É uma sinuca de bico os vícios regionais que a gente tem. Quando vou ao Rio de Janeiro, Brasília ou algum lugar do Nordeste, ou mesmo, quando encontro essa gente na minha aldeia, me distraio e deixo escapulir o vácuo do beijo único no rosto de cada encontro.
As pessoas adivinham nosso lugar pela forma de cumprimentar. Como não sou um estereótipo sulista (com o mito da frieza) e tenho uma cara de caboclinho com um sotaque cosmopolita, o costume de um beijo só é determinante pra identificar minha cidade. Você é de São Paulo, né?
Fico envergonhado, peço desculpas, beijo atrasado, falo alto pra lembrar que é dois, mas não tem como correr. Dói saber que minha geração carrega a memória dos três beijinhos, mas pelos ranços da vida esse afeto anda estirado na rede fria e paulistana do beijo único. Navalha afiada.
Quando era miúdo lembro das visitas familiares, dignas de dar e receber os três beijinhos, seja no rosto fofo da Tia Bete, no beijo-saudade da Tia Célia, que vinha do interior, e nas queridas primas e avós. Nas paquerinhas de escola, a gente conhecia outra pessoa sob o ritual dos três beijinhos. O cúmplice mais próximo dizia os nomes e o casal trocava esse carinho, mesmo sem consenso.
Às vezes pairava um silêncio e cada um ia prum lado, em outras alguém puxava uma conversa fiada a contragosto e nos dias de céu colorido os ficantes e futuros namoros brilhavam nas vielas ao redor. Foi assim na minha tremedeira com Anita, no namorinho com Samanta, quando fiquei com Bia (essa era linda, desacreditei…), na falta de assunto com Andréa, no beijo-paralisia de Rosângela e no encontro-esconderijo com a Cris. Ah, tempo bom…
Aos poucos, a fonte dos três beijinhos foi secando… secando… e tudo ficou tipicamente paulistano: empedrado! Não sei se os três beijinhos era uma cultura de quebrada, pois na época Pirituba era meu mundo e o centro de sampa era a “Cidade”, se tem a ver com frieza, individualismo, pressa ou se (como diz o poeta) não existe amor em SP, é difícil dizer.
Ainda se beija muito por aqui, há carências e carícias se esbarrando pelas esquinas, mas qual será o peso do nosso beijinho xoxo na intensidade dos carinhos e quenturas da Paulicéia? Se beijo bom é aquele dado e recebido, qual o tom do mono-beijo paulistano?
Concordo, nem todo mundo é digno de receber a energia dos nossos beijos ou de encostar em nossos rostos, mas quando a maçã da minha face recebe ou dá um golpe de bochecha, fico na nostalgia dos três beijinhos, relembro as paqueras de escola, os abraços familiares e me percebo mais duro, com a magia capenga e a alma falhando, menos dança e mais desengano. Me sinto tão sem graça quanto esse beijo seco e de cara virada que reina soberano nos cumprimentos da minha terra.
Michel Yakini é escritor e produtor cultural.
NOTA: a foto do autor é de Sonia Bischain.
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