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Este é o meu concerto para a mão esquerda. A minha astúcia esboroada, aspereza intacta que nunca foi. Não é estilo, é rascunho balbuciante em carne viva, pacto de sangue, o capricho possível. O corolário lógico deste desastre triunfal só poderia ser uma prosaica repugnância. As palavras perdulárias, dizendo mais do que deviam.
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Dedico esta minha audácia aos cépticos e aos descrentes, os mais perigosos optimistas. A sabedoria não é senão dissonância desmedida. Vocês saberão perdoar este tom precipitado, selvagem e sem regresso. É decerto fuga espavorida, filosofia elíptica, meticuloso improviso. É simplesmente não saber o que fazer com o tédio, é devolver o enfado. Não deixa de ser comovente e ridículo como me pinto: assim, escusadamente melancólico, em definitivo à procura de um desenlace burlesco.
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Para quê então contar seja o que for?
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Desconfio da escrita visível, do artifício assim-assim, da multidão das aventuras repetidas. Prefiro a inundação das vozes, o olhar especulativo, o pavor trocado de boca em boca. Detesto o vago fastio das histórias, o fútil enredo das narrativas a abarrotar de porquês e de suspeitos. Prefiro o ardil em chamas, o ganir de segredos derradeiros. Prefiro arder inútil, render-me à hemorragia, surpreender o susto. É irrelevante, bem sei, esgravatar a ferida, aprofundar a ausência, reconhecer o vendaval. Mas não adianta: amo a razão de ser deste fracasso.
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O poeta tem dúvidas, vasculha no escuro. O crítico coça a cabeça e chega a uma conclusão. O poeta cultiva os seus apocalipses, apalavra o acaso, rabisca o que não sabe. O crítico diz que não. Assegura que tudo não passa de mero jogo de palavras. O poeta toma nota. O crítico ganha confiança, apanha balanço e desfere uma mão-cheia de certezas. O poeta insiste: só tenho manias, desleixos e mazelas. Diz que ignora o que é a arte, que jamais se cruzou com o sentido, que apenas deseja a intimidade de uma clausura exacta. O crítico respira fundo, mostra sinais de impaciência: não é bem assim, o poeta percebeu tudo mal. O tom deve ser neutro e descomprometido, ritmo solto, trocando as voltas à aspereza de um pudor subtilmente despojado. É assim que importa deslumbrar. Timidamente, o poeta reivindica que o alvoroço é sem conserto, desajuste de um naufrágio, e que isso, estranhamente, é uma forma de verdade. O crítico discorda, expelindo veemências: nem pensar! Trata-se de um equívoco. O poeta, já muito confuso, afunda a cabeça: o crítico deve ter razão.
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O que sobreviveu de nós?
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Limito-me a atrasar o epílogo, qualquer coisa como um labirinto. O tudo que perco, o pouco que toco, o nada que logro.
Nota: Os presentes trechos pertencem ao Tomo IV, intitulado «Breviário Clandestino das Extravagâncias» (composto pelo heterónimo Javier Goméz Jurado), da obra Tratado da Mão, Edições Húmus, 2021, pp. 321-323.
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Poeta e ensaísta, Ricardo Gil Soeiro (n. 1981) aproxima-se da escrita como se de um alfabeto luminoso se tratasse, plasmado numa obra em que se entrelaçam, em mútua ressonância, poesia e ensaio. No domínio ensaístico tem vários livros publicados, entre os quais Gramática da Esperança (2009), Poéticas da Incompletude (2017), Volúpia do Desastre (2019) e O Enigma Claro da Matéria (2019). Organizou o volume As Artes do Sentido (Relógio D’Água, 2017) e co-editou Paul Celan: Da Ética do Silêncio à Poética do Encontro (2014), Das Cinzas do Silêncio à Palavra do Fogo (2018) e O Nada virado do Avesso (2019). No domínio da poesia tem revelado um percurso singular que integra obras como Labor Inquieto (2011), Da Vida das Marionetas (2012) ou Bartlebys Reunidos (Deriva). Em 2012 veio a lume L’apprendista di enigmi, uma antologia poética traduzida para o italiano. Com Iminência do Encontro foi galardoado com o Prémio PEN Clube Português – Primeira Obra 2010. Com os livros A Sabedoria da Incerteza e A Sombra que Ilumina foi finalista do Prémio PEN de Ensaio 2016 e 2021, respectivamente. Com o livro Palimpsesto (Deriva) foi finalista do Prémio Autores 2017-SPA, na categoria de Literatura – Melhor Livro de Poesia. Com A rosa de Paracelso foi finalista do Grande Prémio de Literatura DST 2018. Em 2019 foi distinguido pelo Instituto Cultural Romeno com o título honorário Amicus Romaniae 2019. É professor de Estudos de Literatura, Arte e Cultura na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Investigador no Centro de Estudos Comparatistas, FLUL.
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