Vocação
Se os pescadores escrevessem poemas
os poetas morreriam à fome.
Os poetas alimentam-se de tempestades
igualmente viciados no sal da morte prenunciada
vertigem salgada que precede
os pulsos
sanguineamente alongados na rede pendida
para lá do fatídico xadrez das camisas
onde as águas jogam e ganham
— peixe-mate.
Também os poetas precisam de água pelos joelhos
na sua faina.
Têm de dormir no mais obscuro porão dos barcos
baptizar filhos com obscuros nomes de deus
acender-lhes fogaréus de orientação
na bruma, na obscuridade, no desespero
antes de serem poema.
Nomes que afastem a tormenta
atormentam os poetas
afoitos à maré vão tatuar esses nomes bem fundo
nos confins inexoráveis do oceano.
No santuário divino
do peixe que caminhou sobre as águas
crêem os poetas poder levar consigo os filhos
na morte, ou antes apaziguar
diabólicos mesteres que lhos morram
gravando a devoção
esculpindo a espinha dos deuses com palavras
de sangue, limpando as negras entranhas
na antecâmara surda do gelo.
Os filhos dos poetas inundarão eternamente
a rua dos náufragos, brincando ao regresso impossível
ao desamparo, porque o sangue dos poetas
não envelhece, não se cansa, não se esgota
tão-pouco se esgotam os pesqueiros e os poetas
nunca voltam.
A sua casa é nervo alto-mar.
Incessantemente, os poetas lançarão redes
cuja malha poupa a vida às palavras mais pequenas
dando-lhes vida e fôlego
para que cresçam, se reproduzam e sangrem
para que o poema amadureça
enquanto no Mundo se agrava a fome de metáforas.
Mas se ao final da faina os poetas voltassem
para os filhos, ao fim da vida que fosse
trariam nos olhos nenhum peixe
apenas fome
de quem miseravelmente trabalha a própria fome
como ofício de sobrevivência.
Os pescadores têm alma de papel
a paixão impudica das musas
e nos seus olhos corre a tinta mágica
da translação planetária.
Jorra-lhes das veias a escrita trágica
da morte que conspira redes contra a maré
na direcção contrária ao sentido dos ponteiros do amor.
Para escreverem o poema
aos pescadores bastar-lhes-ia verter a pele
no pesqueiro silencioso da poesia
e ao seu veneno intrínseco nenhum peixe-
-palavra seria indiferente.
Os pescadores levam o amor de arrastão
trazem o poema à tona da morte.
Se escrevessem poemas
os pescadores escreveriam com a própria vida
e não haveria alguém mais para pescar
o alimento dos poetas.
in “Aprendiz de Dourado”, Texto Sentido, 2012
*
Homem-bomba
Ao fim da tarde, se deixares
passar os automóveis no alcatrão-doce
se fores para além da arquitectura fugitiva das
flores automáticas e intermitentes e te sentares
inexacto a pensar contra o vento
poderás escutar o tiquetaque sem falha
do coração fundamentalista.
Possuído de impaciência pendular sobre os ossos
e de fendas sanguíneas com rastilho
saberás então amar qual uma bomba-relógio
os destroços do futuro.
É esse o teu lugar no Mundo.
in “Cavalo de Troika”, Texto Sentido, 2013
*
Mulheres do outro mundo
Na rua das mulheres
as mulheres da rua
transaccionam o corpo como fénixes
até não mais lhes restar fogo.
Quando interpelam por lume
é por lhes restar só cinza
para voltarem a ser mulheres da lua
na lua das mulheres.
As mulheres da rua
são mulheres da lua
apascentam sonhos infecto-contagiosos
amores de ficção científica.
Repuxam as saias espaciais
esticam o solavanco das meias
onde vivem enganadas
por foguetões de vida difícil.
in “Máquina-de-lavar-corações”, Texto Sentido, 2014
*
Há muitos séculos
Yasiko Wing
buscava quem lhe escrevesse
o nome num livro.
Um dia, o homem
olhando turvamente o céu
contava formigas
com os dedos.
És tu.
Yasiko apertou o homem
muito nas suas coxas
ou nuvens
até sufocá-lo só de ida.
Inanimado,
pensou Yasiko Wing
a melhor literatura
impede-nos de respirar.
in “Yuki-onna Blues”, Douda Correria, 2015
*
sete anos de azar
ainda agora te tenho a morrer devagar nos meus braços
à hora pesada da morte dois braços são tão pouco
à hora translúcida da morte dois olhos são pouco
chamo por ti ao ouvido, finges regressar do sítio profundo
onde a pouco-e-pouco reencontras o ser feliz
chamo por ti baixinho e os olhos tremem-te como
velas subaquáticas, o sangue do avesso leva-te
assoma qual um rastilho de evasão ao poço inaudível
o amor e o dano, o amor e o dano em mim investidos
como um pedregulho que se larga, a espera
o terror excruciante da espera de ouvi-lo bater no fundo
os teus lábios curvam-se num desenho tranquilo
mal consigo arredar a quase-raiva de ver-te sorrir
à hora solidificada da morte um corpo é tão pouco
quero transformar-me num corpo líquido que te resgate
coloco as mãos sobre os teus cabelos liquefeitos
sobre o teu espírito liquefeito a sorrir tenuemente
o meu espírito fragmentado nas ondas do teu
peixe inacabado a morrer metade
e a sonhar o que resta
à hora bruta e líquida da morte a contabilidade é pouca
ora somos dois ora um só peixe, um tudo-nada
dentro do outro, mar que corre para o mar e volta a si
e de repente a solidão é um acto reflexo
eis porque urge partir todos os espelhos da cabeça
in “Canibalírico”, Texto Sentido, 2015
*
sofia
se me explicares o pássaro
ele deixa de voar
dentro da minha cabeça
in “Canibalírico”, Texto Sentido, 2015
*
alta-costura
no rasgão habitual de aos nove anos
carregar os impossíveis do mundo às cavalitas
acompanhei várias vezes a avó
nas visitas à dona julinha costureira
destra na arte de desembainhar estórias
e falar pelas costuras
um dia, enquanto da avó às flores
o tecido se convertia em medidas drásticas
e me cabia, aguardando no corredor, ler o futuro
nas línguas-de-gato
perpassou amarrotado o marido da costureira
trajado em preto e fita métrica na mão
indaguei, mal pude, se também ele era costureiro
o que logo a dona julinha
(com inúmeras cabeças a espreitarem-lhe
da boca onde guardava o coração)
negou, asseverando: é dono da agência funerária
aqui mesmo ao lado
mas no fundo – completou – ambos trabalhamos
a mesma arte
porque amar, minha jóia, é ter licença
para matar com alfinetes
só tens de saber onde espetá-los
in “Os Cães Ladram às Cartas de Amor”, Insubmisso Rumor, 2016
*
palimpsesto
ainda os pássaros eram transparentes e o coração
trajava o melhor sangue para os dias de feira
ainda os teus olhos vinham pousar à janela
nos interstícios da chuva miúda
ainda o meu pescoço era cobarde na ascensão da manhã
irrigava o surdo tráfico com canções de músculo vulcânico
ainda a morte era impossível
conquanto o mel nos irrompesse dentro
ainda o toque dos teus dedos deixava marca na minha pele futura
ainda os vizinhos tardavam em anoitecer e
o teu sexo tinha medo das alturas
de tão sermos pequenos acendíamos lâmpadas
na boca um do outro
depois
encontrávamos palavras palavras que levavam a novos andares
andares secretos de palavras ou
ficavam assim encravadas à espera de subir ou descer
na próxima estória a precisar de heróis
ainda os heróis brilhavam no escuro
e os cigarros furavam as nuvens que furavam
olhos que furavam a serendipidade
ainda um pão custava apenas o momento circular do beijo
o meu corpo era uma farinha espessa onde
um filho poderia crescer entre os cavalos e a espuma livre
das bicicletas que atravessam o mar
agora as nossas bocas são amargura cariada e os heróis
todos em língua estrangeira
papéis secundários de fogo emancipado à nascença
ainda o teu sono me doía pontiagudo
no vendaval de espanto pela árvore a florescer
no silêncio das espáduas
ainda os astronautas usavam escadas
e um livro podia implodir nas nossas mãos a meio-caminho
da estrela
ainda as sílabas dos nossos nomes acendiam a lareira
que apenas sonháramos e era
tarde de mais para regressar sem outra senha ardente
ainda o coração ia a jogo
o sonho all-in
e jogávamos as cartas ao chão onde nos amávamos
ainda o amor era a narrativa de mil e uma noites
ainda nós ruminávamos nos corredores de erva daninha
contestando a ciência acrílica da solidão
ainda nós disputávamos o outono
aos pirilampos no coração
às abelhas no coração
às formigas no coração
grilos no coração
ainda nós disputávamos o húmus do coração sem saber
sermos o mesmo
ainda os pássaros transparentes tinham a cor dos teus olhos
e dizimavam os insectos
faziam o ninho perfeito no coração
e os picheleiros nos atingiam bondosos na sua arte suprema
de impedir chorar
ainda eu não tinha carta e tu já voavas
ainda os correios enviavam telegramas de inteligência obscura
do prazer dourado de descompreender e inexistir
cartas a pedir lume
para acender o poema de pele futura
este
ainda eu te levava à boca e aos olhos dentro à luz
de lâmpadas trocadas à nascença
a inexpugnável acrobacia das jóias de saturno
ainda eu te amava a plenos pulmões
incapaz de respirar
ainda tudo o que existia era de menos e consumíamos
devagar a mesma marca
ainda os pássaros transparentes incandesciam
a lucidez das auto-estradas
e o fogo nos beijava ambas as faces
ainda eu era capaz de morrer baixinho sem te incomodar
porque ias acordar cedo na vida seguinte
in “Os Cães Ladram às Cartas de Amor”, Insubmisso Rumor, 2016
*
“Pasteurização dos canoninhos”
ao imenso mário david campos
ninguém sabe ao certo onde encontrar as estrelas.
de quando em vez um de nós planta a cavalo
e vai
intoxicado de fracturas
andaimes e pagamentos por conta
comprar a garrafa que faz falta à festa
pagar com o branco dos dentes
e nunca mais alguém o vê
(são, quase sempre, os melhores de nós que se compadecem
com a sede dos outros)
é-nos confortável a alma assim qual
lata de sardinhas
acidez controlada, redor marítimo
comprovado pela plural sinfonia de anzóis.
o que vai tomar senhor doutor?
indeciso entre uísque ou um batido de certezas
mas conquanto haja gelo
tudo nos enterra o nome pela goela abaixo
quem nunca engoliu uma ou outra piça
um sapo ou aqueloutro animal que nos chama qualquer
atire a primeira pedra
ninguém sabe ao certo como fazer pontaria
aprendemos a engolir de olhos cerrados
a beber, por assim dizer, de lâminas
que se conformam amigáveis às mãos de semear
vazios colossais
e é assim que batemos palmas
enquanto os autojuízes nos recitam ossos
ao jeito de corredores abandonados
por mero amianto de estimação
ninguém sabe ao certo como subir ao telhado
por isso alguém entediado de horror inventou o sentimento-
-telescópio
lente pintada de negro
para não cegar
ninguém sabe ao certo como rir de tudo isto
ninguém sabe ao certo como rir
ninguém sabe ao certo como ir de tudo isto
por isso foi discutida e votada a lei
de decretar gigantes
mas chumbou com os votos da esquerda ambidestra
e da direita amputada;
e o mário, que andava há anos a treinar maratonas
a partir do fim, zangou-se com a política
da vil natalidade
ninguém sabe ao certo onde está o mário
todos querem atê-lo à mercê do próprio tamanho
e as palmas ecoam tão alto
que não se consegue ouvir sequer um coração
nas circundantes milhas, centilhas
ilhas musculadas de água ch
oca e só
ninguém sabe ao certo como ou quando procurar
dentro
e o medo do não-saber leva-nos a sair
sair apenas
sem agasalho para a inteligência
nem guarda-chuva para as grossas ácidas gotas
de incerteza
que pingam urgentes na alma
como gatos
ninguém sabe ao certo que ser a alma
mas apalada como marinada de tomate, óleo animal
e um dia destes ainda
alguém nos enfia um dedo no cu
para dactilografar uma carta ao deserto
que foi visto pela última vez a vaguear na nossa própria
cabeça de linha branca,
e nós brindaremos com champanhe francês
até que a rolha nos atinja
a santidade
em cheio no epicentro da procissão
ninguém sabe ao certo onde fica o cortejo
ninguém sabe ao certo onde fica a cortiça
ninguém sabe ao certo onde fica o corteché
onde fica o corte celestial
— nem sequer os sacramentais livros de aventuras
como o peter pan-
démico
a alice violada no país das maravilhas
ou as bíblias
declinadas nos cuidados intensivos
ninguém sabe ao certo onde fica o córtex
e só por isso os carteiros deviam ser muito mais
bem pagos que os médicos
e terem um bisturi para nos abrir a porta
e terem um bisturi para nos escancarar a alma
sem destinatário visível
está tudo a arder outra vez, a sede aperta
mais gelo, por favor
e uma lição de fado para turistas invisuais
ninguém sabe ao certo a falta que faz
um maravilhoso rato vivo
a contaminar os interstícios do cérebro
inédito, 2018
*
cassiopeia
passo muito tempo a sonhar com chamadas
perdidas. anseio que dependam de mim
muitas bocas para alimentar. pergunto
à lua se tem frio, se hei-de ir procurar-lhe
um cobertor. decoro paredes vazias com o uivo
agónico dos cães. talvez, como eu, acreditem
que a cidade é uma oficina de luz ilegal. talvez
lhes incomodem os discos voadores que convoco
para traduzir em coração nativo. setembro
é um ringue abandonado onde a noite desfere
sucessivos uppercuts contra as páginas
dos meus ossos carcomidos. passo muitas horas
a ver anúncios de complementos de cálcio.
às vezes ligo, para poder articular o meu nome,
desejar boa noite ao atendedor. é simpática
a gravação. salvo bombeiro em contrário, a esta
hora da noite sou o único fogo acordado. à espera
que chegue um postal de cassiopeia.
inédito, 2018
**
Renato Filipe Cardoso nasceu em Aveiro em 1971. Cursou Comunicação Social na Escola Superior de Jornalismo do Porto e Línguas e Literaturas Modernas — Português/Inglês na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Desde 1989, trabalhou cerca de 12 anos como jornalista em diários, foi crítico literário e musical, coordenou revistas e projectos jornalísticos e, gradualmente, dedicou-se à escrita criativa, ao copywrite publicitário, à tradução e à locução comercial, em detrimento do jornalismo. Desde 1998, tem sido voz oficial e/ou esporádica de várias instituições e marcas de dimensões nacional e internacional, sendo voz-off para meios audiovisuais de inúmeras campanhas publicitárias e institucionais, além de locutor de diversos programas e documentários de televisão, speaker de eventos, congressos e conferências. Em 2007 fundou a Texto Sentido, empresa de escrita criativa, copywrite e edição, que detém também a marca Voz-off®, Agência de Locutores, co-produtora de projectos audiovisuais e entidade de formação na área da Voz, da Locução e da Técnica Vocal. Apresenta, há quase 10 anos, o RádioAtivo, no Porto Canal, único programa da televisão portuguesa exclusivamente dedicado à música alternativa, onde semanalmente divulga novas tendências da música independente, sobretudo pop, rock, folk, jazz, electrónica e world music. Tem colaborado também noutros projectos televisivos nos quadrantes da Cultura e da Arte. Em Março de 2013, idealizou, escreveu, deu voz(es) e produziu a série de humor “As Desventuras de Austerix”, produzida excepcionamente para as comemorações dos 25 anos da TSF. No âmbito literário, teve várias publicações em jornais, revistas literárias e antologias poéticas; recebeu um prémio de “Revelação Poética” em 1993; venceu a primeira edição do Prémio de Conto Fantástico Branquinho da Fonseca, da Câmara Municipal de Cascais, em 1996; publicou um conto para crianças; publicou vários livros de Poesia (vide bibliografia); participou como dramaturgo na iniciativa “24 Horas de Teatro”, na Casa da Criatividade, em S. João da Madeira.Participa amiúde como dizedor e/ou poeta convidado nas Quintas de Leitura do Teatro Municipal do Porto. Participou na rubrica “Um Poema por Semana”, do programa “Câmara Clara” da RTP2, da autoria de Paula Moura Pinheiro. Mantém o projecto de performance poética “Stand-up Poetry” com os dizedores Isaque Ferreira e Rui Spranger; e, a solo, a performance poética “Missa MalDita”. Participa como escritor e/ou dizedor vários eventos e festivais literários e, esporadicamente, frequenta as noites de Poesia do Pinguim Café, onde foi dizedor residente das “Quintas Movediças” entre 1991 e 1993.
BIBLIOGRAFIA POÉTICA:
· Aprendiz de Dourado, Texto Sentido, 2012, colecção Solidão Sincronizada (500 ex.) — obra finalista do Prémio Literário Correntes d’Escrita 2015; (esgotado)
· Cavalo de Troika, Texto Sentido, 2013, colecção Solidão Sincronizada (500 ex.); (esgotado)
· Máquina-de-lavar-corações, Texto Sentido, 2014, colecção Solidão Sincronizada (500 ex.);
· Yuki-onna Blues, Douda Correria, 2014 (300 ex.); (esgotado)
· Causas da Decadência de um Povo no seu Lar (co-autoria), Edita-me, 2015 (300 ex.);
· Canibalírico, Texto Sentido, 2015, colecção Apocalírica (500 ex.);
· Estamina (para a Máquina-de-lavar Dióspiros) (co-autoria), Texto Sentido, 2015, colecção Apocalírica (500 ex.);
· Geração Descartável, Texto Sentido, 2015, colecção Quase Dito (200 ex.);
· Os Cães Ladram às Cartas de Amor, Insubmisso Rumor, 2016 (300 ex.);
Curadoria por Tiago Alves Costa.
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