“Somos abatidos, mas não aniquilados” (II, Coríntios, 4, 9)
Ninguém sabe porquê falam os homens
quando podem cantar,
nem porquê esta manhã
em que me ilumina o mesmo sol
que faz amadurecer os figos
do outro lado da janela,
agarrada a uma máquina ganho o pão
que de graça era a minha herança.
Ninguém sabe porquê esta manhã
que não espera mais história que a dos amantes
morro solitária e fermosa
lembrando as ilhas
e os oceanos.
Ninguém sabe quem nos roubou a nossa história
essa que contam os pássaros e os frutos,
essa da primeira manhã dos tempos,
sem mais sequência
que a que vai e vem
no intervalo da onda.
“Quem levantou o muro
esmagando as rosas?”
Mas ainda posso ouvir
o nordês que não me esquece,
o mesmo que guiou o meu avô até à América
pelos caminhos do sol
e que hoje acaricia o lombo da cidade.
Há outra história do homem
escrita na pedra que aguenta o embate da onda,
nas ervas que crescem na beira da estrada,
no teu olhar em que lampeja a sombra da floresta
que nos procura,
cena repetida da única cena que importa,
essa em que não estamos separados,
a da ordem certa das cousas,
a casa da mãe e a mesa posta
que os irmãos reúne
à volta das araucárias, dos imbondeiros, dos carvalhos,
a árvore única de tantos nomes
que inundam de seiva e lume o nosso sangue.
A lei única da estrela sobre a vida da terra
que movimenta o mar, as naus e a história
dos filhos da terra,
herdeiros da casa, o pão e o canto,
que pelo mundo vagueiam
vencendo o mar e os ventos
e a dura lei do homem
que de nós nos exilia.
(Maria Dovigo, Lisboa, dezembro de 2014)
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