Unidos da Vila Cambraia
“… Quando ela partiu,
segui o seu perfume em desengano,
não vá, oh meu amor, porque te amo,
e meu coração, lamenta esse sofrer…”
Antonio Serenata – Perfume.
A Unidos da Vila Cambraia estava em festa, depois ter conseguido o acesso à elite do desfile carnaval no ano anterior. O samba-enredo que garantiu a vitória foi “Do Batuque ao Barracão – Somos da Vila Cambraia!”, feito em homenagem a família de Antonio Serenata, Baluarte da escola.
Antonio adorava brincar o carnaval pelas ruas, como nos tempos antigos, sem essa de ala, tempo cronometrado e tema unificado, mas fazer parte do “maior espetáculo da terra”, ser reconhecido como um rei pra além da Vila Cambra seria o ápice, mesmo sabendo que depois da quarta-feira de cinzas a fantasia esfarelava até o ano seguinte.
Hora de pisar na passarela do samba, pois somente as escolas que compunham a elite podiam desfilar no sambódromo. Serenata esperou anos por esse apogeu, queria ser aplaudido em pé pelos foliões, nas arquibancadas e camarotes.
Serenata chegou a Vila Cambraia cinquenta anos antes, quando a família forrou as maletas com o bumbo do pai, Sêo Dirceu da Umbigada, na esperança de uma vida digna na cidade grande. Sêo Dirceu ensinou os filhos na arte de assentar poeira batucando pelos terreiros. Assim, Antonio se formou tocador e ganhou o apelido de Serenata porque gostava de tecer versos lamentando o coração partido no balcão dos butecos da Vila Cambraia.
Quando a rapaziada do bairro teve a ideia de fundar uma escola de samba, e inaugurar o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Vila Cambraia, Serenata foi exaltado como Baluarte, por seus muitos anos de ziriguidum. Seu auge foi quando o enredo da escola homenageou a história de sua família e da chegada de Sêo Dirceu da Umbigada como uma epopeia, relembrando desde as glórias do samba rural ao carnaval da metrópole. Agora, a expectativa era desfilar em um carro alegórico, como os artistas da TV. Serenata seria um rei conhecido no mundo todo. Era a hora da redenção, de dar orgulho a memória de Sêo Dirceu, que havia partido anos atrás.
A agremiação recebeu uma boa grana dos patrocinadores e pela transmissão ao vivo do desfile. Assim garantiu um carnaval digno de reconhecimento, mas era ano de eleição da diretoria na Unidos da Vila Cambraia e uns bacanas que chegaram de fora investiram uma bufunfa sinistra, montaram uma chapa pra eleição e ganharam o pleito.
Serenata não se interessava pela politicagem, mas desconfiou quando o tema escolhido pro samba-enredo foi “A origem do biscoito”. Se lembrou que quando criança muitos miúdos da Vila Cambraia, inclusive ele, não podiam comprar o bendito pacote de biscoito.
No dia da coroação da Rainha da Bateria, outra estranheza. Por tradição a escola exaltava uma jovem da comunidade, de preferência nascida e criada, mas dessa vez a escolhida foi a musa do comercial de biscoitos, a atriz da novela, indicada direta do patrocinador.
A tal rainha apareceu somente no ensaio final, com um salto plataforma e um protetor de ouvidos com as cores da escola. Ela aprendeu a sambar e cantar o enredo em aulas particulares no seu condomínio. E mesmo com essa preparação empacotada, a Unidos da Vila Cambraia estava confiante. Muitas pacotes de biscoitos seriam distribuídos na arquibancada e um perfume de baunilha tomaria o sambódromo na hora do refrão pra empolgar a torcida.
A comunidade evitou questionar, pois a presidência não gostava de ser questionada e festejava a chegada dos turistas que vinham gastar seus caraminguás na Vila Cambraia. Além disso, tinha a ‘’Ala da Vizinhança’’, destinada a quem não pudesse pagar por uma fantasia, uma cortesia da diretoria.
Até o dia do desfile, ninguém da nova diretoria mencionou uma palavra ao velho Serenata. Seu traje estava em casa, engomado, no melhor lugar do guarda-roupa. Quando chegou o grande dia, Serenata se preparou cuidadosamente. Ficou se olhando no espelho, de frente, de perfil, de costas, olhando se a roupa estava alinhada. Enquanto cantava um samba exaltação feito a sua amada escola: “Magia… foi o que senti naquela avenida/ Era minha escola sambando florida/ Folia/Das mais belas que vivi…”
Embarcou em um dos ônibus e chegou ao sambódromo empolgado com tanta gente e beleza. Caminhou até o portão onde iniciava o desfile e foi surpreendido por um Diretor de Harmonia da Vila Cambraia, que ele nunca viu antes. Pediu licença pra passar e… O senhor não pode entrar. Como assim? Ordem da presidência! Mas deve tá havendo algum mal entendido, sou Antonio Serenata, Baluarte da escola! Baluarte uma pinóia, tiozinho, agora é carnaval de avenida, não tem essas cafonice mais não, cai fora!
Serenata partiu pra cima do homem com uma força que seus setenta anos já não tinham, deu um murro na cara do tal diretor e saiu em direção da avenida. A escola se distanciava, o surdo acelerou e Serenata teve sinais de tontura. Ainda percorreu alguns metros e um segurança conseguiu alcançá-lo e o deixou imobilizado, ofegante.
A unidos de Vila Cambraia seguiu com um desfile impecável, e foi apontada como favorita ao título. Serenata ficou estirado em meio a um monte de biscoito e confete esmagado. O distintivo da Unidos da Vila Cambraia capengava no seu peito arranhado e a arquibancada delirava entre ritmos, cores e cheiros.
Contigo pelos seguranças, Serenata entregou-se, lamentoso feito uma cuíca. Sua fantasia se desfez antes da quarta-feira de cinzas, seu carro alegórico foi uma ambulância e sua apoteose a maca do posto médico. O desfile seguiu, exalando baba, baunilha e serpentina, marcando o repique de um coração apaixonado.
No dia seguinte, os jornal deu grande destaque ao desfile da Vila Cambraia e destinou uma nota pra falar de Antonio Serenata, relatando que ele, emocionado, sofreu um infarto momentos antes do desfile. Antonio ficou internado no Hospital Geral e mesmo resistindo com vida, a notícia informou que o ele poderia ficar com algumas sequelas graves.
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