentimento: é uma forma de reflexão que tem por objetivo entrar em outras dimensões e emancipar-se, com a ajuda do nosso meio natural. Não sei até que ponto devemos redefinir o que é paisagem e natureza que, na obra de Rosalía, não têm o mesmo significado.
O formoso ou o feio sempre refletem um sugestivo destino na alma de Rosalía, um destino eloqüente, mas ao mesmo tempo pessoal e privado, como se nota no excerto abaixo:
“Non Follas novas, ramallo
De toxos e silvas sós,
Hirtas, coma as miñas penas,
Feras, coma a miña dor”.
Nessa dor tão privativa, que, entretanto, transcende a mais íntima revelação, constatamos a presença da saudade, força difusora do ser e do estar que se aloja nas paisagens digeridas e sugeridas por Camões:
“Passou, como o Verão, o ardente Estío;
Umas cousas por outras se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento ou desvarío”.
Nestas mesma linha de sugestões, a saudade camoniana dá este outro respiro:
“Que me quereis, perpetuas saudades?
Com que esperanças inda me enganais?
O tempo, que se vai, não torna mais,
E se torna, não tornam as idades”
Sem dúvida Rosalía pode ser localizada nesta casa ancestral e mítica de Camões, na pátria comum dos falantes galaico-portugueses, onde a dor, a paisagem e a saudade – em suas diversas formas – constroem uma metafísica na qual o ser, localizado no estar ou no não estar, dá voz a um anelo muito específico de nossa existencialidade. Em tal contexto, à paisagem sugerida, v.g., por Leopardi ou Rilke, às vezes bastante próxima à de Rosalía, falta a emoção da paisagem galega, elemento com que a autora deu vida a seus versos. Assim sendo, essa idéia universal fica diferenciada graças àquilo que o próprio microcosmos da poeta exige. E a estas exigências responde Rosalía:
“Que me quereis, perpetuas saudades?
Com que esperanças inda me enganais?
O tempo, que se vai, não torna mais,
E se torna, não tornam as idades”.
Assim, é preciso fazer uma sumária incursão nos poemas de Rosalía para verificar a citada inter-relação entre a poeta e a paisagem galega:
“Era ô caer da tarde,
encomenzaba o cántico dos grilos,
xorda a presa ruxía,
brilaban lonxe os lumes fuxitivos”.
Veja-se esta outra peça:
“¡Adiós!, montes e prados, igrexas e campanas;
¡adiós!, Sar e Sarela, cubertos d’enrramadas;
¡adiós!, Vidán alegre, moíños e hodanadas;
Conxo, o d’o claustro triste e as soedades pracidas,
San Lourenzo o escondido, cal un niño antra’s ramas...”
A paisagem em Rosalía não aparece solitária, pois sempre está animada pelos cânticos das aves. Flora e fauna são alguns dos componentes mais interessantes e particularizados de sua obra. Tanto a paisagem galega quanto o naturalismo da época são assumidos por Rosalía, sobretudo no esplêndido poemário “En las orillas del Sar”. Rosalía de Castro foi uma poeta profundamente panteísta, mas até agora não houve quem quisesse estudar profundamente tal vertente de sua obra.
Na escolha antológica da obra de Rosalía realizada por Andityas Soares de Moura notamos como ele percebeu pontualmente cada uma das sensibilidades que convergem em toda a obra da autora de “Cantares gallegos”. Isto não é fácil, a não ser que se trate de um leitor consciente e decidido a vencer o hermetismo com o qual se envolvem as variadas sensibilidades rosalianas. Este é o caso de Andityas, um convertido apaixonado e reverente à obra de Rosalía, adiantado em sua leitura, escolha e tradução. No que se refere propriamente à escolha, frisamos que Andityas soube captar as conceitualidades estéticas e a ordem cronológica em que aparecem na obra da poeta. Portanto, estas minhas anotações e idéias aqui apenas esboçadas são muito bem desenvolvidas no livro que o leitor tem em mãos.
Dessa forma, Rosalía de Castro é uma vez mais traduzida e interpretada com extremo interesse, nessa surpreendente escolha do jovem poeta e intelectual brasileiro Andityas Soares de Moura, que, em outra oportunidade – refiro-me a seu livro de poemas “OS enCANTOS” –, teimou em voltar às origens mais profundas da lírica do nosso cancioneiro, doadora de sentido à literatura galaico-portuguesa que agora é conhecida em todos os continentes do mundo. Assim, Rosalía e Andityas, de mão dadas, protagonizam esta surpresa poética com acentos brasileiros.
Barcelona, 4 de maio de 2003.
1 Segundo o Dicionário Aurélio, o castelhanismo costumbrismo existe na língua portuguesa. Designa uma escola romântica da literatura espanhola que se dedicou a pintar com fidelidade e realismo os costumes populares.
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