Este texto foi lido no lançamento da obra na Feira do Livro de Braga 2016.
A capa é uma pintura da autoria da artista plástica Adriana Henriques.
Maria Gabriela Llansol terá vaticinado no título de uma das suas obras que ‘o começo de um livro é precioso’. Tivesse sido o encargo de tornar o começo de “A Fronteira do Amor” precioso, António Gaspar Cunha (AGC) tê-lo-ia concretizado, desde logo abrindo o pano para uma cena de acção, que interpela o leitor a sentir, em simultâneo, a chuva fria de uma noite de inverno e o perigo de um eventual crime.
Talvez o objectivo maior de um texto escrito, quando o autor pretende vesti-lo de literatura, seja o de mudar o estado de espírito do espectador, trabalhando as suas emoções desde o princípio, através da habilidade de intervir no seu espaço mental com boas imagens. Embora possa não ter sido essa a preocupação de AGC, tal facto está bem consumado na primeira linha, na intimação que o criminoso dirige ao taxista.
O ritmo de apresentação da narrativa, bem como a descrição do ambiente onde se estabelece contacto com os personagens, sugerem uma certa inclinação poética do autor, sobretudo ao nível psicológico, nomeadamente com o surgimento de uma arma na escuridão, não se fazendo esperar os efeitos auditivos de disparos, que resultam no ferimento do próprio criminoso, fazendo subir de tom a carga dramática.
Do mesmo modo, surgem com intensidade algumas manifestações de afecto, pelo que se a curiosidade nos tinha sido aguçada com uma entrada cinematográfica, seguida da apresentação do assassino Manuel Silva, mais agora nos cativa a leitura a prosseguir viagem, ansiando conhecer melhor o Teixeira e o seu neto adoptivo Rafael, que (juntamente com os pais e irmãos deste) enfrentam a perda da avó Luísa.
Creio que a tónica humana desta relação entre avô e neto, combinada com o sentido paradoxal de família e acolhimento, são a verdadeira pedra basilar deste livro. Por outro lado, a viuvez do Teixeira leva a uma alteração deste relacionamento; dada a sua incapacidade de se adaptar à nova realidade, o taxista adopta comportamentos sociais contrários à sua boa índole, o que irá comprometer o futuro de ambos.
Dá-se uma viragem de cenário no momento em que Deolinda é introduzida, e nos realizamos da autenticidade deste homem, enquanto sedutor e jogador. O estilo de vida que daqui em diante se afigura assustador, leva Teixeira a acumular dívidas a pessoas sem escrúpulos, fazendo antecipar instantes de grande tensão, como se uma pequena aranha desenhasse os fios de uma infinita teia de problemas e angústias.
Sempre em modo ameaça, Manuel Mirolho funciona como um inquietador instantâneo, mais ainda quando percebemos os contornos de um triângulo amoroso, pondo em risco a felicidade do recém casal. O passado de Deolinda, nascida em berço nobre, e a vítima mortal provocada por Teixeira aquando do atropelamento, são ingredientes que adensam a qualidade da narrativa, e mais e mais nos enleiam.
AGC tem o condão de manter um fio condutor electrizante ao longo de páginas inteiras, capaz de criar uma expectativa nunca defraudada, o que também se verifica com os acontecimentos descritos em tribunal, que nos transportam para o palco da lei, muito embora venhamos a ser confrontados com os meandros da corrupção, quando entendemos que um poder manipulador ultrapassa e se sobrepõe aos limites normais.
O encontro do grupo PT2, repleto de secretismo, a inesperada gravidez de Deolinda, e a contínua chantagem de Manuel Mirolho para com Teixeira, levam a uma falsa ideia de paternidade, salientando uma vez mais o efeito dramático da narrativa, especialmente devido à amostra do contraditório com a natureza humana, isto é, uma mulher de bom carácter prescinde dos seus valores para proteger quem ama.
No entanto, após uma ausência de alguns meses em Espanha, Manuel Mirolho regressa para conhecer e baptizar a criança que até esse dia considera sua filha, mas com a chegada de uma carta anónima é convencido a certificar-se se é ou não o pai, o que tem por consequência infeliz o trágico homicídio de Teixeira, que parte sem saber que deixou uma herdeira, e termina sem grande dignidade o seu papel principal.
A segunda parte deste romance vira-se completamente para a estória de vida de Rafael, desde a infância, com uma certa minúcia na descrição das férias na Póvoa de Varzim, a casa da avó que aparece como uma zona de conforto, o relato da visão de Diana no jardim, prosseguindo depois para a adolescência, exposta na necessidade de reflectir em conjunto com o seu amigo Fernando temas mais sérios.
Já em Coimbra para estudar advocacia, os dois amigos dedicam-se à sua vida de rapazes, Fernando começa a namorar com Sandra, e Rafael conhece Marta, com quem contrai matrimónio em pouco tempo. O destino, porém, reserva algumas notas de música até então desconhecidas, principalmente no momento em que uma viagem de trabalho ao Gerês lhe proporciona um encontro que mudará o seu coração.
O sentimento crescente entre Rafael e Diana desencadeia uma série de etapas de confirmação da permanência um no outro, acabando por aparecer nos respectivos casamentos de ambos situações de insegurança e conflito que a seu modo contribuem para reforçar esta união, que separa duas famílias, ao mesmo tempo que dá ao amor um lugar maior, acrescentando assim nova contradição fundamental à moral.
Com a natural suspeita por parte da família de Diana quanto a esta relação extra conjugal, Rafael começa a receber ameaças que fazem espelho ao ambiente vivido na primeira parte do livro. Mais à frente, assistimos a nova reviravolta de cenas, com o oportuno encontro entre Deolinda, mãe de Diana, e Fernando, melhor amigo de Rafael, revelando que os caminhos se cruzam para aqueles que os procuram.
A forma como todas as peças começam a emoldurar-se transmite alguma tranquilidade à leitura até aqui algo agitada, o que torna o restante desenvolvimento muito agradável, dado que a certeza da competência de Fernando para tratar o que a Deolinda pretende é uma garantia de esperança, em que como se costuma dizer, a justiça tarda mas não falha, e se define no horizonte a luz certa da verdade.
O quadro total da acção deste livro é realista e chega até a ser pessimista, ao insistir no tema da morte, com a agravante de mais um homicídio e respectivo funeral, com a morte de Deolinda às mãos do marido, mas a tristeza não perdura, AGC leva a acção para o escritório de Rafael, onde é finalmente revelada a Diana as carta que a sua mãe deixou com Fernando, colocando-nos num patamar decisivo desta estória.
Depois de muitas peripécias, a investigação culmina na detenção de Manuel Mirolho, na qualidade de mandante do assassínio da própria mulher, estando todavia definido o objectivo de desmascarar o grupo PT2. Pouco a pouco, os membros desta organização misteriosa começam a ser identificados, cabendo lugar ainda a uma boa perplexidade, quando reconhecemos a proximidade das pessoas envolvidas.
Com a ajuda do inspector Esteves, que conduz a investigação, Fernando vai procurar alguém do passado de Deolinda, para que Diana possa finalmente encontrar respostas quanto à sua origem, ainda que tais revelações possam vir a interferir no modo de se relacionar com Rafael, quando descobre que este é o neto adoptivo do seu pai biológico. Desconfio que seja esta a razão do título “a fronteira do amor”.
Perto de uma fase decisiva da acção, AGC recorda António Ramos Rosa, ao citar que “não é possível adiar o amor” entre Rafael e Diana, valendo-se ainda da mítica alegoria bíblica que juntou uma serpente e uma maçã para tornar irresistível o desejo entre dois amantes. Sempre pontuando de versos as últimas páginas, dá-se a lenta passagem do tempo, serão precisos cinco anos para que se reencontrem.
O efeito-surpresa do desfecho abre nova ferida na leitura; a morte de Diana, também ela assassinada pelo marido, traz à memória o que tinha acontecido a sua mãe, duplicando o sentimento de crueldade. Esta decisão do narrador pode ter sido espontânea ou planeada, mas não altera o carácter humano dos acontecimentos, já que estabelece a fragilidade do amor e a ténue fronteira entre vivê-lo e perdê-lo.
Por minha vontade, este texto segue a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico de 1990.
Alice Macedo Campos
19 de Junho de 2016
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