Para Marisol Casas, de olhar marinho e voz em onda.
Também para Juanel Ponte, que desenha praias na sua luz,
e ainda para a Concha Rousia, que sabe de almas.
Para Xavier Ponte Casas, sempre.
Era ele a gaivota. Foi a Conchinha que disse.
Demorou mais de três quartos de século a tornar-se memória, deitar asas, e retomar corpo para visitar descendências sem lancha.
As gaivotas portam espíritos de marinheiros, a Conchinha sabia. Quando escutou a história, identificou naquela cria de ave que um dia tinha aparecido sob o carro de Juanel, a vontade de regresso de um afogado. O avô de Morás, procurava vida.
O tempo é uma dimensão sem terra em que nascer. A estirpe é o seu ninho de esperança: do presente em cadeia de futuros até o passado em revolta: desde o início do canto em pé, em escama, em asa, até o olhar da neta. Maré nova, mar a abrir-se na praia de Morás, como na penúltima viagem do bote, sob céu azul, sobre a água calma.
Deitaram o aparelho e voltaram. Conheciam as rotas do mar, suspeitavam baixos e bancos tenros, onde os peixes pascem em pradarias algadas. Numa dessas estepes de carrapicho e plâncton prometia-se boa captura, braços esforçados na próxima maré. Até então voltar a casa com o frio prendido no corpo.
Deitou um lenho ao lar e sentou junto ao prato que o esperava. O Manuel arrimou um talho ao banco do pai. Dos oito filhos ele era o mais silencioso, também o mais atento. Aquele rapaz apreendia pelos olhos e com eles dizia esperas e falava profundidades. Aproximaram as mãos à lareira. O lume e o mar moviam-se com o mesmo vento: devagar, então, naquela calma. O calor abriu as vontades de tal jeito que do interior do tronco que ardia começaram a sair insetos pequeninos. Semelhava que a mãe tinha depositado ovos na madeira e os recém-nascidos aguardavam um momento de calor que agora se tinha precipitado. A longa procissão salvava vida: até a pedra do lar, até o chão de terra, até a porta, em fileira precisa. As últimas criaturas perderam-se sob o umbral e a atenção voltara ao lume. Nesse instante, faíscas loucas saltaram nos pés do vento que descia da chaminé. O lar ficou embravecido. Um temporal tinha chegado sem avisar e ganhava força.
Quando o primo bateu à porta e entrou, ele soube que vinha com recado do mar. Abeirou-se a mulher com os filhos mais novos detrás. Muitos rostos a aguardar. O primo sentou e olhou as vagas no lume: Assim, tão revoltado, anda o mar -disse- e o aparelho está lá. Todos baixam à praia. Uma loucura, com este vento, nem na horta se pode andar. Mas ele sabia que havia que ir. Diziam-lho os insetos e o lume, a mulher e os pequenos, o primo. O aparelho estava no mar, sem ele não haveria mais pesca. Eram oito filhos a criar.
Ao sair bateu com o olhar do Manuel. Falava despedidas. Saiu da casa com aqueles olhos na ideia e animou-se a prometer que os teria à fronte mais uma vez.
Na Aldeia de Abaixo aguardavam duas tripulações. Discutiam. O mar ganhava força, as vagas medravam. A borrasca governava o mundo e tinha o seu tempo de império. Quando cessasse já seria tarde, o aparelho ter-se-ia perdido junto com a esperança de trazer mais peixe à terra. Juntos poderiam. Seria breve a viagem. Voltariam com as redes.
Embarcaram num único bote.
O mar queria dança, briga, força. Dançava a lancha sobre a escuma, brigavam os remos vigorosos, forçavam-se os espíritos e avançavam para recuperar armadilhas de retorno.
Viu a terra longe a pular existências entre o virar da água embravecida. Na praia ficava uma figura; focou o sentir e percebeu o Manuel. A cor daqueles olhos pulsou no instante as veias com a mesma luz líquida das vagas. Correu sal sobre a pele. O mar medrou e o barco galgou com tento de pássaro. Instantes verticais entre o céu e as profundidades. Sabor a espessura. Naufrágio. Berros. Alento. Lamentos. E um cantar. Entre o medo cruzava a voz. Enternecia a humidade. As ânsias de revolta. O tato da madeira a perder-se com a costa e dois homens. O mar tinha cordas amarradas à profundidade. Sabia atar braços e pernas, sabia amarrar os pulmões. Um cântico. Apenas uma melodia para enfiar sentidos submarinos no único caminho dos instintos. Seguir. Aboiar na música até achar som de existência. Além.
Na Cova do Ilhote da Sombriça, nos Faralhões, mora a Marujaina. Ela sempre canta em dias de temporal. Nem todos a escutam. Nem todos compreendem que a sua voz é um trilho possível, um regueiro de ar novo antes de deixar o corpo ir em paz. Sozinha, fia e olha a costa de São Cibrão. Nas febras do seu linho há um caminho para quem procura a cor.
Ele chegou a enfiar águas, por caminho longo. Ela cantava a beira-mar. Uma mão da Marujaina prendeu-o ao ar apreciado, deteve uma viagem sem retorno. Pela vontade de alentar, soube que procurava vida e segurou com força. Alçou aquele existir e desenhou espaço: Estão para chegar outros? –Perguntou com voz de búzio. Comigo não vêm menos de sete. –Respondeu o marinheiro. Terei que preparar nave para oito à terra da sem-memória. Ali serás feliz. Não queria mais naves. Desejava memória de terras, olhares de interior. Sabia daquela oferta de sereia. Os pescadores levavam na herança as suas palavras e nos dias selvagens tinha-se consolado a pensar na esperança que entregavam, mas agora boiava na promessa de um olhar guardada nalgum lugar da chuva, cor de mar doce no último silêncio do Manuel.
A Marujaina fiou forma de bote e colocou no mar. O sal deu consistência ao linho e a água abriu os cabos para conformar uma nave com espaço para oito: Ocupa tanto a sombra como o corpo –murmurou. Depois alçou voo até o alto da Sombriça e ali tocou um corno que estremecia. Um a um chegaram os afogados. Apenas dois salvos, outros sete estavam ali, a agradecer o bote e a esperança que alimenta os mortos. A nova lancha teria bons navegantes, espíritos esforçados que sabem sonhar. Eu não vou, companheiros. Fico a aguardar o filho, o Manuel que deixei na praia. Uma promessa me obriga. Compromisso de morto é morte viva. A Marujaina escutou e tendeu-lhe novamente a mão, a asa, a nadadeira. Nada nela permanecia e tudo era possível.
Juntos despediram os companheiros: irmãos, primos e amigos partiam para o mundo do sorrir.
As histórias levam vidas incumpridas. A Marujaina achou horas e palavras naquele homem de mar. O pescador conheceu o repouso das águas diminuído, as espumas-criança para acarinhar e retornar oceano desde a rocha. Escutou o segredo da sereia que tinha vivido em terra uma vez: Eu tive duas irmãs. Juntas escutamos a um sábio de taberna chamado João Velho. Era desprezado e considerado fantasioso, mas nós ficamos deslumbradas quando nos falou de um tesouro sem ouro nem prata, sem galãs formosos que acompanhassem a vida e apenas consistente na possessão de uma caverna maravilhosa para habitar numa ilha de paz; nela acharíamos o poder de transformar a morte em trânsito e a capacidade de aunar peixe, ave e mulher numa mesma condição. Apenas uma das três, a primeira em chegar, gozaria de tais dons. Assinalou o caminho, feliz de sentir-se escutado, e nós, sem pensar, nem julgar a veracidade do conto, corremos na direção que o homem indicou. Cruzamos o Valadouro até a aldeia de Estelo, a seguir o curso do regato que chamam Pedrido e que ali se transforma em rio Tronceda. Sempre a pé da água, que medrava com múltiplos afluentes, alcançamos a união com o Valinhares e continuamos percursos, já com nome de rio Masma para o mar. Cada uma apurava os passos com o receio colocado nas irmãs, com a resistência da nossa juventude e a alegria daquela nova vida possível, mas a noite caía e as forças com ela. Ao chegarmos a Manhente, ao pé da ria fomos conscientes de que o sono podia mais que a ilusão e também de que deveríamos manter a atenção, porque a cobiça de cada uma era maior que o carinho que até esse dia nos tinha unido. Cansadas, vencidas pela noite, preocupadas por conjugar descanso e desconfiança, estabelecemos uma promessa: a nossa competência seria justa, a primeira em acordar aguardaria às outras duas. Quando abri os olhos as minhas irmãs não estavam junto a mim. Juntas ou em competência tinham-se adiantado sem respeitar pactos. Raivosa, entrei no rio, nadei com a firmeza de uma resposta à traição, desci na corrente que levava ao mar, fui ria. Como peixe atravessei as águas calmas, como ave voei sobre a barra de areia e as correntes, mar adentro enxerguei a luta das minhas irmãs. Adiantei-me no ar, desci às águas, e, sem olhar atrás, cheguei à ilha, ocupei o meu lugar e recebi este tesouro de poder e solidão. O pescador sorriu sem lábios: Agora estou contigo –disse-. Apenas passas por aqui. O meu tempo é o do oceano. Tu tens dias de morto que ancora uma promessa por cumprir -escutou.
Assim nos retêm as palavras. Sabia a Concha de vontades e retornos.
O Manuel tinha lutado contra o mar. Viu o barco atacado por ondas que não davam trégua. Na desesperação, correu para o oceano, deitou o corpo à fronte, atacou vagas, quis salvar o pai. Uma barreira de espuma impediu. Berrou Pai e teve resposta sem palavras com potestade do proprietário.
O aparelho perdeu-se e a terra recebeu oito corpos. Manuel calou. Tinha aprendido a língua do mar, tinha escutado voz de ferro líquido e o seu esqueleto virara salgado. Tanta dor não se podia falar. Contou dois dias e procurou lugar numa tripulação para sair ao mar. Aprendeu. Ganhou. Perdeu. Foi a uma guerra alheia e comprovou que o sangue também sabe a sal. Namorou uma rapariga com olhos térreos nos que silenciar memórias em noites de trovoada e foi com ela embora a criar casa perto dos Faralhões. Queria filhos que aprendessem ofício longe da costa, ainda na suspeita de que os seus ossos seriam herança das novas gerações, que aquelas ilhas marcavam um destino.
O pai morou no existir do Manuel. Aguardou. Encontrou em breves instantes de som, sem olhares, quando o filho procurava barbadas nas poças e assobiava com dom de magias pescadoras, não apenas a chamar peixes, também espíritos. O silvo levava-o a cercanias imprevistas, intervalos de intimidade e saber nos que latejavam as vidas do Manuel e dos netos que nasciam. Ficava consolado a sentir a nora no coração do filho. Tinha boa companheira. Aprendera a aproveitar o mundo, com a ciência de quem escutou falar o mar. Tempo em calma. Aguardar um fio que avançava.
A Marujaina tece vidas sem trégua, esse é o preço do seu trono. Quando um novelo acaba, muda o seu labor, até criar naves que percorram o mar para Ocidente onde a terra de outro viver começa. O marinheiro apreendeu os ritmos da vida e da morte naquele contemplar longo, também a ler silêncios de sereia guardados em noites sem conta, tristezas que se abriam em tardes de bonança a beira-mar, quando a lembrança das irmãs perdidas latejava na cova. Ficou em contemplações, entre os Faralhões e a costa de São Cibrão que agora habitava o herdeiro.
As pescas foram muitas e o Manuel envelhecia. A sua filha mais velha casara e tinha-lhe dado netos. Também aquele rapaz que naufragara fugindo de estudos e voltara a eles, mesmo a pequena estava já a fazer vida própria. O mar ainda era um aliado com o que tinha combinado o respeito de quem reclamou justiça, e pescava dons. Às vezes ficava nas rochas a encantar peixes, acompanhado por ausências presentes. Assobiava, e as memórias chegavam com barbadas à sua rede. Sentia o pai e desejava encontrar. Ofereceu meia vista de terra a câmbio de meia oceânica. Com a metade do rosto podia, então, ver em água e divisar um mistério nas ilhas que o convidavam a encontros. Partilhava com a mulher o mistério e ela compreendia, porque tinha aprendido também a contemplar os Faralhões, a escutar as vozes que o vento trazia dos ilhotes. Junto à Josefa, deixava-se enfeitiçar pelas saudades do naufragado, com ela achegava os pensamentos à cova, prendia conversas de espíritos e demorava no encontro com a raiz.
Naquela viagem, o Manuel e a companheira perderam a consciência do corpo e dos espaços. Os seus filhos passaram a cuidar do cabo cada vez mais subtil que os unia à realidade e às exigências da matéria. Marisol, a mais velha, alimentava-os com a luz do seu olhar nos dias de temporal, onde uma transformação profunda do mundo os tinha submergido. Na tristeza de uma perda progressiva, eles ganhavam carícias de sereia e a família perdia-os em vida, retornava-os menina e menino em cuidados intermináveis, até que os corpos ficaram sozinhos, mudas de réptil num sol de inverno.
O Manuel e a Josefa chegaram sem olhos à cova da Sombriça, ali nos Faralhões. O velho marinheiro abraçou o espírito do filho com a força de um reencontro e com o alívio do descanso possível além-mar. A Marujaina fiou nave de linho e sal; convidou mais uma vez sombras ao mundo do renascer. Com alegria, embarcaram a Josefa e o Manuel, mas quando o pai deitou pé à nave, aquela partiu sem o aguardar. Ele ficou na tristeza de um interrogante.
A promessa ficara incumprida. O reencontro foi com almas e a cor do Manuel nunca foi retomada. Apenas olhos sabem ver em olhos e os mortos devem procurar corpo em que sentir.
Ai, Concha, minha sábia! Assim é. A promessa de um olhar necessita rosto em que viver e o marinho não tinha, por isso procuram matéria aqueles que não a precisam, para cumprir os votos que os amarram.
O marinheiro enfrentou todo o poder da Marujaina. Reclamou a esperança de cumprir destinos, de fechar palavras. Apenas é pedir em ti, não sou eu que torna vidas. Os laços que nos lastram pertencem a quem os teceu, como o fio que teço é meu em solidão e a saudade das minhas irmãs apenas a mim chega. Tens as tuas próprias saudades que mais ninguém pode remediar, como mais ninguém pode responder às minhas incertezas. Ele não podia compreender, entre a fúria e o encontro perguntou qual podia ser a incerteza de uma mulher poderosa que governava trânsitos de vida. Quem, senão a dúvida, poderia dizer que teria acontecido se naquela alvorada tivesse sido eu a primeira a acordar? Quanto dura a herança de uma traição possível?
Têm que passar tempos de vida e novos tempos de morte ainda a aprender. Ninguém pode entregar vontades próprias, nem as sereias levam, nem permitem permanecer, apenas tecem naves nas que embarcar com passaporte próprio. O pescador aguardara mais na vida do filho que na promessa e tinha visto passar esposa e outros filhos ao além. Ficava apenas na vontade de uma esperança. Necessitava corpo e procurou, aninhou em ovo oco de gaivota para nascer nova carne e perceber.
A sereia estranhou a companhia, aquele breve estar, a voz brava do afogado sem profundidades, mas quando viu a cria de gaivota, soube da presença renascida, acarinhou com ternura companheira e apanhou em abraço de ave, para levá-la até a última terra firme que ela tinha pisado, lá em Manhente. Quem sabe se não confluem os caminhos.
Juanel ia subir ao carro quando viu que algo se movia junto à roda. Pequena e assustada, uma gaivota deixou-se apanhar pelo desenhador de Manhente que a levou a casa. O marinho andava em colos tenros. Naquele quintal de figueiras, um olhar velho o recebeu. Lembrou os olhos do filho, espelhou neles e ficou, sem querer aprender voos que o levassem de aquela cor de mar prendida na esposa do pintor. Nela suspeitava estirpes e ficou.
Em dias de atenções, foi pinto novo ao pé da casa. Com a gata e a cadela partilhou os afetos de Juanel e os cuidados de Marisol, sempre a fixar naqueles olhos de família e sonhar cercanias. Chegavam visitas. Os relatos povoavam conversas e um deles falou da história familiar, do avô naufragado, do pai que assobiava ante as poças. Soube. Marisol era a neta e portava os olhos do filho, um voto cumprido na vida a fluir. Podia partir e ergueu voo.
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