PREFÁCIO DO LIVRO A PITORESCA ETNIA DAS PALAVRAS, DA AUTORIA DE BENDINHO FREITAS, POETA ANGOLANO
UMA POESIA DE INCONTINÊNCIAS
Nas mãos tendes um livro de poesia com um título sugestivo: “A Pitoresca Etnia das Palavras”, escrito por um poeta em estreia, mas que levou anos a construir os diversos perfis desta obra-prima, o poeta Bendinho Freitas, nascido em Luanda no ano de 1971. Foi professor de História em diversas escolas do Ensino Secundário e, posteriormente, leccionou Língua Portuguesa no Centro Pré-Universitário de Luanda. É Licenciado em Direito pela UAN (Universidade Agostinho Neto). Actualmente, exerce as funções de Director de Recursos Humanos do Ministério da Energia e Águas de Angola. Esta é, em linhas gerais, a biografia do autor, para o situar minimamente no seu percurso intelectual.
“A Pitoresca Etnia das Palavras” é o resultado de uma selecção que o poeta foi organizando de 1995 a 2010, um período definido para ordenar, depurar e codificar a poesia no seu próprio espaço. Uma excelente iniciativa por parte deste poeta.
Nem sempre se tem consciência de que o poema descanse na gaveta e possa ser visitado quando o pensamento do poeta decide configurar a sua estruturação. Assim começa a primeira parte do livro “Pictoretnia Primária”, que representa esse estado de reflexão por parte de um poeta muito exigente, numa missão que o ocupou no período 1995-2000. Os poemas datados são aqueles que correspondem aos que o autor considerou não alterar a sua escrita original, ao tratar de uma matéria tão sensível que corresponde aos trinta e um textos que compõem as duas partes do livro: “Pictoretnia Primária” e “Pictoretnia Hodierna”.
Por vontade de Bendinho Freitas, o poeta brasileiro Manuel Bandeira irrompe neste poemário com três versos que enquadram a linearidade formal e estética que o poeta angolano recolhe do famoso poema de Bandeira –Poética– e que encontramos no seu livro “Libertinagem”, uma espécie de manifesto e advertência com que modulou o vital do chamado Modernismo brasileiro. Bendinho Freitas faz seu o primórdio para anunciar um novo ditame para a poesia angolana, ao destacar estes versos de Manuel Bandeira:
“ESTOU FARTO do lirismo comedido
do lirismo bem comportado
………………………………………………………….
Quero antes o lirismo dos loucos”.
Um intróito muito activo para advertir-nos das propostas que encontraremos depois. Neste poema de Bandeira avisa-se de outros temários poéticos, ao dizer:
“Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico”.
Para terminar:
“Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare”.
A afinidade de Freitas com Bandeira estabelece-se na compostura de mudar o modelo estético que predomina na poesia do seu país, ou sugere apenas o anunciar do que o leitor vai encontrar neste livro.
E já no primeiro poema, “A vida”, o poeta faz uma declaração existencial, formulando essa polaridade no significado das coisas, na ordem que a metamorfose marca e concentra, nos seus poemas herméticos e esse encanto de explorar a vida desde o pensamento marcante do poeta, com versos tão diligentes como os últimos do referido poema:
“A vida
É polo norte perdendo luz
a caminho da derradeira escuridão.
É um ciclo levantando e recomeçando
no corte da meta existencial”.
O ciclo existencial é crucial neste poeta. Quando aborda uma temática que processa variados estágios da vida humana e, também, oferece não poucas insinuações da vida amorosa. Todo um tecido que marca as directrizes do seu “cântico crepitante do coração”.
Cultivar os dons amorosos é como conquistar o universo e tê-lo nas mãos:
“Ainda guardo nas mãos
Os raios ondulados do sol”
O sol como protótipo de resplendor amoroso que nos desvela o poeta de uma maneira muito subtil, como manifesta nestes versos finais do poema “Universo das mãos”:
“Minhas mãos continuam manchadas de gemidos
Perdidos nos dedos desta memória”.
Que versos mais autênticos e elaborados, nos quais Bendinho Freitas consegue uma expressão de alternativas que configuram um ganho soberbo, fulgurante!
O poema “Evidência” está tutelado por um dos maiores poetas angolanos, já falecido, Ernesto Lara Filho, um poeta muito pouco valorizado e reconhecido em Angola, mas cuja poesia é magistral na inventiva e no fluxo de emissões estilísticas. Bendinho proclama a perfeição e o valor das palavras de Lara Filho, recolhendo do livro Seripipi na Gaiola, os dois primeiros versos do poema “Resposta”, dedicado à Maria do Céu. O poema foi escrito em 1952 e merece ser transcrito na sua totalidade, pela beleza e os acordes amorosos que nele resplandecem.
“não busques nas buganvílias da varanda
a resposta
não busques no horizonte
a resposta
não busques nos bibelôs da tua mesa
a resposta
que eu já a li nos teus olhos”.
Uma tutela excelsa que Bendinho Freitas acolhe como a dádiva do passado literário de uma insurgência amorosa, com muitas referências, que foi dando corpo a uma poesia amorosa muito importante. Não quero dizer que a afiliação amorosa de Freitas parte das distinções de Lara Filho, não. Só transcender que o poema do autor deste livro expressa e impõe novos acordes de solidão que dão sentido ao segredo dos sorrisos que soam nesta sinfonia poética.
Nestes seus poemas de início, Bendinho Freitas cultiva uma tendência amorosa nada fácil, para captar os tempos precisos e não cair em veleidades que estraguem as pretensões de construir um grato poema de amor. Convimos que neste poeta há uma entrega na investigação, nada fácil, para lograr o sentido mais puro dum percurso amoroso sem utilizar essa idealização de converter-se em devoto de uma paixão estereotipada do desejo carnal. Neste poeta há que procurar esse caudal amoroso no vital dos refúgios dessa magia das palavras tecidas com ardor e originalidade, que respiram e ressoam no ritual desses três tempos que exibe o poema “Sonhos esquivos”. Toda uma articulação verbal que permite ao poeta personalizar e dar uma identidade aos seus versos, tanto no sentido hermético como no matiz sintético que ressalta da sua criatividade.
No poema “Sensações” há uma série de palavras que definem o processo amoroso, ainda erótico, dentro dum refúgio de frases como “cabelos do mar”, “no cais dos corações”, “olhos marinhos”, “coral de emoção”, etc. Conteúdos que contribuem para que o verso – neste caso – processe símbolos, mais que significados. Neste poeta o símbolo esclarece o essencial dialéctico de uma proposta ordenada por um pensamento que afunda numa linguagem sem adornos de oratória. Versos esculpidos para erguer uma arquitectura sóbria e rigorosa, que se manifesta neste livro. “Petiscando sensualidade” é outra das jóias que se condensa em dez versos, que nos consegue magnificar esses espaços do sul de Luanda, as praias e a paisagem exibindo os grossos imbondeiros no Futungo de Belas, com a ilha do Mussulo à frente, na verdade uma península. Por esta beira-mar de namoros, com o Museu da Escravatura e a Feira de Artesanato, entre outras presenças distinguidas, está o ser mítico das águas, a Kianda. Uma espécie de sereia mágica que, porventura, aparece e desaparece. Não deixa de ser um ser que fertiliza as águas e dela há a crença de que aparece, por vezes, na ilha do Mussulo. Então, nesses petiscos de sensualidade, a misteriosa mãe Kianda é o ponto de fuga onde o poeta escreve dez magníficos versos de plenitude, onde o amor não flutua, nem faz acenos para sucumbir. É-nos apresentada assim pelo poeta a mãe Kianda:
“A linguagem do seu universo
o líquido céu dos seus olhos
empossam-me
cortejos de chuvas emotivas
quando petisco sua sensualidade”.
Versos para exprimir a emoção mítica, onde o amor se esconde com todas as suas soberanias. Este magnificar erótico está muito bem desenhado e contextualizado nas afluentes passionais da ilha do Mussulo e, também nas grutas, onde o amor crepita exultante pelas diversas dimensões que o poeta impõe. Na temática amatória e erótica, o poeta tem um enorme respeito pelo leitor em não agredir as suas sensibilidades ou opções nesta matéria. Mas nesta linha é detectável um amor sensual, com suas máximas sentimentais proclamando liberdade, desvelando-se e desdobrando-se em luta conjurada contra a alienação e as falsas morais e tabus que impõem tantas inquisições.
Estas particularidades manifestadas nesta primeira parte do livro “Pictorenia Primária” poderiam resultar pioneiras na poesia angolana da década de noventa, quando Bendinho Freitas começou a relacionar-se com os acentos de Orfeu. Dando forma a inovadas expressões inéditas na poesia angolana daquele momento, mas que não publicou. A poesia angolana naquele momento ainda estava um bocado virada à poesia de Agostinho Neto (“Mais Velho” no respeito dos angolanos), o poeta grande da Negritude e primeiro Presidente de Angola, muitos dos novos poetas tentaram seguir seus passos, sem pensar que Agostinho Neto só houve um e que não se podia repetir. Por outro lado, os conceitos utilizados pelos poetas da chamada Brigada Jovem de Literatura continuaram, depois da Independência de Angola, engajados na poesia que tinha uma mobilidade dentro da consigna política, talvez utilitária nas circunstâncias da longa guerra civil angolana. Mas a chamada geração dos oitenta, ou novíssimos, aportou um fluxo qualitativo para uma poesia com novos acentos vanguardistas. Um enorme suporte vindo de poetas como João Maimona, Ana Paula Tavares, José Luís Mendonça, Lopito Feijó e tantos outros. Criando uma poética amorosa muito diversificada que suplantou a timidez dum modelo antigo que significava um amor florescido e não liberta de tópicos. Alguns dos membros da Brigada Jovem de Literatura foram capazes de estabelecer o seu próprio parâmetro criativo, expressando os seus registos amorosos. Mas Bendinho Freitas não pertenceu à Brigada Jovem de Literatura.
Outro dos prodígios expostos neste livro é a singularidade do processo criativo, que se manifesta no poema “Partículas desamparadas”, posicionando o autor num cenário inédito. Neste poema, tanto na forma como na estrutura, produzem-se emergências graduais de uma maneira contundente, onde o amor não é redutível nem flutuante no “sonho d’águas mortas”. Um poema bastante linear e dividido em quatro partes. Um registo de referência e descoberta para leitores muito precisos na captação de todo um inventário de premissas psicológicas, que actuam transversalmente. Também detectámos essas procuras quando o poeta mergulha no espírito helénico, no idealismo humanista da tradição homérica, virgiliana, danteana e doutros grandes vultos que tornaram possíveis esses trânsitos, perpetuando a solidão das essências líricas greco-latinas, na exaltação da razão, da perfeição e da beleza. Três respiros que fulguram nestas assinaladas estrofes.
O poema “À colheita das estrelas” está tutelado pelos três primeiros versos do famoso poema da obra Sagrada Esperança de Agostinho Neto, intitulado “O caminho das estrelas”. Uma espécie de hino à liberdade. A última estrofe do poema do Presidente Neto diz:
“Assim
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
para a harmonia do mundo”.
No poema de Bendinho Freitas assinala-se a longa caminhada pelo horizonte e o “sol em nervos miúdos” da Angola que ainda percorre o “caminho das estrelas” de Agostinho Neto e a “linha do horizonte” de Freitas. Estas duas confluências marcam o heroísmo humano do povo angolano na sua persistência de abrir caminhos e alcançar horizontes para resgatar a sua identidade alterada pelo colonialismo e, mesmo, normalizar-se enquanto angolanos, como enfatizou Agostinho Neto:
“Nós somos
Mussunda amigo
Nós somos”
O drama de Angola e a permanência dos angolanos em serem eles mesmos, levou-os a persistir em todo o existencialismo marcante que Bendinho Freitas destaca, de uma maneira muito bem harmonizada, iluminando várias dimensões do africanismo que se materializa em Angola. Neste poema, respiram os sofrimentos colectivos e, também, o consubstancial do legado mais nítido de uma cultura diversificada que tem um caminho estelar para não ser mergulhado nem desencaminhado por ninguém. Nestes acordes poéticos ressoam tons empíricos de liberdade, nos seus diversos atributos que codificam estes versos finais:
“Lá vão
colhendo estrelas
sustentáculo da sua existência”.
O poema “Sorriso d’água cristalina” clarifica muito bem os ambientes por onde o poeta transcende sem evitar a crítica valente que ele faz e de uma maneira pragmática e categórica. Em poesia nem sempre vale constatar o domínio da forma e dos espaços, senão também os conteúdos das mensagens beligerantes, e não só, que conformem e confirmem que a palavra é soberana em todos os oráculos da composição. Assim o manifesta Bendinho Freitas nos seus portentos compositivos e sem ambição de publicar e sim de mastigar mentalmente o poema, de amadurecê-lo, depurá-lo até conseguir que a palavra seja património de referência na sua poesia; sem pressas nem ânsias de publicar. Observar os níveis de qualidade com que a palavra respira portentos de liberdade, nos seus diversos territórios expressivos e estéticos, confirma que estamos diante de um poeta que protege a palavra e se sente protegido por ela.
No poema “Orvalhando desilusão”, o poeta não profana a sua investidura nas artes e nos mistérios órficos de se materializar na composição, em tudo o que forneça a sua conveniência de utilidade por postular à necessária ordem de mudanças, num estilo próprio. Além da configuração do poema, está a emoção e a tensão que irradia do mesmo, protegendo a palavra e confirmando as suas denúncias contra a opressão e em favor das “vítimas das sombras”. Os versos da primeira e última estrofe do mencionado título são bem eloquentes nesta direcção:
“A sentença temporal
Dividiu-me no espaço.
A cidade misericordiosa
Arquivou-me braços
Engavetou-me mãos
aaaaaaaaaaaaaaaaaa Campestres”.
Termina o poema:
“Ainda assim
Discuto com o regresso! ”
No percurso desta leitura, o leitor perceberá como o poeta se adentra no perfil das palavras e construindo uma linguagem singular, fruto do seu imaginário, que confirma as utilidades que esta tem, em tantas originalidades e fórmulas combinatórias e confirmando que a palavra define esse ritual de exuberância por onde este criador transita. A palavra é sublime em todas as constatações da linguagem e investe de grandeza a quem a trabalha e a erige nos seus registos. Nesta sequência criativa, Bendinho Freitas está numa via de “cultivar a língua” em todas as suas equivalências, como centro de todas as incontinências ancestrais que se manifestam na linguagem, onde afloram acentos ancestrais. Com esta contundência refere o poeta:
“Ainda desfruto
do aquário de palavras
nele respiro borbulhas de letras
cristais silabais”.
No fundo da questão, a poesia tem essa proeminência de sitiar-nos para não confundir termos de diferente ordem, como dizia Carlos Drummond de Andrade: “Há confusão entre verso e poesia; entre estado poético e poesia; entre poesia e poesia”. Drummond também confirmou: “O verso é uma vitória sobre os limites da linguagem”.
Na última estrofe da primeira parte do poema “Cultivar na língua”, há uns substanciosos versos que clarificam os andares do poeta por estes ofícios:
“Queria equacionar uma fórmula
onde todos cultivássemos pombas
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa na língua
para voarem nos céus da boca
pousarem nos ramos dos corações”.
Tem mérito esta segunda parte do poema anteriormente mencionado, por distingui-lo de apelos e louvores em favor dos que precisam de um pedaço de pão, ante a quem o come e nega. Bendinho entra num dos labirintos e refúgios mais perversos dos magnatas da economia e da política; promotores de subsistências e desigualdades. Nesta segunda parte do poema mencionado, diz:
“Ó Césares nossos, desta era:
as crianças do mundo merecem o pão
O futuro aguarda-as
Escutai o gemido do capim esmagado
Repartamos a dor
as feridas do capim
para juntos exaltarmos
uma só aspiração
Meçam a impaciência
dos braços cruzados.
Despertai
Libertai-vos dos glaciares
porque os sinos da história
não perdoam”.
O grito “Despertai”, saído dos silêncios, das não conformidades e dos medos, contra os césares dos novos tempos de exploração, constitui um alicerce sólido na tomada de consciência, de rebeldia e do compromisso do poeta com os explorados deste mundo.
No segundo e último registo deste livro “Pictoretnia hodierna”, encontramos uma certa mudança, incrementando a aposta por uma criação virada para a denúncia social, comparativamente aos poemas da primeira parte. Esta última fase está activada com um alto grau de denúncia e aversão contra os agentes anti-sociais que desumanizam as classes sociais mais desfavorecidas.
Neste segundo período compositivo do livro, o poeta apresenta uma obra sedimentada no rigor e sensibilidade, com que se trata os misteres líricos. Um poemário que nos coloca num cenário inovador, na actual poesia angolana, não só no apelo que faz, mas também, pelo que concretiza, nos percursos rigorosos, quando trata sobre a ênfase das metáforas, o sentido dos símbolos e o refúgio dos significados, evidenciando uma natural coabitação sem dissidências, neste livro. Portanto, estamos diante de um autor que foi tecendo a sua obra aos poucos e amassando-a psicologicamente; uma maneira de não perder o respeito à poesia. Não há, por ventura, escritor sem crescimento. A metamorfose das coisas, princípio e fim, tem os seus códigos, e as suas regras que não devemos ignorar nas composições literárias. Penso que este critério, um tanto particular, remete-nos ao que diz Eclesiastes, no capítulo três: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou”. Este exemplo serve para graduar os tempos compositivos de uma obra literária.
Isto não é redutível para Bendinho Freitas, dado que a sua poesia tem os seus tempos e os amadurecimentos, na palavra, na frase, na forma, no ritmo e na beleza: em tudo aquilo que exige ordem nas suas diversas escalas criativas. A respeito dizia Fernando Pessoa: “No que escrevo, por isso que escrevo, não é abuso que procureis a excelência da forma e o cuidado da frase. É dever de quem pratica as letras, ainda que só para ensinamento, cuidar de como usa o material de que se escreve”. A elaboração deste livro poético de Bendinho Freitas, manifesta que o autor não esteve a brincar com o material com que se escreve e menos com o pensamento que determina a escrita.
Sobre a graduação dos tempos e de elaborar um excelente poema, opina o poeta e eclesiástico Marbodio de Rennes (1035-1123), com esta famosa frase: “Domina as coisas pequenas para perpetuar-te nas grandes”. Ser consciente dos tempos em mudança que marcam estilos em qualquer obra de arte, não deixa de ser muito importante. Por último, ser consciente dos tempos e das modalidades dos mesmos. Como diz Camões, no seu eloquente soneto LII:
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades”.
No poema “Apocalipse do pão”, Bendinho confirma a sua vocação social, humanista e, também, intimista. Quando trata de pequenas coisas, sugere grandes expressões metafísicas, procedentes dessa descarga de sugestões intelectuais. Neste contexto está o poema “Orvalhando desilusão II” nutrido de uma crítica que ressalta as linhas escuras dos poderes dos homens, que obstruem a liberdade e o desenvolvimento das pessoas culturalmente, quando diz:
“Rua dos Mercadores treme de medo
Idosas Igrejas reumáticas Nazarenas rezam.
Carmo e Remédios
Partem em procissão à Muxima
Pedem pelas vidas das edificações profanas
condenadas aos livros
Você engole o passado
Com a arte cega da ignorância”.
No percurso da leitura que faça o leitor, descobrirá um acordar nos seus sentidos pela curiosidade dessa força vital que, naturalmente, nos faz reagir. Se qualquer suposto escritor não ambiciona converter-se em adepto da leitura e conhecedor das generalidades que isto comporta, não passará a ser um simples escrevedor. Nestas atribuições de ser leitor, para resultar ser um excelente escritor, concordamos com as reflexões do sábio e místico Hugo de São Vítor (1096-1141) que expõe no seu livro Didascalicom, propõe o studium legendi como ideal cívico e monástico como aprendizagem de tudo o que se quantifica nos livros, para viver em vida exemplar. Quando lemos os poemas de Bendinho Freitas, estamos descobrindo um excelente leitor pelo que manifesta na sua escrita.
Neste livro encontramos os versos das paisagens tenras e sonhadas, com volumosos imbondeiros e mulembas: dadoras de sombra que oferendam a corpos fatigados na lavra das subsistências e nas planícies luandenses e de outras geografias de Angola. Estamos diante de um poeta de espaços como vemos no poema “Geografia do sonho”, com esta frescura paisagística:
“Bandos de imbondeiros acotovelam-se
com harmonia.
ramos das árvores choram
doces lágrimas de múcuas
quais cometas verticais
suspensos na paciência da idade.
Majestosas mulembas despenteadas
resistem às cabeçadas do vento.
A frescura ganha corpo.
Coreografias de prazer sobem os degraus d’alma.
O coração gagueja
entranhado na geografia do sonho”.
Pelos “labirintos dos sonhos”, por onde e por vezes o poeta transita, reconstruindo a crónica sem dizer e escrever, arrancando a máscara dos preconceitos que ocultam rostos maltratados para revesti-los da dignidade que merecem. Como mostra no poema “Os anjos I”:
“No fim do corredor da noite
Punhados de anjos adormecem ao relento.
Perderam asas para voar,
mas voam
nos labirintos dos sonhos”.
Para o final do poema deixou estes três versos, como lapidário:
“Mas a sociedade deixa a sentença escorregar
no final do corredor da noite
onde os anjos se quedam ao relento”.
Estamos a ver que Bendinho Freitas é um reincidente em explorar e afundar nos diversos estados de opressão humana com falta de recursos, mesmo desde o lado da poesia e da jurisprudência, como magistério destes dois estados, onde a escala de valores tem a melhor medida para sentir e visualizar a derrota dos simples. Nesta beligerância, a sua poesia activa as suas legitimações contra a escuridão dos que suportam exploração e sofrimento. Todo um conteúdo poético que configura mesmo a luta de classes. Nesta direcção há um texto, muito revelador, de Fernando Pessoa, que vem contextualizar a argumentação do poeta angolano. Diz Pessoa: “De um lado estão os reis, com o seu prestígio; os imperadores, com a sua glória; os génios, com a sua aura; os santos, com a sua auréola; os chefes do povo, com o seu domínio; as prostitutas, os profetas e os ricos… Do outro estamos nós – o moço de fretes da esquina, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o barbeiro das anedotas, o mestre escola John Milton, o marçano da tenda, o vadio Dante Alighieri, os que a morte esquece ou consagra, e a vida esqueceu sem consagrar”.
Nos registos deste poemário há uma inquietação que desvela as alienações sociais de uma neocolonização imperante, que não dissimulam o colonialismo clássico europeu, tão imperante e esmagador em África. Um novo ciclo de rapina sem galeões nem espingardas percorre o continente negro. Ante este drama, “os fiscais guardam os olhos nos bolsos”. Que verso fantástico e revelador que nos chega de um jurista, que nos fala da cegueira de certa prole jurídica! A sua poesia é assim de denúncia e profunda, que nos lembra a tomada de posição, nestes dramas existenciais, dos quatro grandes da poesia angolana da Geração da Mensagem: Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz e Alda Lara. A tradição de denúncia nos poetas angolanos persiste de maneira diferente, como é natural, mas sem renunciar às regras que harmonizam a nomenclatura da tradição, sem que isto sirva de precedente para invalidar os processos e as mudanças que trazem os novos tempos poéticos.
Tempos novos nos conceitos, nas formas, nas imagens e na palavra emergente e carregada de uma prodigiosa atmosfera de mudança. Portanto, Bendinho Freitas abastece de coragem criativa e, também, de plenitude, o verbo feito poesia. Transferindo, assim, outra grandeza para a sempre viva poesia angolana. Há poesia porque há poeta que pensa, reflecte e harmoniza os seus versos com o trabalho e não com a inspiração. Certamente, o poeta Bendinho Freitas está muito bem posicionado nestes portentosos espaços criativos que manifesta neste livro, “A Pitoresca Etnia das Palavras”.
Barcelona, 10 de Março de 2016
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