Ricardo Marques é poeta e tradutor, nascido em Sintra, em 1983. A escrita surgiu-lhe de forma natural, talvez influenciado pelos livros que lhe liam, e não se recorda de um tempo em que não quisesse escrever.
“Não sabia muito bem como ia acontecer, ou o que a vida me traria, mas [a escrita] é uma forma natural de expressão para mim, aquela a que recorro quando quero pensar um determinado assunto ou tornar reais certos pensamentos e ideias. Paralelo a isso, só me lembro da dança, que sempre considerei complementar à poesia (e uma arte, como a poesia, claro). Digo complementar de uma forma lata, porque a dança, para mim, é uma forma de dispor o corpo e de fazê-lo mover: quando caminho tenho ideias e resolvo questões de mim para mim. Assim é na poesia, quando caminho escrevo”, explica.
Acrescenta ainda que chegou mesmo a explorar a dança, fazendo um curso de dança contemporânea em Londres, o que o levou a refletir sobre a própria poesia.
“É uma actividade artística que me acompanha desde criança, como a escrita, e que considero natural como o movimento é natural ao corpo. A escrita é-me natural como (co)mover-me”, diz Ricardo Marques.
Doutorado em Estudos Portugueses pela NOVA-FCSH, em Lisboa, desenvolve investigação pós-doutoral no IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição sobre revistas literárias do Modernismo. Neste âmbito, coordenou recentemente o volume de ensaios Tradição e Vanguarda: Revistas Literárias do Modernismo (1910-1926) (Biblioteca Nacional de Portugal, 2020).
Como tradutor, foi responsável pelas antologias poéticas de Tennessee Williams, Amy Lowell, D.H. Lawrence, Vicente Huidobro, tendo igualmente traduzido livros de Patti Smith, Billy Collins, entre outros.
“Creio que me filio num tipo de poeta que é o poeta-tradutor. O Edwin Morgan, que eu traduzi o ano passado, ano do seu centenário, era igualmente um ‘poeta-tradutor’, na medida em que a sua obra poética é indissociável de uma outra ‘obra poética’ que é a daqueles que ele traduziu, não só para inglês como para escocês. Esta é uma ideia um pouco polémica ainda em Portugal, creio. No Brasil, por exemplo, a dupla dos irmãos Campos (Augusto e Haroldo) é também um epítome disso: são tradutores que fazem mais do que simplesmente traduzir os poemas de outro autor, fazem disso um exercício de recriação muito criativo e com uma liberdade imensa. Claro que este é um extremo e podemos discutir se o que eles estão a fazer é uma paródia (no sentido grego do termo) ou uma pastiche, mas eles são para mim uma inspiração, como é a própria obra de tradução de autores clássicos, da parte de Anne Carson”, diz Ricardo Marques.
Com a ambição de publicar anualmente uma antologia de um autor ainda por traduzir em Português, nem que seja em edição de autor, encara o exercício da tradução como um misto de serviço público e missão, que considera paralelo à sua busca enquanto poeta.
“Porque o faço em primeiro lugar para eu ler e conhecer profundamente. Faço-o por isso com grande humildade e curiosidade, sempre respeitando o autor, sendo eu apenas um veículo de transmissão, como é um actor. Mas sempre sem esquecer que eu também sou um poeta e por isso é natural que certas ideias sobre a linguagem e obsessões inconscientes com palavras, que aparecem na minha poesia, também apareçam nas traduções. É o chamado ‘cunho pessoal’ do tradutor, dois tradutores não traduzem da mesma forma”, acrescenta.
Considera ainda que há um lado subversivo na forma como pensa no seu ofício de tradutor, que está lá desde o primeiro dia.
“Logo a primeira tradução que publiquei, faz agora 10 anos, é uma antologia de poemas de Tennessee Williams, que ficou conhecido sobretudo como dramaturgo. Mas quem o conhece mais profundamente sabe que ele se considerava poeta acima de tudo, publicou poesia antes de se ter voltado para o teatro, e as suas peças estão cheias de um lirismo comovente, cheias de personagens poetas. A ideia dessa antologia foi assim mostrar o ‘verdadeiro’ Tennessee Williams, ou pelo menos esse seu lado mais obscuro, mas que informa o outro. E isso pode ser considerado algo ‘desviante’ ou ‘subversivo’”, explica Ricardo Marques.
Autor de obras como Servidões (não (edições), 2013), Diário de uma drag (Douda Correria, 2015) ou Metamorphoses (não (edições), 2015), o seu último livro de poemas é Lucidez (não (edições), 2019).
Ficam três poemas da sua autoria.
*
O CAMINHO DO TEMPO
Tenta sempre que o passado esteja em
todas as coisas que faças, ainda que
tenhas evoluído no único sentido possível:
A vida não tolera atrasos nem bruscos
avanços, e o bater do segundo é a sua face
mais visível. Procura lembrar-te das árvores
que plantaste na vida de alguém, das linhas
em que o teu coração se perdeu e das outras
que desenhaste racionalmente com a mão,
imitando o gesto criador inicial. Lembra-te
dos rostos que beijaste, dos aviões que tomaste,
dos risos e das lágrimas que verteste. Mas
mais importante que isso, ou depois de tudo
acondicionado no volátil espaço da memória,
lembra-te das decisões e das dádivas que
te permitiram escapar à morte de cada dia,
ela que sempre te esperou quando menos
esperavas num canto distraído das horas.
*
DO ARTIFÍCIO
É de artifício, este fogo,
esta cidade. Alguns lhe
chamariam poema,
princípio ou promessa,
mas a sua técnica é a de
ser isso tudo e não ser
nada afinal. É que o
fogo queima, como a
solidão. Não a das
cidades, habitadas pela
sua desumanidade
apinhada, mas a da
distância. Infatigáveis,
os passos de quem as
pensa. O que se aplaude
no fim, se nada se vê?
As palavras, soltas no ar
a grande velocidade,
trovões que
resplandecem na noite
escura como estrelas
indicando um desfecho.
Por ora, a névoa, como
artifício, velada,
anuncia um começo
possível, o caminho.
*
PARTÉNON
Quando Elgin
chegou a Atenas
para defender
os gregos
de si próprios
e dos turcos
olhou para todo
aquele mármore
e pensou que
tinha de começar
por ali:
toda a barbárie
é afinal puro
pragmatismo.
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