O que chamamos de Barroco Floral encontra sua eclosão no pensamento de Julia Kristeva. A pensadora propõe uma trilogia do gênio feminino que compreende as vidas-obras de Hannah Arendt, Melanie Klein e Sidonie Colette. Trata-se, portanto, de um esboço para uma possível genealogia a se manifestar posteriormente com a publicação de Teresa, meu amor (2008), na qual o estilo barroco se modela ao mesmo tempo em que se tece a vida-obra dessa pensadora-religiosa. Assim, Teresa d’Ávila dá o tom para relermos o que já se desenhava nas heranças de nossas contemporâneas, mesmo sem participar diretamente dessa trilogia pensada para valorizar os arquivos do feminino. O que pode haver em comum entre uma filósofa-jornalista, uma psicanalista, uma escritora e uma religiosa? A partir de quais temáticas elas estariam conectadas com o estilo barroco? E por que a preocupação de atribuir a esse complexo estilo, repleto de camadas históricas, a aparentemente desnecessária, ou talvez acessória, adjetivação “floral”?
Como a minha leitura dos textos de Kristeva aconteceu em parte seguindo a ordem cronológica do lançamento das obras publicadas a partir de 2000, sendo antecedida pelas contribuições teóricas e ficcionais de Kristeva, observo que na composição desse barroco se entrelaça a vida-obra e as fecundas e inestimáveis experiências de leitura da própria teórica da literatura, psicanalista, crítica de Arte, também artista da palavra dedicada à escrita ficcional de romances policiais metafísicos.
Antes de chegar até a impressionante pesquisa direcionada à trilogia do gênio feminino, Kristeva, essa pensadora polivalente inserida na pós-modernidade, confrontou-se com temas de seu tempo, os quais foram problematizados ao lado de algumas experiências que compõem publicamente a sua biografia. Entre os seus objetos de estudo, observo inicialmente o impacto estético dos efeitos da modalidade linguística do semiótico, em codependência com o simbólico, ou a linguagem propriamente dita, na construção da tese central, desenvolvida sobretudo em A revolução da linguagem poética (1974), na qual uma camada de infrassignificados linguísticos produz abalos na camada simbólica, fazendo vir à tona composições estéticas marcadas pelas inovações e pelas rupturas. Não à toa, Kristeva elege para a análise da revolução da linguagem as poéticas de vanguarda da segunda metade do século XIX, nas quais se inscrevem as produções de Lautréamont e Mallarmé. No entanto, não podemos reduzir esse par codependente e os efeitos rítmicos do semiótico à esfera do universo literário. A teórica sustenta que esse par está em todo o sujeito falante, adquirindo, no entanto, maior evidência no discurso dos psicóticos e dos poetas. Nesse período em que contribuía para Revista Tel Quel, Kristeva estava no contexto de discussões que participam das filosofias da diferença e do pensamento lacaniano. A despeito das especificidades entre a différance de Derrida, o rizoma de Deleuze, o objeto a de Lacan e o semiótico, segundo a sugestão da teórica, podia-se experienciar naquele momento variações sobre o que não é redutível à linguagem no seu âmbito tético. Consideremos que, entre os expoentes referidos, depois de Lacan, Kristeva foi a pensadora que se dedicou também à clínica psicanalítica de base freudiana, o que a levou à escuta de narrativas e ao entrelaçamento carne-pensamento em suas releituras que tocam arte, literatura, a tradição histórica e religiosa, e sobretudo o legado freudiano.
Temas para um Barroco Floral: condição estrangeira, maternidade e economia do olhar
A condição estrangeira de Kristeva recebe um livro especialmente dedicado a esse tema – Estrangeiros para nós mesmos (1991/1994). Uma estrangeira radicada no disputado círculo universitário francês poderia sintetizar o seu audacioso deslocamento da Bulgária até alcançar a notável posição de professora de Paris VII, mas Kristeva faz questão de marcar, em diferentes entrevistas, alguns espaços fundamentais de sua vida errante. São diversas as apresentações da pensadora em entrevistas e palestras que pontuam uma minibiografia em que ela usualmente se afirma como uma mulher de origem búlgara, de cidadania francesa e de adoção norte-americana. Do livro sobre os estrangeiros, que percorre desde os bárbaros até as contribuições psicanalíticas que estendem a estrangeiridade a todos os sujeitos, somos levados a rever essa condição à luz do afeto da melancolia, desenvolvido em Sol negro: depressão e melancolia (1987/1989), no qual, ao lado de Aurélia e do poema “El Desdichado”, de Nerval, Kristeva nos dirá que “não existe imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica” (Kristeva, 1989, p. 13; 1987, p. 15). Nessa perspectiva, pensar sobre os afetos torna-se uma prática que a teórica incentiva nos estudos literários. Nesse caso, a estrangeiridade, e o caráter brutal advindo de cortes amiúde familiares, desencadeiam o que Kristeva reconhecerá como sentimento de orfandade e que, na minha leitura, contribui para dar corpo à criatividade característica da melancolia. Não é necessário se tornar um imigrante para carregar essa condição que impulsiona a criação poética, basta estar inserido na teia da linguagem e em espaço geográfico hostil a movimentos criativos de ruptura.
Como um terceiro tema para fechar aqueles que poderão ser brevemente retomados na trilogia do gênio feminino, incluo a discussão em torno da maternidade e sua indissociável ligação com a economia das imagens. Na intenção de sintetizar aspectos que foram por mim trabalhados ao longo dos estudos dedicados ao pensamento de Kristeva, incluindo pesquisas de Mestrado, Doutorado e pós-doutorado, retomo brevemente reflexões sobre o tema que foram mais bem desenvolvidas no meu ensaio “A experiência da literatura desde a paixão materna”, para a Revista Terceira Margem (2019). A questão da maternidade se impõe como um necessário e assunto urgente no ensaio Stabat Mater (de 1976), que fecha o volume Histórias de amor, de Kristeva (1983), e ao mesmo tempo abre-se a uma fecunda área de investigação para historiografia da literatura. A teórica observa a ausência de discursos sobre a maternidade em nossa sociedade secularizada, sendo o último ocupado pela Virgem Maria (Kristeva, 1983, p. 326). Seguindo as contribuições linguísticas, Kristeva retorna à indefinição espacial que envolve a chora platônica, do diálogo Timeu, que dá origem a sua chora sémiotique, e seus posteriores efeitos criativos, especialmente na linguagem poética, para discutir a inserção da imagem da Virgem Maria na formação do que chamará de um proto-espaço, que nos levaria a considerar um “começo” sem localização. Kristeva desenvolve esse ponto no ensaio “Des madones aux nus: une représentation de la beauté féminine” (2005), referindo-se à imagem misteriosa da Virgem a “um começo antes do começo” – algo na linha do que chamará de um “fora do tempo”, sendo também anterior ao próprio Verbo (Kristeva, 2005, p. 154). Sabemos, pela história religiosa, que a Virgem habita um espaço marcado pelo contrassenso, uma vez que ocupa o estranho papel de uma mãe não fecundada e ao mesmo tempo o de filha do próprio filho. Ao desenvolver o que sintetizamos sob o conceito, sugerido por Kristeva, de uma “Estética da encarnação”, a respeito da qual vou mostrar alguns elos perdidos e outros bem inscritos na tradição, Kristeva retoma as inestimáveis pesquisas de Marie-José Mondzain.
Em Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas do imaginário contemporâneo, Mondzain (1996/2013) investiga as relações entre imagem e ícone até chegar a vínculos com o símbolo e o signo, reconhecendo no conceito de economia o eixo para a compreensão de relações nas quais despontam problemáticas como ser, poder e o aparecer. Assim, Mondzain recupera antigas traduções da palavra economia, entre elas está a encarnação, mas também o que observa como “plano, desígnio, administração, providência, encargo, ofício, acomodação, mentira ou astúcia” (Mondzain, 2013, p. 31). No que diz respeito à encarnação, o vínculo de meu interesse, Mondzain nos mostra como essa palavra se relaciona à economia em Paulo, servindo também à defesa do ícone e até mesmo aos iconoclastas. Curiosamente, em sua busca semântica, a economia não é encontrada em Homero, Hesíodo ou mesmo Heródoto, mas está problematizada na filosofia de Aristóteles. Segundo Mondzain, o texto aristotélico da Economia, para análise dos aspectos da vida social, é mais importante que o texto da Política. Ao estudar a economia, cujo termo leva em conta a “aquisição da vida doméstica e seu funcionamento”, acha-se a chave para a compreensão de nosso funcionamento social (Mondzain, 2013, p. 37). Dependeria da coesão desses elementos o desenvolvimento posterior para a vida. Com base no pensamento aristotélico, a teórica defende a primazia do econômico sobre o político (Mondzain, 2013, p. 37). Com a contribuição de Paulo, entra em cena a economia encarnacional, o que dá espaço não apenas para a economia trinitária mas também para se pensar a economia do corpo materno (Mondzain, 2013, p. 40-42). Nesse sentido, Mondzain observa que o termo não pode ser dissociado do que sintetiza como “gestação virginal da carne humana do Verbo” (Mondzain, 2013, p. 52). Ao considerar a economia da encarnação, a teórica tece considerações acerca da kenose e do que chama de “manifestação visível” (Mondzain, 2013, p. 53). Antes de abordar o enigmático vazio característico da kenose, percebemos no corpo da Virgem, de acordo com as pesquisas de Mondzain que recuperam o texto Da fabricação (ou “constituição”) do homem, do monge Melécio, alguns pontos que, na leitura da pesquisadora, estão relacionados a nossa mortalidade, de modo a ligar a economia ao que a pesquisadora resume como “administração interna e viva dos corpos que se mexem, respiram, sofrem e morrem” (Mondzain, 2013, p. 63). Reproduzo dois desses temas, seguindo o resumo de Mondzain:
“A propósito do fígado, que alimenta de sangue todas as partes do corpo, a economia é designada como a Providência”.
Em outros pontos, arkousa dioikésis equivale a oikonomia e significa “administração dos gastos em quantidade suficiente” no interior do corpo —a propósito também das pulsações do coração (Mondzain, 2013, p. 62).
Falar sobre a economia implica voltar ao seu funcionamento desde essa herança que passa pelo corpo da Virgem, a invisibilidade de suas vísceras, a sua fecundidade paradoxal, o seu Filho a servir de modelo para os humanos, levando em consideração o sacramento da eucaristia e a ressurreição da carne. Kristeva, que demonstra a necessidade de voltarmos para os ecos do discurso da Virgem Maria em Histórias de Amor (1983/1988), encontra na recuperação da Kenose, segundo os estudos de Mondzain, uma aliada para discutir a perda do mundo sensível numa sociedade que vive efeitos negativos da enxurrada de imagens (cf. as críticas que localizo em Sentido e Contrassenso da revolta e As novas doenças da alma). Ao mencionar o retorno que Mondzain faz à kenose, Kristeva, no ensaio “Une digression…” (1998), inclui outros significados à kenose, entre eles pode-se encontrar o “inútil”, o “vão”, o “não-ser”, o “nada”, a “nulidade”, o “insensato”, o “enganador”) (Kristeva, 1998, p. 61), os quais induzem a comparações de rebaixamento da Virgem em relação à Trindade. Ao reforçar que o corpo materno dá visibilidade à formação da imagem do Pai, além de contribuir para propagação dessa imagem paterna, Kristeva nota que se perde o processo mimético e se instaura uma “inscrição” a essa imagem, de modo a sugerir o que chama de “grafia”. Estamos diante de uma imagem construída. Cria-se, portanto, uma diferença entre o modelo e a tentativa de representá-lo. O termo diferença, escolhido por Kristeva, considerando a ênfase no espaçamento que dará margem para a inscrição e grafia oriundas de significados da kenose, reenvia à noção de différance, de Derrida. No entanto, ao pensar sobre as acepções do verbo diferir, Kristeva conduz a discussão para a economia do corpo da Virgem, reconhecendo nesse corpo a relação entre vazio e nascimento (Kristeva, 1998, p. 62). O caminho desse significado da kenose já havia sido pavimentado pela teórica ao retomar a chora platônica a partir do diálogo de Timeu, em La révolution… (1974). Nesse ensaio, a chora retorna para dar corpo ao “proto-espaço”. Assim, o corpo da Virgem nos faria pensar no que a teórica observa como “começo sem começo”: “O corpo da Virgem é chora” (Kristeva, 1998, p. 62). Curiosamente, em La révolution du langage poétique, a chora só admitia ou, conforme Kristeva, “tolerava” analogias com o ritmo vocal ou cinético (Kristeva, 1974, p. 25). A inclusão da Virgem acrescenta a essas analogias o caráter nutriz característico da boa gestão do corpo – economia do corpo, seguindo a recuperação que fizemos com base no texto de Melécio. A Virgem torna-se indispensável à genealogia do Barroco Floral, que se tece entre vidas-obras de mulheres singulares. Antes de Santa Teresa, é preciso ampliar o nosso interesse para a economia do corpo da Virgem e ao que a partir dela se desenha como encarnação.
Para tanto, precisamos resgatar a definição de ícone, que no império bizantino causará a disputa entre iconófilos e iconoclastas, sendo sintetizada pelas pesquisas de Mondzain como “o filho que nasce da união de uma carne com uma voz” (Mondzain, 2013, p. 144).
Para chegar ao olhar, o ícone necessita passar pela economia do corpo da Virgem, que é lido por Mondzain como “o corpo da mãe”. Sendo chamada de uma matriz, e também de chora, com empréstimo platônico problematizado por Kristeva, o corpo da Virgem passa pelo anúncio de uma voz para lhe dizer que ela é “morada do infinito” (Mondzain, 2013, p. 138). A kenose produz o efeito de vazio nessa economia da encarnação, na qual o ícone ocupa um espaço para se inscrever e ao mesmo tempo acusa a incapacidade de um preenchimento (Mondzain, 2013, p. 139), já que ele nunca será totalmente acessível aos nossos olhos. Pensar no ícone de Cristo implica reconhecer a impossibilidade de sua presença carnal e por isso a encarnação se caracteriza pelo esvaziamento, uma vez que a grafia do ícone de Cristo é insuficiente para dar corpo ao Verbo. Portanto, pensar sobre a encarnação significa pensar sobre o seu esvaziamento. Seguindo esses argumentos, a encarnação não pode ser confundida com materialização, tampouco com idealização da matéria (Mondzain, 2013, p. 131). Resta a indagação que diz respeito ao que o ícone imitaria, que não pode ser respondida a partir da perspectiva humana, mas, segundo a leitura da pesquisadora, sob “o olhar imaginado de Deus para os homens” (Mondzain, 2013, p. 231). Tarefa no mínimo desafiadora aos que se dedicam à criação de imagens e que carregam, conscientemente ou não, o legado dessa tradição religiosa. Kristeva e Mondzain inscrevem a Virgem Maria em nossa genealogia do Barroco Floral. Kristeva, no conjunto de ensaios de Visions capitales (1998), vai ainda mais longe nessa estética que pode ser chamada de Estética da Encarnação, considerando a sua genealogia de diferentes marcos temporais, a ser resgatada em expressivos momentos de nossa história e seus arquivos, cujos elos muitas vezes parecem soterrados em virtude do excesso de imagens e da perda da experiência sensível e seu complexo trabalho de pensamento.
Kristeva, que nasceu na Bulgária e percorria as igrejas bizantinas, nos apresenta uma surpreendente leitura sobre o encadeamento de algumas referências imagéticas no ensaio “La vraie image: une sainte face” (Kristeva, 1998, p. 45-47). Ao ficar diante da imagem da santa face de Laon, a teórica intui um vínculo entre as cabeças da Górgona e essa face. Curiosamente, ela encontra nos estudos de André Grabar a confirmação de suas suspeitas. Em A santa face de Laon, o historiador comenta sobre a costume de reproduzir as cabeças da medusa sobre os objetos religiosos de culto, que eram percebidos como talismãs, o que confirma para Kristeva a semelhança entre a face de Laon e medusa. No ensaio “Qui est la méduse?”, se manifesta o que me impacta sobremaneira. Kristeva observa na medusa uma “genealogia secreta”, a encontrar na medusa retratada pela arte o que ela designará sob o nome de “Estética da Encarnação” (Kristeva, 1998, p. 43), sugerindo os espaçamentos intrínsecos à kenose que a constitui. A fim de marcar o espaço da górgona nos momentos que caracterizam o que se desenha sob o nome de Barroco Floral, tendo em vista a Estética da encarnação, a partir da sugestão que flagramos no pensamento de Kristeva, é preciso marcar o vínculo com a maternidade dessa personagem mitológica. Ao ter a cabeça cortada por Perseu, grávida de Posídon, ela dá à luz a Pégaso e a Crisaor, que nascem de seu pescoço no momento do seu assassinato (Grimal, 2005, p. 187).
Antes da Virgem Maria, devemos incluir a Medusa em nossa genealogia do Barroco Floral, que se esculpe à luz dessa estética encarnada.
A definição da maternidade, ainda que complexa para ser sintetizada nesse item de uma pesquisa em andamento, abre-se para a investigação de sensações, afetos, pulsões, sentimentos, ou seja, experiências que tocam os corpos dos sujeitos falantes, acrescentando a esse estudo a necessidade de incluir um quarto elemento a ser pensado na formação do Barroco Floral: a experiência sensível e o corpo. Um início para a definição da maternidade, que será em seguida retomada à luz das experiências conceituais e estéticas das mulheres pensadoras-artistas da trilogia, localizo no ensaio chamado “La maternité au carrefour de la biologie et du sens1”, de autoria de Kristeva, no qual os começos e recomeços do par envolvido nessa experiência nos oferecem uma adesão à vida:
Acrescento que o nascimento – e hoje o “projeto parental” – é um começo, um auto começo e o começo de um outro diferente de mim. A maternidade é este perpétuo renascimento, onde a genitora se reconstrói como mãe que não para de começar esta série de “começos” ou “etapas” a que chamamos vida (Kristeva, site).
Esse ensaio chama a atenção para o fato de o filho ser um outro e somente sendo esse outro ele poderá chegar a se constituir, a ter uma biografia, o que a teórica reconhecerá como uma “história pessoal” – como as que ela escolherá para entrelaçar também a sua vida de recomeços e criatividade.
Trilogia do feminino: Hannah Arendt, Melanie Klein e Sidonie Colette
Se levantamos quatro pontos que constituem a vida-obra de Julia Kristeva, cuja vida teórica foi atravessada pela condição estrangeira, pela experiência da maternidade, pela economia imagética desencadeada pelas reflexões em torno do dar à luz (Estética da Encarnação), além das experiências sensíveis que atravessam os corpos dos sujeitos de fala e de escrita, cabe na etapa a seguir buscar esses elementos na trilogia do gênio feminino, nas vidas-obras de Hannah Arendt, de Melanie Klein e Sidonie Colette.
Hannah Arendt
A começar por Hannah Arendt. Não à toa, uma pensadora inaugura a trilogia, nos direcionando para as bases do pensamento de Kristeva a compor o nosso Barroco Floral. Na introdução desse primeiro volume, Kristeva nos explica o que pretende ao resgatar o termo gênio, tão histórico e marcadamente masculino na sua constituição; antes mesmo do uso para os homens do Renascimento, já estava em Descartes, na escrita do “gênio maligno”. A teórica, no entanto, está na busca de outra acepção do gênio quando o liga às vidas e contribuições de mulheres excepcionais. São “as aventuras paradoxais”, “as experiências singulares” e “os excessos surpreendentes” (Kristeva, 2002, p. 8; 1999, p. 8) que mobilizam as escolhas de Kristeva – características que, na minha leitura, reverberam traços de sua biografia não menos singular. Trata-se de pensar o gênio feminino à luz das mudanças tecnológicas que envolvem o século XX, tempo das mulheres escolhidas por Kristeva, no qual a tendência à estandardização de ideias e mesmo de trajetórias impostas pelo fluxo econômico e midiático colidem com modos de vida que vão na contracorrente de expectativas de um feminino alinhado com as demandas pátrio-familiares.
A condição de estrangeira das três mulheres geniais é logo exposta na introdução desse primeiro volume, para nos dizer que, no início, é desejável ser deslocada, ou transitar por uma falta de adequação ao meio, para transformar possíveis adversidades, infortúnios, ou mesmo desajustes frente a um tempo disfórico, em gestualidade de vida escrita, em movimentos onde o pensamento se expande com e contra as limitações fortuitas de um contexto em crise. Arendt e Klein são as “judias de língua alemã” que entram em contato com outras geografias, Nova York e Londres, a incluir uma outra língua, o inglês; e pode-se perceber em Colette outro movimento, não refratário à condição estrangeira. A escritora explora o interior de sua língua francesa, deslocando-se para uma França onde eclode o modo de viver e escrever de uma camponesa (Kristeva, 2002, p. 13, 1999, p. 15).
Voltemos à Arendt. Da trilogia, a filósofa parece ser aquela que mais se destaca no que diz respeito à condição estrangeira. Exilada, sobrevivente do holocausto, como faz questão de nos apresentar Kristeva logo no primeiro capítulo intitulado “A vida. Hannah Arendt ou a ação como nascimento e como estranheza”, esse gênio do feminino percorre Paris e depois se torna cidadã norte-americana. Sensível à necessidade da narrativa da vida desde que escreve sobre a vida-obra de Rahel em pesquisa transformada em livro [Rahel Varnhagen. A vida de uma judia alemã na época do romantismo], Arendt transforma temas que cortam a sua vida de exilada e de seu interesse em estudos que nos alcançam para melhor compreendermos temas que despertam o interesse dos rumos do nosso século modificado pelo crescimento de máquinas e para a vontade de pensar a partir de uma condição feminina, ou mais amplamente, de perspectivas que levam em consideração problemáticas afetivas como o amor (cf. O conceito de amor em santo Agostinho) e a própria natalidade ( cf. A condição humana).
Em Arendt, é preciso alterar a busca pelo termo maternidade para nascimento, e assim encontraremos uma ampla discussão que antecede à de Kristeva e, embora distante das contribuições psicanalíticas, nos oferece conceitos fecundos. Ao longo do primeiro volume da trilogia, Kristeva enfatiza a retomada do interesse da pensadora pelo que ficou conhecido como “novo começo”. Reproduzo uma passagem do argumento de Arendt, seguindo a leitura de Kristeva: “O homem foi posto no mundo, segundo Agostinho – o que Arendt retoma uma vez mais –, para um ‘novo começo’, pelo fato de que ele próprio é pensado como um ‘começo correndo em direção a um fim’ e ‘dotado da capacidade de querer e de não querer’” (Kristeva, 2002, p. 189; 1999, p. 327). Pensar sobre o nascimento e seu vínculo com o novo começo em Arendt nos leva ao que a pensadora nos propõe na abertura de A condição humana (2007). No capítulo chamado “A vita activa e a condição humana”, Arendt estabelece três atividades humanas que julga “fundamentais”, a saber, o labor, o trabalho e a ação. Resumidamente, temos no labor as questões que envolvem o corpo humano e sua biologia e no trabalho o vínculo com a técnica. A atividade que se sobressai para Arendt é a da ação, uma vez que envolve a pluralidade da vida política da nossa condição humana. Arendt explica que essas três atividades estão relacionadas a condições tais como nascimento e morte, natalidade e mortalidade. No entanto, cabe à ação, e a sua capacidade de promover a preservação de corpos políticos, viabilizar o que a filósofa chama de “condição para a lembrança” (Arendt, 2007, p. 16-17). Em seguida, Arendt atribui à ação a condição para o que chama de história. Estabelece-se um diálogo entre ação e narratividade. Nesse sentido, a ação se mostra relacionada ao que a pensadora designa como “novo começo” e também à “condição humana da natalidade”. Kristeva nos explica que a reflexão de Arendt sobre o começo apresenta herança teológica, referindo-se a expoentes da noção de começo, como Jesus, São Paulo, Santo Agostinho, Santo Tomás e Duns Scot, o que Kristeva chama de uma “genealogia do conceito de vida” (Kristeva,2002, p. 184; 1999, p. 319). No entanto, o começo, para a teórica, ultrapassa a questão teológica para poder ser problematizado, de forma mais ampla, como uma vida do espírito. Da herança cristã, temos o que Kristeva observa como “começo da vontade”, que terá como consequência os desdobramentos que ela reconhece sob o sintagma da “dialética da liberdade”, a seguir pela filosofia kantiana. Essa trajetória sucinta da formação da nossa subjetividade e da vida interior, experiência do íntimo, na leitura que Kristeva faz do pensamento arendtiano, já participa de um projeto pós-cristão, ou como ela chama em sua pesquisa genealógica, de projeto ou utopia arendtiano “transcristão de recomeços” (Kristeva, 2002, p. 185; 1999, p. 320).
Interessante essa busca que flagramos em Kristeva pelas genealogias do feminino e seus vínculos com os (re)começos. Se retornarmos à medusa, sugestão do ensaio de Visões capitais (1998), veremos que está nessa personagem mitológica algo que abala o primado da visão, uma vez que aqueles que a olham são imediatamente petrificados por ela. Não por acaso, Perseu toma o cuidado de matá-la durante o sono (cf. Grimal, 2005, p. 187). Nos encadeamentos de diversas referências que constituem os abalos do primado da visão característicos da filosofia, podemos situar o pensamento de Hannah Arendt. Esse aspecto basilar na formação do Barroco Floral encontra em Arendt uma importante aliada. Desenvolve-se na primeira parte de A vida do espírito (2002), no longo capítulo dedicado à faculdade do pensamento, a exposição da metáfora como nosso meio de acesso ao mundo, pois essa figura de linguagem estabelece a mediação entre espírito e mundo (Arendt, 2002, p. 84). Ainda que a pensadora desloque a importância da metáfora para a filosofia, ela confere importância a sua origem poética (Arendt, 2002, p. 81). Essa origem ligada ao universo poético não impede que a filósofa reconheça, desde o início da filosofia, a manifestação de metáforas visuais na história da filosofia. No entanto, Arendt discorda da abrangência dessas metáforas visuais, que foram lidas como fundamentais para o filósofo Hans Jonas. Para fundamentar a sua crítica, a filósofa, ao investigar a faculdade da vontade, no segundo volume de A vida do espírito (2002), perceberá que a atenção metafórica dos filósofos da Vontade recai para o sentido da audição, o que não foi suficiente para pôr em xeque o primado do sentido visual na história da filosofia. Numa extensa nota, Arendt menciona os argumentos de Hans Jonas, autor do The phenomenon of life, sobre o que ela sintetiza como as “vantagens da visão como metáfora-guia” (Arendt, 2002, p. 85). Entre esses benefícios, está, em primeiro lugar, a distância segura entre sujeito e objeto; em seguida, o fato de o sujeito não ser capturado pelo objeto visto. Não ser diretamente afetado pelo objeto parecia ser fundamental, sendo portanto diferente do sentido da audição, que poderia ser um adversário ao apelo visual, mas o sentido auditivo encontra na passividade do sujeito o seu rebaixamento, segundo o critério da separação elencado por Jonas. Por meio dos apontamentos de Jonas, Arendt conclui que a experiência do observador não se restringe ao presente, mas se expande para a observação das coisas em geral, permitindo-lhe pensar inclusive sobre a ideia de eternidade: “Somente a visão fornece a base sensível na qual o espírito pode conceber a ideia do eterno, aquilo que jamais se modifica e está sempre presente” (Arendt, 2002, p. 85-86). Apesar de reconhecer e até mesmo mencionar em nota os pontos de Jonas sobre o primado visual, o pensamento de Arendt avança para outro momento, outro contexto do pensamento, no qual a pensadora compõe a terceira parte de sua A vida do espírito. Ao entrar em contato com a Crítica do juízo, de Kant, Arendt nos expõe às fricções entre o particular e o coletivo, par que problematiza especialmente o sentido do gosto. E assim a filósofa desloca a discussão para o sentido do gosto – Arendt fará questão de comentar, em A vida do espírito, que a Crítica do juízo kantiana foi inicialmente concebida como Crítica do gosto (Arendt, 2002, p. 85).
No ensaio dedicado à Arendt, Kristeva sustenta que a filósofa “suspende a investigação da vontade” para o que chama de abertura “comunitária” (Kristeva, 2002, p. 197; 1999, p. 342). Kristeva refaz o caminho de recuperação da Terceira Crítica, conforme a leitura feita por Arendt, que foi abruptamente interrompido com a morte da filósofa, até chegar a um aspecto que extrapola os pontos em comum que localiza entre os dois pensadores e que diz respeito ao gosto. Vejamos primeiramente o que os liga. Na leitura de Kristeva, Arendt percebe que Kant escapa do aspecto melancólico que acomete a maioria dos filósofos, ao defender, por exemplo, na sua concepção de política, o que chama de “uma adesão à vida e ao Ser” (Kristeva, 2002, p. 199; 1999, p. 346). Podemos pensar que Arendt, contemporânea de Heidegger e de seu ser-para-a-morte, também se contrapõe a uma tendência melancólica do pensamento do seu tempo quando traça um caminho diverso do seu professor, um caminho que elege a vida e os novos começos como temas possíveis. Acontece, no entanto, algo mais complexo do que uma contraposição vida versus morte quando entramos em contato com as sinuosidades da leitura de Kristeva. A teórica observa na perspectiva de Arendt o que chama de “transformação” do ser-para-a-morte de Heidegger para a formulação de “estrangeiros efêmeros que desaparecem se desalojados pelos nascimentos surpreendentes de recém-chegados” (Kristeva, 2002, p. 86; 1999, p. 143), ao retomar o ponto desenvolvido pela filósofa em A crise da cultura e A condição do homem moderno. Se não se pode sustentar uma contraposição efusiva da reversão do par vida/morte, pode-se problematizar a melancolia que acompanha o pensamento filosófico. Com ressalvas irônicas da filósofa que não pactuava com as abordagens psicanalíticas, Kristeva faz questão de nos oferecer o panorama de Arendt sobre os afetos que rondavam aqueles que esculpiram as nossas formas de pensar:
Ela havia evocado, no fim do Sistema totalitário a melancolia ou desolação filosóficas: a solidão do triste Hegel (“Houve apenas um que me compreendeu e, mesmo assim, me compreendeu mal”), ou “a esperança vazia e a esfera lânguida do homem desolado”, em Nietzsche, até que veio Zaratustra (“Foi meio-dia, ali Um se tornou Dois…”). *[O sistema totalitário] Os filósofos são os precursores ou, ao contrário, os terapeutas da desolação que leva ao totalitarismo: O pensamento lhe dá a ocasião de ironizar uma vez mais “os filósofos, a tribo mais melancólica que já houve” *[O querer, In: A vida do espírito]. (Kristeva, 2002, p. 178; 1999, p. 308).
O segundo ponto de contato entre esses pensadores ancora-se na defesa da comunicabilidade. Kristeva refaz o caminho da tensão entre o particular e o universal no juízo do gosto, nos mostrando que coube à faculdade da imaginação dar conta de escolhas que poderiam ficar sob o critério individual do aprazível. Tanto Kant quanto Arendt escapam de pôr a questão sob as escolhas dos sujeitos, de modo a ampliá-la para a “presença da imaginação no próprio intelecto”, seguindo o retorno realizado por Arendt da sugestão do “esquema” na Crítica da razão pura (Kristeva, 2002, p. 204; 1999, p. 354). A alternativa para dar status mais ampliado ao sentido do gosto estaria na formulação do esquema kantiano, algo a ser aproximado de “imagem” sem ser reduzido a ela, permitindo à faculdade da imaginação a experiência de uma partilha, que, na leitura de Kristeva, deixa-se enraizar na comunidade, o que se traduz em gesto de comunicabilidade. Curiosamente, para além dessa partilha política que está no gosto sugerido por Arendt, Kristeva não deixa de mencionar a relevância da experiência da dor para a filósofa, em A condição do homem moderno, que se manifesta sem objeto, sendo, para a nossa surpresa, “exclusivamente corporal” e “incomunicável” (Kristeva, 2002, p. 164; 1999, p. 284). Ao lado dessa dor, Kristeva também reconhece a eclosão da felicidade pela perspectiva estoica, que, de forma análoga à experiência da dor, dá às sensações do corpo o que chama de “caráter perfeitamente apolítico” (Kristeva, 2002, p. 165; 1999, p. 285). Nesse sentido, Kristeva critica a fuga de Arendt no que diz respeito ao que chama de “contexto feminino do corpo feminino” (Kristeva, 2002, p. 168; 1999, p. 290), o que deve ser lido no conjunto de argumentos arendtianos como a defesa de um Eu ou Ego pensante em detrimento do Eu e de suas possíveis conexões com o próprio corpo.
Para pensarmos o Barroco Floral, a chave dada por Kristeva está na extrapolação desse encontro entre Kant lido por Arendt, encontro impossível de ser contornado. E as metáforas do gosto, que se movimentam pelo texto de Kristeva, fazem vir à tona o “apetite de significação” (Kristeva, 2002, p. 173; 1999, p. 299), referido pela própria filósofa, e a recriação de Kristeva por meio da atribuição gustativa a um pensamento carregado de voracidade – “apetite de pensamento”: “O que conta é esse apetite de pensamento que não cessa, em Arendt, de procurar os fundamentos do elo entre particular e geral, entre indivíduo e pluralidade, para justificar uma condição humana vivível, tão livre quanto justa” (Kristeva, 2002, p. 205; 1999, p. 356, grifos nossos). A pensar junto com esse sintagma a questão da vida do pensamento, Kristeva nos mostra como Arendt se desloca de Aristóteles para Nietzsche. Ao falar sobre o pensamento nas Giffor Lectures (de 1973), conteúdo que se tornaria parte do primeiro volume de sua A vida do espírito (Pensar), Arendt vale-se da metáfora “vento do pensamento”, a nos embriagar ao modo nietzschiano, para fazer a articulação do que Kristeva sintetizará pela forma do “pensamento como vida”, que nos parece caro ao projeto do gênio feminino. Trata-se de uma forma de pensar pautada pela desconstrução de um eu em “estado de exaltação”: “Devemos compreender que essa vida da verdade, que não é senão a vida pensamento, equivale à atividade do pensamento como tal, e que ela não tem “verdade”, senão a própria atividade, continuamente desconstrutiva. Vida-pensamento ou pensamento-vida, ela nos coloca na articulação entre o questionamento das significações e a embriaguez que se apossa da consciência” (Kristeva, 2002, p. 183).
O que nos anima especialmente eclode nas referências aos enciclopedistas franceses que pontuam o que Kristeva lê como “contexturas” do gosto, que não estão em Kant, tampouco no juízo do gosto kantiano recuperado por Arendt, e apesar disso se impõem para nos dizer alguma coisa. A teórica insere uma longa nota para nos dizer que Kant pode ter tido contato com tratados sobre o gosto do século XVIII. Mas o que pretende Kristeva ao trazer à cena tratados do gosto de Voltaire e de Montesquieu?
Assim, Voltaire insiste na importância da sociedade e de sua coesão para a formação do que é percebido como “gosto” (“Quando há pouca sociedade, o espírito se estreita, sua ponta se embota, não há com que formar o gosto”), chegando até a só reconhecer gosto nos povos da Europa, não tendo os outros “aperfeiçoado” suficientemente suas sociedades (cf. o artigo “Gosto” da Encyclopédie). Mais nuançado, Montesquieu subordina firmemente o gosto ao prazer, implicando, com isso, tanto o corpo quanto a alma: “São os diferentes prazeres da nossa alma que formam os objetos do gosto […], que não é senão a vantagem de descobrir, com finura, e prontamente a medida do prazer [grifo nosso] que cada coisa deve dar aos homens.” Ele distingue os prazeres e os gostos naturais dos prazeres e dos gostos adquiridos: sendo os prazeres dependentes essencialmente do corpo, de tal “órgão” de nossa “máquina”, e até mesmo de uma contextura diferente dos mesmos órgãos”, e procedendo por “uma aplicação de pronta e delicada das próprias regras que não se conhecem”. Ainda mais sutilmente, a alma recebe seus prazeres pelas ideias e pelos sentimentos, sempre guardando uma autonomia de funcionamento específico, uma vez que “não há absolutamente coisas tão intelectuais […] que ela não sinta”. Cf. Montesquieu. Essai sur le goût (Kristeva, T I, 2002, p. 238-239; TI, 1999, p. 352-353).
Kristeva destaca que Kant segue uma posição política do gosto, afastando-se da possível influência do sensualismo de Montesquieu. Quanto à Arendt, embora a pensadora não tenha aderido a questões do corpo em sua recuperação do juízo do gosto, a partir da escolha do tema da natalidade, vista como ação política, a pensadora, no entanto, abre caminho para temas que não chegaram a ser desenvolvidos por ela, a saber, o perdão e a promessa. Temáticas que Kristeva perceberá como aquelas que teriam levado Arendt à continuação das tensões entre o particular e o geral, cuja herança remonta à Crítica do gosto kantiana, e que teriam levado Kant a uma Crítica da razão política, Quarta Crítica, que poderia estar no horizonte de investigação de Arendt, segundo a leitura da vida-obra feita por Kristeva (Kristeva, 2002, p. 206; 1999, p. 357). Fica-se com a sensação de que possivelmente Arendt seria levada a considerar o corpo em suas reflexões que tocam em pontos que levam a paradoxos. Importante incluir na problemática do perdão o fato de este tema para Arendt se dirigir à pessoa e não ato cometido, o que faz com que Kristeva o aproxime do amor (Kristeva, 2002, p. 208; 1999, p. 362) e ao mesmo tempo expanda o assunto para suas investigações psicanalíticas (Kristeva, 2002, p. 210; 1999, p. 364-65), já que ela o compara aos movimentos da escuta e da transferência e contratransferência próprias ao processo de análise, permitindo ao analisando um renascimento da vida interior ou, em outras palavras, um “renascimento do sujeito”. Talvez uma parte da resposta à inclusão de pensadores como Voltaire e Montesquieu no centro de uma discussão cujo eixo está na demanda política se encontre no terceiro volume do gênio feminino.
Melanie Klein
Antes desse movimento, retorno ao segundo volume do gênio feminino, dedicado à vida-obra de Melanie Klein, que acena para o desenvolvimento do que em Arendt parece ter ficado pelo caminho em virtude de suas críticas às contribuições psicanalíticas, que, conforme as palavras da pensadora resgatadas de sua comunicação com Heidegger, nos dá a ler uma recusa do prazer do corpo diante da oralidade em direção à defesa da comunicabilidade: “Depois de Kant, Freud se preocupou com a dinâmica desse prazer primeiro de pulsão oral. Já Arendt prefere não saber: essa ‘feiúra’ ‘pré-política’ decididamente não é ‘cativante’ (Kristeva, 2002, p. 168; 1999, p. 290).
Está justamente nessa exclusão pré-política do pensamento arendtiano o ponto de investigação que nos motivará para reler a vida-obra da psicanalista Melanie Klein. Essa mulher ganha uma apresentação fulgurante na pesquisa de Kristeva. A teórica faz questão de mostrar a vida marcadamente pautada por uma condição estrangeira (Kristeva, 2002, p. 18; 2000, p. 19) em diversos níveis, considerando os seus atributos de deslocamento, de imprevisibilidade e de superação: “esposa infeliz”, “mãe deprimida”, sem diploma, sem vínculo com a área médica, psicanalista aos quarenta anos de idade, envolvida em controvérsias com Anna Freud (a filha psicanalista de Freud), autora de uma obra intitulada A psicanálise das crianças, de 1932, Klein, além de ter passado pelo escândalo de ter analisado os próprios filhos, é também aquela que migra da Alemanha para Londres e se torna mundialmente reconhecida pelas suas contribuições psicanalíticas.
Para melhor entendê-la na sua forma criativa de pensar e desafiar questões de seu tempo, é importante retomar alguns pontos de diferenças com a psicanálise freudiana, ainda que não pretendamos fazer quaisquer aplicações clínicas em textos ficcionais. Trata-se antes de poder entrar em contato com os afetos que nos são apresentados pela história do pensamento, incluindo o legado da Psicanálise. Diversamente de Freud, Klein defenderá, segundo seus estudos dedicados à psicanálise das crianças, que a pulsão de morte nos acompanha desde o nascimento. Para Freud, não há pulsão de morte no bebê, tampouco no inconsciente (Kristeva, 2002, p. 76; 2000, p. 100). Kristeva não deixará de incluir o fragmento que dá corpo para a oralidade, outrora em descrédito por Arendt, realçando as “fantasias de ataques sádico-orais contra o seio da mãe” na pulsão de morte do bebê, seguindo “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides”, de 1946 (Kristeva, 2002, p. 77; 2000, p. 101). Outro ponto de diferença entre Freud e Klein está na importância do desejo e no seu recalcamento para a inspeção inconsciente de nossa vida psíquica, de acordo com a teoria freudiana, ao passo que Klein reconhece na angústia o fundamento de nossa vida psíquica (Kristeva, 2002, p. 101; 2000, p. 135). Kristeva faz questão de nos explicar que a ênfase kleiniana na pulsão de morte não pode ser confundida com uma recusa, desistência da vida ou tendência complacente diante da morte; na contracorrente desse entendimento, o que está em jogo é a própria restituição da vida diante dessa ameaça, que se reverte em “conservação da vida” (Kristeva, 2002, p. 102; 2000, p. 137). Nesse momento, a fim de desenvolvermos minimamente alguns percursos da oralidade no pensamento kleiniano, não há como escapar de uma síntese das duas posições que compõem a vida psíquica do bebê. Em livro anterior a este, Kristeva já se ocupava com a formulação kleiniana acerca das posições esquizoparanóide e depressiva.
Antes de retomá-las, voltemos a Sol negro: depressão e melancolia (1987/1989) e à defesa da imaginação melancólica por Kristeva. No trajeto que nos leva à Klein, a teórica buscará nesse ensaio, que envolve uma longa e indispensável discussão sobre a relação entre arte e melancolia, apoio em Freud, especialmente no ensaio de 1917, Luto e melancolia, a partir do qual ela sugere uma definição para a melancolia2. Kristeva não deixa de mencionar a “euforia maníaca” (Kristeva, 1989, p. 27; 1987, p. 31) como uma possibilidade desses estados, mas ela privilegia a tristeza, considerada representante do humor negativo, se deslocando inclusive para sugestões pós-freudianas nas quais está em pauta uma tristeza “não-simbolizável, não-nomeável, tão precoce que nenhum agente externo (sujeito ou objeto) pode ser relacionado com ele” (Kristeva, 1989, p. 18; 1987, p. 22). Nessa perspectiva, a teórica inclui, em nota discreta, a abordagem filosófica do pensamento de Heidegger e sua investigação em torno da “Coisa”, para citá-lo sobre esse tema que nos oferece caminhos da tradição do pensamento ocidental a respeito do que escapa à simbolização: ‘“alguma coisa’ que, vista ao contrário pelo sujeito já constituído, aparece como a indeterminada, a inesperada, a inapreensível, até na sua própria determinação de coisa sexual’” (apud Kristeva, 1989, p. 19; 1987, p. 22). Entretanto, Kristeva não se demora por essa via, porque constata nessa alternativa o descrédito ao corpo, ainda que se desenvolva a partir da radicalidade dessa assimbolia um expressivo vínculo com a condição estrangeira, característica do criador melancólico. Sol negro nos fala do melancólico à luz do que se constrói na experiência de não pertencimento que vamos encontrar em Estrangeiros para nós mesmos. O melancólico é um “estrangeiro na sua língua materna” (Kristeva, 1989, p 55; 1987, p. 64), e Kristeva descreve o que chama de uma “língua morta” falada por ele, que se assemelha à tenebrosa imagem de uma “Coisa enterrada viva” (Kristeva, 1989, p. 55; 1987, p. 64).
Não nos esqueçamos que desde Freud, em “Luto e melancolia”, há referência sobre o complexo luto do objeto materno (Kristeva, 1989, p. 16; 1987, p. 19). Em Sol negro, Melanie Klein se manifesta através da referência ao artigo de Hanna Segal, “Anotações sobre a formação do símbolo”, de 1957, no qual essa discípula kleiniana se aproxima daquela que propôs as posições esquizoparanóide e depressiva ao comentar sobre o processo da imaginação melancólica, que problematiza vínculos de proximidade e afastamento entre mãe e bebê. A posição depressiva, a partir do quarto trimestre de vida, conforme a recuperação de Segal (Kristeva, 1989, p. 29; 1987, p. 34), possibilita que os chamados equivalentes simbólicos, que têm nas vocalises um exemplo marcante, sejam transformados em signos. Para que isso aconteça, o bebê precisa sentir a falta da mãe, o que justifica o nome dado a essa posição. Também é necessário, segundo a ênfase da inspeção afetiva da leitura de Kristeva, o que ela vai chamar de triunfo sobre a tristeza, que somente acontecerá a partir da instauração de uma terceira instância associada à faculdade de imaginação. Kristeva tributa a Freud o mérito da sugestão desse elemento, que é descrito em o Ego e o id como o “pai da pré-história individual” (referido pela teórica em A revolução da linguagem poética; Histórias de amor e Sentido e contrassenso da revolta), recebendo, em Sol negro, a designação de “pai-imaginário” (Kristeva, 1989, p. 29; 1987, p. 34).
Alguma coisa, no entanto, parece ficar pelo caminho na recuperação dos afetos imbricados com a imaginação e, por extensão com a atividade poética, que irá nos interessar no recorte do Barroco Floral que proporemos mais adiante. Reparem que, ao referir a oralidade por meio do canibalismo, que aparece em nota de “Luto e melancolia”, Kristeva prepara o terreno para um interesse crescente acerca das questões do gosto em seu próprio pensamento. Sobre o canibalismo, ela localiza a paixão do vivo no texto freudiano: “paixão de manter dentro da boca (mas a vagina e o ânus também podem se prestar a este controle) o outro intolerável que tenho vontade de destruir para melhor possuí-lo vivo” (Kristeva, 1989, p. 18; 1987, p. 21).
Depois de algumas décadas, o interesse pela oralidade retorna com o volume dedicado à Klein. Kristeva chama a atenção para o desejo oral de devoração no início da vida do futuro sujeito falante para nos falar de uma “angústia originária” que nos habita, na qual se vive, na experiência arcaica, o medo de ser destruído: “não é o eu que deseja devorar, eu tenho medo de ser envenenado pelo seio mau em que projetei meus dentes maus – tal seria a lógica da fantasia sádica correspondente à angústia primária esquizoparanóide” (Kristeva, 2002, p. 104; 2000, p. 142).
Nesse volume, as posições kleinianas esquizoparanoide e depressiva reaparecem já na introdução, para marcar a existência inicial de um ego paranoide em nossa formação, e o consequente reforço da posição depressiva para a nossa aquisição da linguagem é evidenciado. Kristeva nos mostra que a loucura participa do nosso século XX, sendo a contribuição do pensamento de Klein indispensável para nos confrontar com o nosso “mal-estar”, de modo a ampliá-lo para as diversas manifestações que ficarão sob o cuidado e tentativa de leitura e propostas de renascimento a partir de diagnósticos da clínica kleiniana que foram elencados por Kristeva, tais como a “esquizofrenia” a “psicose”, a “depressão”, a “mania”, o “autismo”, a “fragmentação do eu”, e a lista é ainda mais ampla (Kristeva, 2002, p. 21-22; 2000, p. 24). O que nos interessa sobremaneira do pensamento de Klein está na atenção que ela dispensa aos afetos. Nesse sentido, a obra Inveja e gratidão, de 1957, retoma uma discussão de pulsão agressiva anteriormente abordada na posição esquizoparanóide, a saber, a inveja do seio, que encontra no movimento de culpa de tentativa de reparação do futuro sujeito falante o sentimento de gratidão. Kristeva não perde a oportunidade para reunir as referências religiosas e literárias a fim de nos mostrar que a psicanalista-pensadora estava inscrita para além de um trabalho que poderia ser reduzido a uma atividade técnica. Klein traz à cena São Paulo, santo Agostinho, Shakespeare, Otelo, Milton e Spenser. E Kristeva, atenta ao modo de como a psicanalista lê a tradição, não deixa de comentar a estratégia argumentativa que é tecida em torno da inveja:
E Klein aplaudirá os inúmeros pensadores que, antes dela, haviam estigmatizado a inveja como sendo o pior dos pecados, já que se opõe à própria vida: “O amor não é capaz de invejar” (Primeira Epístola aos coríntios); santo Agostinho descreve a Vida como força criadora que se opõe a uma força destruidora, a Inveja; Chaucer condena a inveja como “o pior dos pecados, porque todos os outros não são pecados senão contra uma única virtude, ao passo que a inveja o é contra toda virtude e contra todo bem” (“toda virtude” e “todo bem” estando ligados, para Klein, ao objeto primitivo cuja deterioração abala a confiança do sujeito) (Kristeva, 2002, p. 113; 2000, p. 156-157).
Se Klein inclui posições da tradição que condenam a inveja, ela, no entanto, está longe de amenizar a relevância desse sentimento. Ainda que na sequência desse ensaio tenha evocado as forças sublimatórias à luz de uma reconciliação por meio de um fragmento de Goethe, Kristeva nos mostra que ela permanece dando espaço preferencial à “angústia” e à “destrutividade” (Kristeva, 2002, p. 114; 2000, p. 157). Interessa a Kristeva voltar ao último texto de Klein, “Sentir-se só”, que numa discreta nota é comparado ao texto de Winnicott, “A capacidade de estar só”. Diversamente dele, que via abertura para o êxtase nesse estado, para Klein a solidão guarda sempre uma “tonalidade de desolação no coração mesmo da serenidade adquirida” (Kristeva, 2002, p. 134; 2000, p. 183). Esse eu que nos constitui vai passar nos seus primórdios pelas experiências sensíveis da angústia, do ódio, do amor, da inveja e da gratidão – o que não é pouco. Há também, depois do sadismo oral, a ênfase dada por Kristeva a partir da formação do nosso superego, que, no pensamento de Klein, é um “superego tirânico” (Kristeva, 2002, p. 119; 2000, p. 163), a nos pôr em contato com um sentimento de solidão. Ao resgatar os caminhos da nossa formação da linguagem, como Kristeva propõe a partir da sua própria teoria em A revolução da linguagem da poética (1974), por meio da modalidade do semiótico, a teórica, com base no exemplo kleiniano, retorna ao nosso pré-verbal para nos contar que, na situação satisfatória do nosso desenvolvimento psíquico, resta um sentimento de nostalgia diante do forte laço com a mãe. Frente a uma perda de contato que ela vai chamar de irreparável, somos invadidos pelo sentimento de angústia já na fase esquizoparanoide, a partir do terceiro mês de vida, a ser chamada de angústia esquizoparanóide, que é sucedida pela angústia depressiva. Na Psicanálise das crianças, Klein sustentará que nunca encontraremos reparação para essa perda, além de não alcançarmos jamais a plenitude ou domínio sobre essas emoções que nos constituem (Kristeva, 2002, p. 130-131; 2000, p. 182-84). E Kristeva faz questão de dar voz a essa solidão que se universaliza na psicanálise de Klein para todos os sujeitos inseridos na linguagem, à semelhança da condição estrangeira ampliada a todos, que a teórica defenderá em seu Estrangeiros para nós mesmos3 (1991/1994).
O tema da maternidade, um dos tópicos do Barroco Floral, encontra em Klein um espaço de pesquisa que, nos caminhos de Kristeva, desponta já em Sol negro, por meio da tese segundo a qual se defende a necessidade da morte simbólica da mãe, uma vez que essa perda é a condição da nossa autonomização (Kristeva, 1987, p. 38; 1989, p. 33). No recente ensaio “Des madones aux nus…”, a téorica reconhece em telas de pintores, entre eles Picasso, o que chamará de matricídio estético, no qual a mãe será atacada, blasfemada, com o objetivo da criação de outros signos (Kristeva, 2005, p. 162). No volume dedicado à vida-obra de Klein, Kristeva dedica um capítulo ao tema, intitulando-o “Culto à mãe ou elogio do matricídio? Os pais”, cuja resposta se encontra na salvação de ambos; no entanto, em seguida, o matricídio parece se destacar na disputa, pois “é preciso se desprender da mãe para pensar” (Kristeva, 2000, p. 213; 2002, p. 151). Assim, Klein escolhe o mito de Orestes, conforme retomado por Ésquilo em sua Oréstia. Kristeva não deixa de evocar novamente a Medusa, na medida em que sua decapitação se relaciona à castração feminina, segundo a teoria freudiana, mas também simboliza, para Klein, a “perda da mãe arcaica”, a acontecer na posição depressiva (Kristeva, 2000, p. 213; 2002, p. 151).
A biografia da psicanalista realça episódios de tensão com a própria filha, que não passa desapercebida nesse ensaio de Kristeva. A teórica refere a peça de Nicholas Wright, Madame Klein (1988), para abordar as disputas com a filha Melitta e também com suas discípulas (Kristeva, 2002, p. 236; 2002, p. 333). Em contrapartida, o ponto de discórdia com as seguidoras parece menos impactante do que certa herança do gosto que é percebida por Kristeva. Para melhor entender esse intricado abalo do primado visual em direção a outros modos da experiência sensível arcaica, incluindo aí a oralidade, que leva em conta a gratidão de filhas simbólicas do pensamento de Klein, é necessário antes fazer um desvio para a formulação da fantasia, segundo a proposta da psicanalista. De difícil definição porque dada a amplas possibilidades, a fantasia na teoria kleiniana pode constituir-se de “representações verbais e não verbais”, de “sensações”, de “afetos”, de “emoções”, de “movimentos”, de “ações” e também de “objetos concretos” (Kristeva, 2002, p. 163; 2000, p. 225). Kristeva retoma a manifestação da fantasia em Freud e de sua comparação do aparelho psíquico ao aparelho fotográfico (cf. Interpretação dos sonhos), para evidenciar que a fantasia em psicanálise estava preocupada com o surgimento daquilo que aparece – no caso, a aparição das imagens, desde as mais evidentes até as mais recônditas, no caso dos fantasmas arcaicos. Kristeva, embora reconheça a relevância do sentido visual para Freud na formulação das lembranças que ganham vida sobretudo por meio de imagens, faz uma ressalva quando amplia o registro para além do seu aspecto visual: “Freud não esquece, porém, que é o conjunto dos registros sensoriais que é mobilizado no sonho e, por extensão, na fantasia” (Kristeva, 2002, p. 164; 2000, p. 225). Depois de Freud, Kristeva refere o modelo ótico adotado por Lacan, por meio da formulação da fase do espelho, na qual o “olho é aí tomado como o ‘símbolo do sujeito’” (Kristeva, 2002, p. 164; 2000, p. 228). A sugestão de phantasme kleiniano confere abertura para elementos pré ou sem representações, os quais serão investigados pelos psicanalistas que a sucederam, estando, em Klein, mais próximo do “conjunto dos registros sensoriais” enunciado por Freud do que o caminho lacaniano, que, na leitura de Kristeva, conduz a representação psíquica, na esteira da tradição do pensamento grego, à “visibilidade do eidos” (Kristeva, 2002, p. 167; 2000, p. 232). Em outro momento do ensaio, no subtítulo “Gratidão e inveja de Lacan”, Kristeva refere, com base nas ideias expostas acerca de “O estádio do espelho como formador da função do eu”, do Congresso da Associação Internacional de Psicanálise, de 1949, a tensão que eclode a partir da defesa de Lacan do primado visual como “organizador das outras sensações na estrutura do sujeito”, causando o que ela reconhece como “descompasso” com a teoria de Klein (Kristeva, 2002, p. 258; 2000, p. 366).
Kristeva busca no phantasme kleiniano a ênfase que encontra ao que é da ordem do pré-verbal, que pode dialogar com as suas pesquisas em torno do semiótico. Nessa perspectiva, ela encontrará nas investigações de psicanalistas mulheres, entre elas Eugènie Sokolnicka e Marie Bonaparte, exemplos franceses para além das seguidoras kleinianas, um interesse expressivo pela nossa experiência arcaica, que poderá ser confundida como uma troca de intensificação na experiência orgânica em detrimento da psíquica. Entretanto, ultrapassando momentos da vida orgânica que ela exemplifica por meio do ciclo ovariano e da maternidade, a questão se expande do corpo para a sexualidade feminina. Estaria nessa chave a virada para uma defesa do “renascimento psíquico” a partir dessa atração feminina pelo arcaico. Kristeva não deixa de mencionar o ensaio de Freud sobre a “Sexualidade feminina” e a relação mãe-filha, observando no pensamento freudiano o esboço de uma “arqueologia perdida” ao mencionar o enigmático período minóico-micênico, que remonta a uma Grécia arcaica (Kristeva, 2002, p. 174-175; 2000, p. 245-247). O aspecto realçado pela psicanalista, e que foge do caráter de osmose idílica sugerido por Freud, irá trabalhar no Édipo-primeiro com a rede de afetos kleiniana, que, junto com a agressividade, contém expressivas sensações orais:
boca-a-mamilo, boca-a-boca, pele-a-pele, sonoridades e perfumes banham este entre mulheres que deixa marcas indeléveis – para o melhor e para o pior. A oralidade de início mas também a analidade, assim como as pulsões uretrais e uma percepção precoce da vagina, estão aí implicadas numa ambivalência para com aquela que não é ainda um objeto, mas um a-bjeto: polo de satisfação e de repulsa (Kristeva, 2002, p. 175; 2000, p. 247).
Seguindo a nossa inspeção dos afetos, Klein nos dirá que a sublimação dessa tendência tanática encontrará na ternura o seu ponto de modulação, o que pode levar tanto a idealizações amorosas quanto estéticas (Kristeva, 2002, p. 176; 2000, p. 247). No capítulo subsequente do ensaio sobre Klein, Kristeva apresenta sucintamente aspectos das pesquisas de Susan Isaacs e de Paula Heimann, discípulas de Klein, que buscaram elementos anteriores ao sentido visual, para fundamentar seus estudos. Reparem como a questão do gosto retorna ligada ao interesse das psicanalistas pelo pré-verbal, confirmando um interesse do feminino pelo arcaico: “A ênfase das kleinianas assenta na experiência pulsional, subjacente à visão: na Ausstossung ou Verwerfung, segundo terminologia de Freud, anterior à apreensão escópica e prefigurando a Bejahung do juízo, antes do olhar, imediatamente no paladar” (Kristeva, 2002, p. 197; 2000, p. 278). Kristeva não deixa de pontuar, em nota a partir dessa reflexão, o seu volume anterior do gênio feminino sobre Hannah Arendt, no qual foram tecidas, com base na filosofia de Kant, os vínculos entre gosto e juízo (Kristeva, 2002, p. 216; 2000, p. 278).
Sidonie Colette
“Um poema advém de uma episiotomia” (Obra Poética, Vol. I, de Luís Serguilha).
Desde o primeiro ensaio, as bases de trocas entre essas vidas-obras já se articulam. No fecho do estudo sobre Klein, Kristeva abre espaço para pensarmos o gosto quando acena discretamente, em subcapítulo intitulado “Sublimações culturais: arte e literatura”, o nome de Colette na escrita de uma ópera cômica, L’enfant et les sortilèges, onde a escritora redige o libreto, chamando a atenção de Klein. A leitura de Kristeva captura do enredo dessa peça o que servirá mais tarde para a teoria da psicanalista. Reparem como o interesse de Kristeva pela vida arcaica da infância invade o espaço literário: “[…] em 1929, ela se contenta em observar a perspicácia de Colette, que observou que o sadismo do garoto foi despertado por uma frustração oral: não havia a mãe proibido o menino de “comer todos os bolos e doces da terra” e não havia ameaçado só lhe dar ‘chá sem açúcar e pão seco’”? (Colette apud Kristeva, 2002, p. 210; 2000, p. 301-302). Aqueles que acompanham os movimentos de Kristeva pela busca da questão do gosto aguardam o momento em que Proust será evocado nessa cena. E na sequência o autor de Em busca do tempo perdido e sua “saborosa” Madeleine são referidos, mas para nos dizer que por aqui estamos longe dele, pois “não há nenhuma frustração gustativa por parte do pequeno Marcel” (Kristeva, 2002, p. 210; 2000, p. 302). Talvez não tão longe. Essas conexões levam Kristeva a pensar na relação entre arte e “tratamento”, podendo ser a arte um “primeiro tratamento” ou, mais longe ainda, até o mesmo o último, seguindo o pensamento floral da pensadora, que faz caminhos sinuosos enquanto escreve.
A condição estrangeira de Colette parece aflorar com a morte do companheiro Willy, em 1931, impulsionando-a a diversas viagens num curto tempo: Berlim, Áustria, Romênia, Tunísia e Argélia, no mesmo ano; e nos próximos ela seguirá por Genebra, Zurique, Luxemburgo, Amiens, Bruxelas, Toulon, Cannes – cenários que servirão também de inspiração para romances, além de espaços de prestígio para as suas conferências (Kristeva, 2007, p. 74; 2002, p. 84). Os fecundos e variados encontros profissionais que acontecem nesse período contribuem para a vida cosmopolita da escritora; entre outros, Kristeva menciona vínculos de Colette com notáveis como Coco Chanel, Maurice Chevalier, Paul Valéry, Claudel, Gide, Mauriac e a pintora Émilie Charmy (Kristeva, 2007, p. 74-75; 2002, p. 85-86). A despeito dos deslocamentos que modulam a estrangeiridade de sua vida, Colette nos é apresentada por Kristeva como alguém que compõe “uma melodia que possui o movimento da carne” (Kristeva, 2007, p. 130; 2002, p. 156). E Kristeva, essa outra estrangeira, reafirma constantemente a sua surpresa, curvando-se no gesto de uma “humildade de imigrada” diante das palavras incomuns dessa escritora que ela era lera desde a infância (Kristeva, 2007, p. 131; 2002, p. 157). O estrangeiro em Colette reside em sua linguagem poética, que, na epígrafe escolhida de Apollinaire, nos invade com ritmicidades vindas de um corpo a capturar as invisibilidades: ‘“Nela encontramos belezas de primeira ordem que nada mais são do que vibrações da carne”’ (Apollinaire apud Kristeva, 2007, p. 11; 2002, p. 9). E Kristeva passará nesse longo ensaio a nos contar sobre o alfabeto criado por Colette. Nesse alfabeto eclodem as flores – e aí encontramos as raízes poéticas do Barroco Floral, que obviamente não foram inauguradas no século passado, mas foram escritas sob a égide de estranhamentos entrançados na carne de uma experiência sensível, audaciosa e vivaz. Kristeva situa as flores colettianas no infinito do mundo, é por ali que as localiza, dividindo o cenário com bichos e o maravilhoso: “Colette encontrou uma linguagem para falar de uma estranha osmose entre suas sensações, seus desejos e angústias, seus ‘prazeres chamados levianamente de físicos’ e o infinito do mundo – eclosão de flores, ondulações de animais, aparições sublimes, monstros contagiosos” (Kristeva, 2007, p. 15; 2002, p. 13). A uma escrita que dialoga com a liberdade, Kristeva observa que a escritora precisou se afastar das próprias pulsões e das do outro também. Sem cair nas ilusões místicas do que nomeia de um “Grande Outro”, a teórica, logo no início de sua análise, a percebe no paradoxal papel de uma ateia mística (Kristeva, 2007, p. 38; 2002, p. 40), a resumir o ambicioso projeto alcançado pela escritora: um “orgasmo singular com a carne do mundo” (Kristeva, 2007, p. 25; 2002, p. 25). A imagem de um arabesco, conforme a leitura realizada por Apollinaire, estimula, em conjunto com a obra da escritora, a sugestão de que a sua escrita opera como uma “interpenetração da língua e do mundo, do estilo e da carne” (Kristeva, 2007, p. 16; 2002, p. 15).
A respeito do estilo, Kristeva desenvolverá em Sol negro (1987/1989) uma tese segundo a qual o estilo “não passa pela linguagem, e quando esta se refere a ele, este não se liga à linguagem como se liga a uma ideia. A verbalização dos afetos (inconscientes ou não) não tem a mesma economia que a das ideias (inconscientes ou não)” (Kristeva, 1989, p.164; 1987, p. 188). Na inspeção da melancolia, que será a baliza para a criação artística, esse estado se manifesta transverbalmente pela linguagem. Sobre o tema dos afetos em Sol negro, Kristeva apoia-se sobretudo no estudo de André Green, O discurso vivo, para defender o humor da tristeza como o principal a envolver os estados de depressão e de melancolia (Kristeva, 1989, p. 27; 1987, p. 31), o que leva este psicanalista a encontrar outros afetos a partir da tristeza, a saber, a angústia, o medo ou a alegria (Kristeva, 1989, p. 27; 1987, p. 31). Para além da tristeza, que desempenha a função expressiva no desenvolvimento da simbolização do sujeito, os afetos, de modo geral, apresentam o que é chamado de “qualidade móvel de investimentos energéticos flutuantes”, que, no âmbito da consciência, podem estimular “rupturas energéticas” (Kristeva, 1989, p. 27; 1987, p. 32) na linguagem. Kristeva sugere que essas rupturas atravessam a modalidade linguística do semiótico, de modo a criar ritmo, somando-se assim à ação transverbal característica do afeto. Em Sol negro, Kristeva encontra no poema “El desdichado”, de Nerval, no sétimo verso, um vínculo interessante entre a mulher morta e a metáfora floral: ‘“A flor que tanto comprazia ao meu coração triste’” (Nerval apud Kristeva, 1989, p. 144; 1987, p. 165). Para dar crédito à genealogia do Barroco Floral, encontraremos em Nerval lido por Kristeva a manifestação da flor como metáfora da Virgem Maria: “Nos lembremos de que Nerval designou a Virgem Maria como “Rosa branca” (Kristeva, 1989, p. 144; 1987, p. 166). O que contribui para a nutrição do que Kristeva reconhecerá sob o nome de uma “rosa mística” em Nerval (Kristeva, 1989, p. 144; 1987, p. 166) percorre a vida do poeta. Órfão de mãe aos dois anos de idade, o que parece restar poeticamente dessa sofrida perda está na escrita da flor que já habitava o nome materno – Marie Antoinette Marguerite Laurent. A musa do poeta também tinha nome de flor, repetindo Margarida no nome. Há, portanto, na poética de Nerval uma construção de linguagem e de afetos para ultrapassar a melancolia, o que ganha força da metáfora floral. Em Colette, a escrita-flor também estará conectada a afetos que irão aprofundar a saída melancólica por meio de um trabalho de carne e linguagem no qual a figura da mãe e as contribuições psicanalíticas ampliam o que pode ser pensado a partir de uma escritora que criou um estilo ao escrever Les vrilles de la vigne [As gavinhas da vinha], obra que recebeu algumas edições (1908,1923, 1930, 1934, 1950), sendo chamada maternalmente pela escritora, desde o seu início, de “meu recém-nascido feito de peças e de pedaços” (Kristeva, 2007, p. 93; 2002, p. 111). Para além de exemplos literários, Kristeva resgata a ultrapassagem da depressão vivida pela romancista.
Interessante reconhecer que o desenvolvimento do espaço que a teórica oferece à figura materna ganha espessura no domínio literário. Sido, a mãe da escritora, se transforma em personagem mítica em sua produção ficcional. No ensaio “La passion selon la maternité” (2005), a etapa do distanciamento necessário entre a mãe e o bebê para a formação da linguagem do futuro sujeito falante é enfatizada por meio de Sido, recriação materna colettiana, manifesta em La naissance du Jour, de 1928, dando-nos um exemplo desse desprendimento materno que, longe de ser alvo de julgamentos, deve ser lido como abertura para um “começo cósmico”:
«Uma mãe não ama nada nem ninguém, apenas “o desabrochar”: “O desabrochar possível, a expectativa de uma flor tropical suspendeu tudo e fez silêncio até no seu coração destinado ao amor* (Ibid, p. 277)”» (Kristeva, 2005, p. 193). Traduzo: O quadro de uma paixão, o quadro do amor, como o quadro da sociedade, parece-lhe restrito; o seu quadro é o do princípio cósmico.
No volume dedicado à Colette, Kristeva aprofunda contribuições que permitem dialogar com a esfera criativa, desencadeada desde a experiência da maternidade, cujos desdobramentos dos laços afetivos são percebidos pela teórica na experiência escrita e, especialmente, no trabalho de linguagem poética. No final desse volume, Kristeva abre a discussão para o processo de sublimação a partir da atividade da escrita. O gesto a leva a buscar aspectos da nossa trajetória arcaica que atinge sobretudo a formação dos nossos interditos sexuais, no confronto dos laços amorosos e das identificações com os nossos genitores. Nessa perspectiva, a teórica recupera o conceito freudiano da perversão, seguindo os argumentos expostos por Freud em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade4 até a desculpabilização, que se justifica em virtude da predisposição ao polimorfismo perverso nas crianças. Na intenção de buscar outra via de compreensão da perversão ou até mesmo um arquivo feminino invisibilizado pela história da psicanálise, a teórica chama à cena um artigo de Ilse e Robert Barande, intitulado “Antinomie du concept de perversion et épigènese de l’appétit d’excitation”, publicado em 1983, na Revue française de psychanalyse. Note-se que a atenção é deslocada para a mãe, o que institui um debate e não a mera rejeição do lugar do père-version (perversão), que eles reconhecem sob o nome de mère-version, ou seja, uma mãe-versão. É para analisar a nossa condição humana pautada desde o início pela incompletude intrínseca ao recém-nascido, a neotenia, que a teórica se volta à inspeção daquela que partilha, desde a gestação uma hospitalidade a ser, cada vez mais, problematizada. Na leitura de Ilse e Robert Barande, essa condição de dependência do recém-nascido em relação à mãe modela-se através da imagem de um “apetite de excitação” (pertinente metáfora gustativa), que sinaliza para o que os psicanalistas reconhecem sob o nome de “angústia precoce” ou de “fobia original” (Kristeva, 2007, p. 178; 2002, p 213). Na leitura de Kristeva, a sugestão da perversão poderia ser uma estratégia contra fóbica e nesse sentido o nome do pai estaria escondendo a própria fobia em relação às tensões da vida psíquica desde os arcaicos e fugidios contatos maternos.
Os possíveis efeitos literários da mãe-versão aparecem descritos por Kristeva através de suas observações sobre textos escolhidos de Colette. A teórica, ao não encontrar um gênero para situar a obra de Colette, recolhe do próprio texto colettiano as pistas que permitem localizá-la no gênero inaugural chamado de “gavinhas da vinha” (Les vrilles de la vigne) – título de um dos livros da escritora. No emaranhado de uma vegetação muito singular, na qual se desenham bordados de carne e pensamento, poeticamente batizados de arabescos pelo poeta Apollinaire (Kristeva, 2007, p. 16; 2002, p. 15), ressoam construções linguísticas e seus infrassignificados sensíveis que remontam a vestígios da mãe-versão da escritora e podem ser aproximadas de poemas em prosa. No processo sublimatório de escrita colettiana, a reconciliação com a mãe-versão passa pela criação escrita pautada sobre a construção do que Kristeva chamará de neo-realidade. Kristeva observa traços utópicos nessa construção, na medida em que Colette alcança em sua neo-realidade um “espaço fora do tempo”, marcado por predicados como “a-político” e “a-social”, que podem até mesmo atiçar os limites entre sujeito e objeto (Kristeva, 2007, p. 419; 2002, p. 519). Longe de aplicar o roteiro da reconstrução utópica a todos os escritores que cruzam o nosso caminho, podemos, no entanto, pensar que qualquer processo sublimatório de escrita desperta, em alguma medida, por aquele que recria esses afetos arcaicos, com base nos resquícios da experiência da mãe-versão, algo que eclode na formação de uma neo-realidade a ser capturada no texto pelos diferentes leitores. As gavinhas da vinha lidas por Kristeva não deixam de situar as marcas de oralidade revividas e modificadas pela escritora, sugerindo a passagem pela angústia da mãe-versão e sua transformação em trabalhadas aliterações em v, sem apagar o “estado febril” que parece remontar a um tempo outro em que as fronteiras com essa outra – a mãe – soavam varridas para a futura escritora:
Ouçamos novamente o título – Vrilles de La vigne: VR/ILLE/V/IGNE… No mundo secreto da escritora, as vibrações da boca e os zumbidos dos ouvidos, dentes e lábios reaproximados em vvv, estão associados a um estado de perda de si, de febre devastadora e mesmo assim propícia à escrita: “A febre continua sua marcha, que não é aborrecida. Ela sopra grandes vvvou em torno de mim, com uma profusão de v; ela parece ter tomado emprestado todos os v contidos nas palavras largamente aeradas como vent [vento], vortex [vórtice], vol* [voo]…” Les Vrilles de la vigne teriam sido escritos nesse estado febril em que os limites de si se apagam no vento, no vórtice, no voo? (Kristeva, 2007, p. 104; 2002, p. 123-124).
A utopia de Colette estaria em retornar e escrever sobre esses estados arcaicos de onde alguns sequer conseguem sair para entrar na simbolização? Voltar, portanto, aos fragmentos de experiências arcaicas por intermédio da atividade da escrita compreende recriar estados sensíveis que deixam marcas textuais de intensidade, espécie de experiências sensíveis escritas, que se evidenciam especialmente através do sentido do gosto. Kristeva opta por trocar a figura de linguagem da metáfora para o que desponta do texto da própria escritora por meio do estilo colettiano entrançado na escrita das gavinhas, que estimula a criação de metamorfoses. Kristeva reconhece que a escritora, a exemplo da busca de inúmeros que se dedicam à atividade da escrita, persegue a captura do indizível. No caso de Colette, a “relação indizível” passa pela analogia e contraste, a compor “círculos e espirais” entre duas palavras, mas pode ser entre duas sensações, ou de forma ainda ampla, entre duas coisas (Kristeva, 2007, p. 113; 2002, p. 134). Em seguida, Kristeva sintetizará o gênero gavinhas da vinha como uma “mistura de narração elíptica e de poemas em prosa”, a trabalhar desde o estilo a experiência imagética evocada pela gavinha: a de uma “memória retorcida” (Kristeva, 2007, p. 116; 2002, p. 138).
As metáforas gustativas carregam recordações soterradas pelo tempo, fazendo emergir a gestualidade oral vivida desde o espaço uterino. A busca por esse espaço arcaico atravessa o interesse de Kristeva nesse mesmo volume dedicado à vida-obra de Colette, e, além de a teórica recuperar, baseada na pesquisa de Massimo Tomasini, os gestos do feto que levam ao que chama de “exploração” uterina (Kristeva, 2007, p. 187; 2002, p. 225), também deixa em evidência aromas e sabores das construções colettianas. Nesse banquete de “Rites”, em Prisons et Paradis, explodem sabores vindos de uma arcaica memória onde o retorcimento vegetal das “gavinhas” nos coloca frente ao tato de sua criação num mundo sobrenatural de sensações:
Banhada em um bom vinho branco muito seco – guardem o champanhe para os banquetes, a trufa pode perfeitamente dispensá-lo – salgada sem excessos, apimentada com tato, ela cozinhará no caldeirão preto tampado. Durante vinte e cinco minutos, ela dançará em ebulição constante, arrastando na correnteza e na espuma – como se fosse tritões jogadores em torno de uma negra Anfitrite – uns vinte toicinhos, meio gordurosos, meio magros, que enriquecem a cocção. Nenhuma outra especiaria! (Colette apud Kristeva, 2007, p. 228; 2002, p. 271).
Nesse ensaio, Kristeva abre caminho para uma genealogia mística na qual Colette seria antecedida pelas intensidades escritas por Teresa d’Ávila (1515-1582), Ângela de Foligno (1248-1309) e por Hildegarde de Bingen (1098-1179), de modo a anunciar uma nova mística, na esteira do que essas mulheres santas vivenciaram ao escrever no limite de seus corpos curiosas experiências de êxtase, de um fora singular a cruzar a carne e a linguagem. No entanto, ao escrever sobre o amor, Colette escapa ao “Grande Outro”: “Todas tentam, ao longo do tempo, encontrar palavras para essa efervescência sensível que não se dirige a um parceiro ou a outro, mas a esse Grande Outro que elas chamam de “Deus”, e que, transitando pelo corpo de Jesus, esposa o universo inteiro, sem esquecer o da própria apaixonada” (Kristeva, 2007, p. 274; 2002, p. 329). E Kristeva não retira das mulheres místicas o dizer do gozo. A diferença entre as experiências de êxtase de Teresa e de Hildegarde na comparação com a de Colette está na perda. Colette vale-se de metáforas para escrever sobre o amor: “Sua escrita se torna então um fluxo, uma corrente: não uma corrente da consciência, nem mesmo do inconsciente, mas uma corrente do escoamento de si pela qual o Si se une à carne do mundo, ao fluxo dos amores e dos fenômenos” (Kristeva, 2007, p. 276; 2002, p. 332).
Santa Teresa: mistérios do gosto
Tecer a genealogia do Barroco Floral implica o risco de perceber algumas vidas-obras que parecem distanciar-se da trilogia do gênio feminino. Ao longo das vidas-obras de Arendt, Klein e Colette, esbarramos em diferentes manifestações através dos ecos da Virgem Maria, e o seu discurso sobre a maternidade, e o da medusa, com a Estética da Encarnação. Elas não recebem estudos dedicados as suas trajetórias de vida e pensamento, até porque escapam da carnalidade e da mortalidade das mulheres da trilogia, mas são indispensáveis para a compreensão de que há outras vidas repletas de acontecimentos e ressonâncias fulgurantes que contribuem para o aprofundamento de uma investigação, sendo tão notáveis e singulares quanto as escolhas realizadas para esta trilogia. Alguns anos após a publicação do gênio feminino, Kristeva lança a obra Thérèse mon amor (2008). Antes de Teresa, que poderia compor formalmente com o trio escolhido por Kristeva, sugiro um caminho conceitual seguindo as formulações da experiência- revolta e especialmente da revolta íntima, que irão desembocar nas contribuições teresianas, inclusive referidas por Kristeva no volume sobre Colette. Assim como Teresa aparece no volume da vida-obra de Colette, nesse estudo monumental dedicado à santa Teresa, as florações, por meio da imagem de um jardim que se deixa regar (a ler em jardim fantasmas do meu próprio nome!), vegetalização da escrita colettiana, também contribuem para a compreensão das metáforas transformadas em metamorfoses através das mãos dessa escritora religiosa:
Sem abandonar esta postura feminina – “Fêmea eu era e fêmea me encontro ainda no sofrimento e no gozo”, reivindicara mais tarde Colette –, a carmelita a metamorfose em uma outra posição para a qual sempre encontrará justificativas nas Escrituras: como um jardim se deixa regar, Teresa se deixará amar abandonando-se às águas misturadas do prazer, da sublimação e de uma espécie de autoanálise que ela descobre na medida em que escreve (KRISTEVA, 2008, p. 22).
A questão da revolta no pensamento se desenvolve em dois volumes. A revolta íntima, de 1997, que estabelece o grande encontro com a escrita de Teresa, resulta de aulas ministradas em curso sobre a sugestão conceitual da experiência-revolta. Na primeira parte do curso, dedicada à apresentação da “experiência-revolta”, temos acesso ao caminho de sua teoria da linguagem, que acompanha os modelos de linguagem segundo o pensamento freudiano. Nesse primeiro momento do curso, Kristeva retoma as modalidades linguísticas do semiótico e do simbólico, já desenvolvidas em sua tese A revolução da linguagem poética, de 1974, além de chamar a atenção para a etimologia da palavra revolta, segundo a pesquisa de Alan Rey, Révolution, histoire d’un mot (1989), que, em linhas amplas, observa no termo revolta um retorno, a se manifestar tanto a partir da categoria espaço quanto da categoria tempo. Com base no estudo de Alan Rey, Kristeva localiza nas heranças italiana e francesas dos séculos XV e XVI a forma “volute” – cujo empréstimo da área da Arquitetura incita-nos a pensar não apenas sobre um retorno espacial por meio da imagem desse arco, ou abóbadas, essas voltas –, mas também uma volta que direciona à categoria tempo. Ao situar a complexidade da experiência-revolta, Kristeva faz uma apresentação dos três modelos freudianos da linguagem, em Sentido e Contrassenso da revolta (1996/2000), no qual o primeiro deles, a partir de um Freud imerso em questões neurológicas em “Sobre a concepção das afasias” (1881) e “O nascimento da psicanálise” (1895), já pontua a impossibilidade de um dizer completo da sexualidade. O segundo modelo será chamado por Kristeva de modelo otimista da linguagem, com enfoque em A interpretação dos sonhos (1900), no qual é discutida por ela a importância dada à narrativa dos pacientes, ancorada especialmente no método da associação livre, que trará modificações substanciais para o que a psicanalista chama de “concepção clássica da linguagem”, uma vez que a entrada da fantasia dá vazão aos desejos e pulsões, desconsiderados pelos modelos tradicionais de teorias da linguagem (Kristeva, 2017, p. 60). O terceiro modelo tem início com a publicação de Totem e tabu (1912), “Para introduzir o narcisismo” (1914), “Luto e melancolia” (1917), “Além do princípio do prazer” (1920) e “Moisés e o monoteísmo” (1939). Chamado por Kristeva de “modelo da virada do pensamento”, por aqui a pulsão de morte, além de acontecimentos catastróficos e questão da função paterna são cruciais, o que leva a pensar sobre a ausência ou, como refere, “subestimação” e também a “tenacidade da vocação materna”, que é esquecida na teoria freudiana (Kristeva, 2017, p. 60). Esse modelo, importante realçar, inicia, com Totem e tabu, com uma história arcaica de devoração, sobre a qual Kristeva nos dará uma síntese tão crua quanto iluminadora, sobretudo para os desdobramentos e ecos da Antropofagia na América Latina. A teórica reflete sobre um acontecimento inesquecível em Totem e tabu:
Não foi um fantasma de assassinato ou de devoração do pai que os irmãos tiveram, sustenta Freud contra seus amigos e discípulos prudentes, que o tentavam convencer a abandonar essa hipótese; eles realmente mataram e comeram (Kristeva, 1996, p. 91; 2000, p 101).
É possível que essa lacuna da função materna encontre na experiência da revolta íntima a sua vazão. A segunda parte do curso, mais complexa que a anterior, e ainda não traduzida para o português, desenvolve o conceito de uma experiência do íntimo. E está nessa proposta teórica o encontro que pretendo estabelecer entre as artes visuais, as expressões poéticas e o que reconheço sob o nome de Barroco Floral. Por meio da designação da categoria do íntimo, encontramos o que a teórica observa como o “mais interior” (Kristeva, 1997, p. 69), o que gera questionamentos sobre a sua localização no espaço e de sua relação com o tempo. Somos levados a fazer as seguintes perguntas: Onde encontro esse espaço interior? Seria possível defini-lo ou esboçá-lo? Qual é sua duração? Se não há respostas definitivas, também não há desistência de possíveis arranjos que acompanham uma vida de leituras e experiências filosóficas, estéticas e de orientação criativa, que é partilhada, em diferentes composições, pela teórica-crítica-escritora.
Um caminho interessante de aproximação com a revolta do íntimo pode ser encontrado quando Kristeva indica estar no sentido do gosto o mais íntimo e que ela irá localizar nos textos de Roland Barthes. O teórico, que é citado por Kristeva em A revolta íntima (1997) como um construtor da linguagem, recebe esse título porque trabalha para construir a experiência sensível, principalmente por meio de reflexões em torno de Santo Inácio de Loyola (refiro-me ao volume Sade, Fourier e Loyola). Com base nesse texto, Kristeva lança uma pergunta instigante: “uma vez que experiência mística de Santo Inácio de Loyola revela uma pré-linguagem sensorial ferindo a descontinuidade da língua usual, como essa pré-linguagem se constrói em código?” (Kristeva, 1997, p. 150). Ela não deixa de mencionar que os “Exercícios espirituais”, de autoria do jesuíta, obra analisada por Barthes na sua dimensão de um corpo sensível, constitui um texto que deixa vir à tona conexões da experiência interior, ou do que chama de revolta íntima, com o corpo. Na minha leitura, sustento que essa referência serve de inspiração para que Kristeva teça considerações acerca da relação entre experiência sensível, experiência do íntimo e abertura para infrassignificados (a modalidade linguística do semiótico).
Gostaria de voltar ao ensaio de Barthes para chamar a atenção sobre o que ele observa como “modificação do exercício da imaginação” (Barthes, 2005, p. 68) a partir do “remanejamento da hierarquia dos cinco sentidos”. Retomando a história da Idade Média, Barthes observa que o sentido perceptivo mais valorizado nesse período era o da audição, de modo a favorecer certa importância dada à palavra da igreja, e considero, a partir desse deslocamento, que também estava em jogo a obediência religiosa. Curiosamente, o sentido da visão ocupava a terceira posição, ficando atrás do tato. No entanto, há uma mudança notável, e o olho toma a posição outrora privilegiada dada ao ouvido. Em observação entre parênteses, o teórico acrescenta o que é de acentuada relevância nos estudos sobre o barroco a partir dessa inversão entre ouvido e o olho: “(disso daria testemunho o barroco, que é a arte da coisa vista.)” (Barthes, 2005, p. 68).
A seu modo, Kristeva refaz o caminho de Barthes a partir do conceito de revolta íntima por meio de dois movimentos. O primeiro movimento da revolta íntima se manifesta quando Kristeva busca intensificação dos infrassignificados, inspirada pelo retorno aos místicos. Kristeva elege Santa Teresa d’Ávila para intensificar a experiência sensível. Ela passa cerca de dez anos envolvida em pesquisas sobre a vida-obra de Santa Teresa e constrói um calhamaço no qual um romance da investigação de uma vida-obra, de tom metafísico, se mistura aos gêneros ensaio, cartas, formando um gênero híbrido. O que me interessa especialmente nesse estudo é tanto um retorno ao barroco a partir da eleição de uma mulher pensadora quanto um cuidadoso voltar-se ao sentido do gosto, que já estava nas pesquisas de Barthes, mas que não se intensificam em suas investigações sobre o barroco. Chegamos ao barroco via Santa Teresa. Antes de apresentar o segundo movimento de conexão com a revolta íntima, na próxima sessão, considero importante referir que o sentido do gosto se manifesta em várias passagens dessa obra. Vou mencionar algumas referências, pois esse sentido retornará em breve na inserção do aspecto floral que atribuo ao barroco. E isso contribui para repensarmos a experiência interior ou a “revolta íntima”, senão a partir de um deslocamento entre o olho e a boca, pelo menos de uma abertura ao sentido do gosto na experiência da revolta íntima, que se manifesta na experiência das visões dos místicos.
No livro sobre santa Teresa, Kristeva descreve o corpo da santa como um corpo paradoxal, formado por pares copresentes como “dentro e fora”, “carne e verbo”, “desejo e Nada”, dando a pensar a experiência do íntimo por meio do que ela chama de “lugar sem lugar” – o que se aproxima de uma visão que é descrita, à luz da própria escrita de Teresa, como uma experiência sem os “olhos do corpo” (Kristeva, 2008, p. 91). No capítulo 38 de sua autobiografia, O livro da vida, que atingiu expressiva popularidade na Espanha, Teresa estabelece diferença entre os olhos do corpo e os olhos da alma. A categoria do íntimo estaria ao lado do caráter intuitivo dos olhos da alma, de acordo com a distinção da carmelita, assemelhando-se à proposta que também se deixa a ler nas Confissões, de santo Agostinho5. A considerar que, em Teresa, esse olhar interior se manifesta por meio de uma oralidade: “Nem creio que seja eu quem fala desde que, esta manhã, comunguei. Parece que sonho o que vejo e quereria ver apenas enfermos deste mal em que estou eu agora” (d’Ávila, 2010, p. 150).
Essa experiência que ambiciona entrar em contato com o corpo de Cristo se revela uma experiência que, em seguida, na sua argumentação, precisa passar pela Eucaristia (que, sabemos, implica comer e beber o divino), e opera o que Kristeva chama de metamorfose, que transforma a santa no divino. Kristeva sustenta que é por meio da atividade da escrita6 que Teresa “saboreia todos os gostos divinos” (Kristeva, 2008, p. 93). Há, portanto, uma conexão entre o sentido do gosto e estados que podem ser chamados de uma revolta, de um retorno ao íntimo.
Em Teresa, o íntimo passará por uma longa inspeção sobre a experiência mística, que, na dedicada pesquisa de Kristeva, encontrará pela atividade escrita diversas manifestações. Para preparar esse terreno repleto de referências, Kristeva volta às Quartas Moradas, do Castelo Interior, para retomar a diferença estabelecida pela religiosa entre imaginação e entendimento, a realçar que na subida das Moradas “o importante não é pensar muito, mas amar muito” (IV M, 1:8). Reproduzo do volume das Obras Completas de Teresa fragmentos das Quartas Moradas que foram citados por Kristeva (Kristeva, 2008, p. 34-35), mas opto por fazer recortes que não seguem à risca a mesma edição da teórica:
Eu tenho andado assim, nessa confusão do pensamento, bem aflita algumas vezes. Há pouco mais de quatro anos vem a entender, por experiência, que o pensamento (ou imaginação, para que melhor se compreenda) não é a mesma coisa que o intelecto. Perguntei-o a um erudito, que me confirmou essa verdade, o que não foi para mim motivo de pouco contentamento. […] Enquanto escrevo, examino o que se passa em minha cabeça, considerando o grande ruído que há nela, como eu disse no princípio. Esse zumbido quase me tornou impossível escrever isto que mandaram. Tenho a impressão de ter na cabeça rios caudalosos, cujas águas se precipitam (D’Ávila, IV M, 1:8)
Kristeva vasculha nos diferentes textos de santa Teresa o uso da metáfora-metamorfose da água, que compõe o estilo de escrita da carmelita, a ser chamado pela teórica de “sua maneira de pensar” (Kristeva, 2008, p. 16). Nessa ficção da água, acontece um “transvasamento” [transvasement] entre o ser outro indizível íntimo, entre o meio exterior e o ‘órgão’ de um interior sem órgão, entre o céu do Verbo e o vazio de um corpo feminino ávido” (Kristeva, 2008, p. 118). Para nos apresentar a experiência mística da escrita de Teresa, Kristeva investiga os movimentos do misticismo que atravessam os séculos. De Pseudo Dionísio Aeropagita, passando pelo neoplatonismo de Plotino, por Aristóteles, pelos textos bíblicos apocalípticos, livros de Enoch e de Esdras, pelo Mishna, pela Torá, pelo Talmude (Kristeva, 2008, p. 50-51) até chegar, por exemplo, no século XI, na poesia mística como gênero em ascensão, com os poetas Ibn al-Farid e Jalal al-Din Rumi, este fundador da influente confraria dos dervixes rodopiantes (Kristeva, 2008, p. 55-56), a trajetória do misticismo é longa. Teresa, inserida no cristianismo, que, por sua vez, acompanha essa tradição mística, não ficará distante dessa herança, como se evidencia em seu trabalho de linguagem, considerando as tensões entre o Ser e simultaneamente a sua impossibilidade, além da questão do vazio (Kristeva, 2008, p. 57). Kristeva retoma, no século XII a mudança do corpus mysticum, que passa a designar a igreja, mas anteriormente estava relacionado à eucaristia, para o corpus verum. Perde-se do mysticum o “escondido”, ou misterioso, que caracterizava a eucaristia, o que proporciona caráter social ao corpo de Cristo outrora escondido. Perde-se assim com a transubstanciação a aura de mistério ao mesmo tempo em que a eucaristia se torna uma experiência a ser universalizada pelos frequentadores da cerimônia na igreja. E o corpus verum, por sua vez, recebe o vínculo social com o corpo e o sangue de Cristo (Kristeva, 2008, p. 59). A existência de Teresa insere-se no corpus verum. Há que se perceber, no momento da elevação da hóstia, o que Kristeva reconhecerá como fabricação de paradoxo de um corpo íntimo transparente. No entanto, não passam desapercebidos por Kristeva apontamentos em torno dos possíveis mistérios advindos de expressivo vínculo com o sentido do gosto e seus possíveis desdobramentos em direção à experiência interior, escondida, dos mistérios. Kristeva nos oferece uma definição do que chama de místico: “uma experiência psicossomática que revela os segredos eróticos dessa fé em uma fala que ela constrói, ou que ela recusa em silêncio” (Kristeva, 2008, p. 50). No caso da experiência mística de Teresa, a união íntima se manifesta com a “humanidade de Cristo” (Kristeva, 2008, p. 50).
Kristeva enumera algumas características da devoração do divino que parecem extrapolar o ritual da eucaristia que a santa descreverá no Livro da vida como um encontro erótico e amoroso, que a narradora dessa história chamará de uma “escandalosa apropriação do divino”, de “fantasma megalomaníaco”, de “polimorfismo”, de um “morrer para não morrer Nele” (Kristeva, 2008, p. 81). Todo esse elenco pode até gerar dúvidas quanto à inserção no mundo do catolicismo, como a própria pesquisadora chega a desconfiar, mas Kristeva atesta que se trata de um universo barroco. Segundo Kristeva, Teresa d’Ávila antecipa a arte barroca por meio de sua escrita, chegando a inventá-la, de forma a antecipar a escultura de Bernini e os caprichos de Tiepolo (Kristeva, 2008, p. 262). Sem definir o barroco, podemos depreender que o estilo passa pelos excessos da experiência sensível teresiana, com suas experiências gustativas, a começar pela hóstia, mas também a considerar que a santa sofria de distúrbios alimentares que antecipam esse começo para antes mesmo da oração, descritos pela própria santa como privação dos desejos elementares, e a ausência de alimento vinha em primeiro plano de corte, já que essa falta e a “suspensão de todas as sensações” eram necessárias para merecê-Lo (Kristeva, 2008, p. 103).
A narradora de Thérèse mon amour (2008), a psicanalista Sylvia Leclercq, nos acompanha para tentar nos situar na experiência singular da santa. E assim, Teresa é aproximada dos estados arcaicos que estão na formulação do psique-soma, segundo as pesquisas de Winnicott, nos quais se remonta a estados arcaicos, a incluir o embrião, e os momentos osmóticos entre a mãe e o bebê (Kristeva, 2008, p. 99). Kristeva busca em Teresa aproximações com o infralinguístico que ela observa nessa perda de “contornos” de identidade, o que parece estar de acordo com o estilo aquoso desenvolvido na escrita teresiana. Nesse sentido, entrar em contato com essa escrita e as visões descritas pela santa não significa ficar preso ao sentido visual e ao protagonismo da faculdade da “imaginação” – e Kristeva faz questão de distinguir as sensações de Teresa das imagens que poderiam ser levadas ao que chama de “sentido escópico do termo” (Kristeva, 2008, p. 110). Por isso, ela não confere exclusividade ao que pode ser visto nessa experiência mística, uma vez que seu início depende antes do tato, do gosto e da escuta para posteriormente chegar à visão. Kristeva defende que a experiência de Teresa habita o corpo inteiro da religiosa-escritora. Antes da visão, em outro momento desse ensaio-romance, é dito que a escrita-água de Teresa passa pelas percepções da “boca” e da “pele”, sendo “essencialmente gustativa e tátil”: “Ela revela também que o corpo do orador é um corpo-orifício e um corpo-pele que opera na proximidade e entra continuamente em vibração com tudo o que a afeta” (Kristeva, 2008, p. 129). Nessa perspectiva, o elemento fogo, em contraste com a água, encontra na experiência da paixão amorosa de uma escrita a tocar o indizível, experiência de ser tocada pelo outro, no caso, esse grande Outro, seguindo um fragmento de Caminhos da perfeição: “Tocada pelo Outro, eu me diluo Nele, que se dilui e depois se condensa em mim” (d’Ávila apud Kristeva, 2008, p. 123).
Kristeva fortalecerá a importância do sentido do tato para Aristóteles, ao buscá-lo no De Anima e na Metafísica como o mais universal dos sentidos (Kristeva, 2008, p. 122). Por não ter um órgão específico, não podendo ser reduzido à pele, ou à boca, ou à mão ou mesmo à carne, segundo a leitura da teórica, o tato ganha status de ser o sentido fundamental (Kristeva, 2008, p. 130).
Há uma longa exposição sobre a relação gustativa de Teresa com a hóstia que “ameniza as turbulências da carmelita”, e por isso a santa opta pelas hóstias de tamanho grande – segundo Kristeva, “para melhor enganar a sua avidez”: “Ela tem prazer de abrir os lábios, de sentir a fatia de farinha branca se dissolver sobre sua língua sem preencher a cúpula do palato” (Kristeva, 2008, p. 218). Kristeva reconhece na hóstia uma impossibilidade de substituição do mamilo materno e do feminino – mesmo assim a teórica se vale dessa comparação com mamãe. Está na hóstia um “gosto de ausência”, a “presença de nada”, onde ela irá procurar o que Kristeva chama de “certeza gustativa”, lida como a certeza “mais íntima”, “a mais singular” Sobre esse inacessível mundo interior para o qual Teresa é transportada, temos uma descrição que, se não nos leva ao mais íntimo de nossa própria história, ao menos não expõe a uma trajetória do íntimo que nos antecipa: “Um mundo distante no qual se é livre para viajar. Um mundo espiritual e eterno que é também um corpo de homem crucificado e ressuscitado, no qual se transita por intermédio de um pãozinho, de uma casca, uma matéria capaz de se desmaterializar em contato com a sua língua” (Kristeva, 2008, p. 218).
A condição estrangeira, um dos itens do nosso Barroco Floral, em Teresa se manifesta nesse mundo estrangeiro que ela engole com avidez. O estrangeiro a habita para preenchê-la (Kristeva, 2008, p. 219). E o estrangeiro também atravessa sua narradora, a exemplo da própria Kristeva, que precisou se deslocar para as dificuldades do castelhano, que sua narradora revela ler com dificuldade (Kristeva, 2008, p. 79). A experiência da maternidade se manifesta por meio da construção das Moradas, suas Obras (Kristeva, 2008, p. 387), acompanhando uma das definições da maternidade, a saber, a da visibilidade. Através da hóstia, Teresa fica livre da influência materna (Kristeva, 2008, p. 220). Kristeva insiste na invisibilidade da experiência da eucaristia, que produz uma “impressão”, escultura, a nos dizer do sentido do gosto, especificamente do processo de digestão, que ela retomará do Livro da vida, de Teresa: “como um alimento se encontraria em nosso estômago sem que o tivéssemos absorvido, sem que soubéssemos como ele entra em nós (Vida, 27: 5-10)” (apud Kristeva, 2008, p. 291). Alguns afetos são mencionados ao lado do sentido do gosto, por exemplo em Caminhos, onde se observa o sintagma “Gustação de felicidade” (31: 10), o que se desdobra em “compreensão nenhuma” (36: 9), levando a fazer a mudança do que antes estava sob a atmosfera da “amargura” para a “alegria” (Kristeva, 2008, p. 380-381).
Ao remontar aspectos da nossa história de separações, incluindo o próprio nascimento, o luto e as frustações ao longo da vida, Kristeva inclui a paixão de Cristo como marca histórica, fazendo com que entremos em contato com aspectos a nossa vida interior. Cabe, como a teórica indica, às ciências sociais, especialmente à psicanálise, aprofundar o que se resume sob o termo “variantes do sofrimento” (Kristeva, 2008, p. 472). A kenose, tão ligada à ausência de gosto da hóstia, participa diretamente dessa transformação afetiva desencadeada por intermédio do sofrimento desse “Homem-Deus”. A kenose atua no sentido de produzir um “desapaixonamento”, uma vez que ativa a deserotização desse sofrimento, e assim, no encontro com esse vazio da kenose, somos levados a um “recomeço”. Qual recomeço? Kristeva nos dirá que “o cristianismo toca nos limites da religioso” para ultrapassá-lo até chegar ao sagrado, onde os temas do vazio, do Nada, do inútil e do impensado ficam em alta (Kristeva, 2008, p. 472). Acredito que modernamente o recomeço associa-se à nossa vida psíquica, abrindo-se a experiências criativas da linguagem verbal e não verbal: a beleza da vida interior.
Desloco-me para o segundo movimento da revolta íntima, este que nos faz chegar perto da revolta íntima, através de uma pergunta.
Florações O‘keeffianas
“Eu aguento porque sou forte: comi minha própria placenta” (Água viva, de Clarice Lispector).
Por que a flor, ou por que ainda a flor? E a tentativa por aqui será a de retomar um caminho proposto por aspectos do conjunto da obra de Julia Kristeva que sugerem uma possível conexão da metamorfose instigada pela flor na experiência da arte e do pensamento. Deve-se a essa pensadora polivalente algumas releituras dos quadros de Georgia O’Keeffe, que podem ser encontradas no romance policial filosófico chamado Possessões (1996), no volume de cartas trocadas com a antropóloga Cathérine Clement e no ensaio “A forma inevitável”, do livro O ódio e o perdão (2005). Pensar no porquê da flor consiste em voltar, (re)voltar, esse gesto bailarino, a uma outra que, assim como Teresa, a Virgem Maria e a própria Medusa, não participa da vitrine genealógica do trio do gênio feminino, mas se torna indispensável para as eclosões do barroco floral.
Em Possessões, que é um polar, romance policial filosófico, publicado no ano de 1996 (traduzido para o português em 2003), Kristeva nos apresenta uma protagonista morta. Glória Harrison surge degolada – é assim que a narradora abre esse romance: com uma mulher morta. O cadáver da personagem, descrito em detalhes e percepção de cores, sugere uma cena de pintura. Georgia O’Keeffe aparece mais adiante, timidamente entre outros pintores, mas não para se unir a grupos de feministas. Ela ilustra exclusivamente o prazer das aventuras erótico-amorosas da detetive Stéphanie Delacour, que procura desvendar o mistério que ronda o assassinato da tradutora da cidade fictícia de Santa Barbara, Gloria Harrison, cuja cabeça fora decapitada e retirada da cena do crime. O horror de uma escrita-pintada parece estar na ausência da cabeça:
Nada mais pesado que um corpo morto. E o peso do cadáver aumenta mais ainda se acontece de faltar a cabeça. Um rosto, mesmo plácido, lívido ou deformado pela morte, dá sentido ao corpo, e por conseguinte o torna leve. Os olhos, mesmo apagados, arregalados ou exoftálmicos, a boca, mesmo retorcida, sangrenta ou tumefacta, os cabelos, mesmo arrancados, colados ao crânio ou em desordem, todos são vetores necessários de uma expressão que suspeitamos ser a da morte. Mas sem olhos nem boca, sem cabeça nem cabelos, um cadáver não é mais que uma peça de açougue. (….) Amputado da funesta exuberância exibida pela máscara dos falecidos, o morto é duas vezes morto. Não que a vítima seja privada de sua humanidade, ou mesmo de sua personalidade: ao contrário, estas persistem, minuciosamente esculpidas no torso decapitado, nos membros curvados, no abandono da postura; mas a loucura, que é o selo do humano e é traída pelo rosto, permanece – se falta esse indício capital – literalmente invisível7 (Kristeva, 2003, p. 11-12).
A referência às pinturas de O’Keeffe acompanha um comentário sobre a vida afetiva da detetive responsável pela investigação do crime. A obra de O’Keeffe, como mostra a crítica destinada a essa pintora, apresenta diversas leituras ligadas ao feminismo. O’Keeffe pode estar numa genealogia de pintoras que a História da arte tem buscado para reparar os apagamentos, e Artemísia Gentileschi, em outro momento importante do polar, pode ser aproximada dessa colega distante no tempo, mas na passagem a seguir a pintora das imensas flores surge aproximada da exuberância vegetal das composições do gênero das gavinhas da vinha, segundo encontramos na formulação da escritora Sidonie Colette:
Não, o sexo jamais fora estupro para Stéphanie, não importa o que pudessem pretender suas amigas feministas em nome da humanidade, ou antes, em nome da feminilidade; fora mesmo nisso que tivera de se separar delas. Estupro, nunca. (…) Flores oferecidas ao céu sob o pincel de Georgia O’Keeffe. Fragrâncias tornadas táteis nas páginas de Colette. Stéphanie sabia reconhecer nas obras dos outros aquele prazer sem nome que os homens lhe davam. E que ela gostava de preservar, velado, insular8 (Kristeva, 2003, p. 131).
Não me parece fortuito que Kristeva tenha se dedicado a uma publicação que retorna ao mesmo tema quando escreve Visões capitais (1998), reunião de ensaios sobre suas visitas ao Louvre. Kristeva elege como tema de suas análises imagens de decapitações, que podem ser encontradas nos trabalhos de Caravaggio, de Picasso, de Cézanne, de Paul Klee, de Artaud e também de Andy Warhol, além de outros artistas visuais. Percebemos que dois anos depois do romance policial que versa sobre uma cabeça perdida, Kristeva publica, em 1998, esse volume sobre notáveis degolações9 pictóricas, que irá problematizar, para além de aspectos históricos das guilhotinas de seu país de escolha, o fantasma da castração, segundo a teoria freudiana.
Chegamos ao segundo movimento da revolta íntima por meio das artes visuais e do fantasma da castração. No estudo dedicado a Teresa d’Ávila, o tema das visões dialoga com a inspeção do que está no horizonte do sentido visual. No entanto, a experiência de Teresa não se restringe aos olhos do corpo. No ver com a alma, algo do gosto, incluindo olfato e tato, contribui para dar corpo às sensações que a maioria das pessoas não consegue acessar. No volume sobre Melanie Klein, o resumo dos fantasmas freudianos é apresentado para mostrar a diferença do conceito de fantasia para Klein, que, conforme apresentei na secção sobre essa vida-obra, revela-se como um conjunto heteróclito, contendo representações verbais e não- verbais. O que me interessava naquele momento e permanece como objeto de estudo na atualidade, repetindo-se na busca da vida-obra de Teresa, está na mobilização dessas mulheres, incluindo a de Kristeva e também a minha, de vasculhar o íntimo até alcançar uma experiência sensível arcaica que não pode ser reduzida à herança do primado visual. Nesse sentido, as discípulas de Klein, como apresentei na secção sobre a psicanalista, confirmam essa busca, de modo a reafirmar uma inclinação pela pesquisa do sentido do gosto. Nessa perspectiva, o retorno aos fantasmas originários, a saber, a cena primitiva, a castração e a sedução, no livro sobre Teresa, despertam o interesse de Kristeva para referir, com base em Freud, uma ‘“verdade pré-histórica’ que remonta aos ‘tempos originários da família humana” (Kristeva, 2008, p. 454). No estudo voltado a Teresa d’Ávila, a referência ao fantasma originário privilegia a cena primitiva, porque ela envolve a nossa individuação, os afetos e o jogo das escolhas sexuais, o que guarda uma relação de semelhança com a história bíblica, fazendo com que a vida de Teresa, apesar de incomum, tenha um fundo do qual também fazemos parte. Em contrapartida, fascina-me em Teresa as suas visões incomuns, descritas desde atravessamentos, a tocar as cavidades do seu aparelho digestivo, eclodindo na boca e no movimento das mãos suas visões vertidas em palavras suculentas, repletas de desejo, de alegria – uma experiência que irá se repetir nas flores colettianas, no entanto sem a devoção religiosa a um grande Outro, mas ainda assim com intensidade cuja herança está no fantasma da cena primitiva. Recorto um comentário de Kristeva sobre uma cena que poderia ser ilustrada com uma tela de O’Keeffe.
Habitualmente vermelha, rosa ou amarelo-chá, a rosa aqui chega até o negro. A este contraste que a extrai do mundo das flores e a transporta (primeiro efeito de metáfora) ao da cultura (do artifício) ou da melancolia (como o sol acompanhado do mesmo epíteto), acrescenta-se um segundo movimento metafórico, introduzido segundo a lógica das inversões e dos deslocamentos sensoriais. O olhar come a rosa, a vista se tornou um gosto, eu saboreio a flor como um confeito. Enfim, um terceiro deslocamento conduzirá do palato e da língua até o nariz: é a vez dos perfumes serem confeitos, a rosa cozinha seu odor: “vocês rosas negras, confeito de odor”’ (Kristeva, 2007, p. 115; 2002, p. 136, grifos meus).
Suponho que essa descrição poética poderia estar acompanhada da pintura intitulada Black Hollyhock, Blue Larkspur, de O’Keeffe. Trata-se de uma experiência gustativa que se deixa acentuar nas diferentes leituras de Kristeva.
A não esquecer que, em A revolta íntima (1997), Kristeva supõe no imaginário10 o nosso acesso que seria mais imediato, além de ser o mais arriscado, ao íntimo. Nesse sentido, a teórica apresenta aspectos etimológicos do termo fantasma que dizem respeito à noção de luz, ao aparecer, ao brilhar, se representar. Assim, algo de visual parece se sobressair nessa proposta, que é anterior tanto ao volume de Klein quanto à obra sobre Teresa. Ao resgatar a tipologia dos fantasmas segundo a teoria freudiana, ela menciona os fantasmas originários ou hereditários, que seriam os mais profundos e arcaicos da tipologia, pois estão associados a outros tempos, gerações com as quais não tivemos contato. Para acessá-los, de acordo com a leitura da teórica, precisamos nos deslocar para a arte e para a literatura, porque essas áreas seriam o que ela observa como os lugares de predileção dos fantasmas originários, uma vez que contribuem para as suas “formulações” (Kristeva, 1997, 101-105). Observa-se que a teórica parece estar se referindo sobretudo ao fantasma da castração, aquele diretamente relacionado à diferença sexual e em relação com os movimentos de tumescência e de detumescência do pênis-falo, a pontuar o par visível/invisível, o que nos leva à primazia do sentido visual. No entanto, na sequência da exposição dos fantasmas originários, que, em A revolta íntima (1997), não são tão desenvolvidos quanto no volume sobre Melanie Klein, há uma abertura interessante a nos conduzir para o sentido gustativo. Nos exemplos, a teórica aproxima Freud de Proust, que estão envolvidos na transubstanciação, cuja origem advém da eucaristia, sendo sintetizada poética e proustianamente por ela como “tocar a carne com as vibrações do desejo11” (apud Kristeva, 1997, p. 103). Outra manifestação artística na formulação de fantasmas originários, exemplo retirado das artes visuais, está na pintura de Goya, que transmutou as suas adversidades em gesto de pintura e toca na reformulação dos meus próprios fantasmas soterrados: “Goya e seus caprichos inspirados pela violência que sofreu a Espanha durante as guerras pós-revolucionárias, mas também pela depressão do pintor, sua perda de identidade sob a marca da morte” (Kristeva, 1997, p. 106).
Em Visões capitais (1998), estudo dedicado às decapitações pictóricas sediadas no Louvre, se consolida o vínculo entre o fantasma originário da castração e a pintura. O Barroco Floral interessa-se especialmente pela aproximação entre pintura e literatura, ou, de forma mais ampla, pelas artes visuais (sobretudo a pintura e a fotografia) e experiências escritas de trabalho poético voltado para estéticas de ruptura, o que privilegia a escolha e o estudo de autores inseridos nos séculos XX e XXI. O Barroco Floral compõe-se a partir do campo de gosto de escritoras, escritores, poetas, artistas da palavra verbal, fascinados pelos efeitos da arte visual sobre seus corpos, que, sob o impacto das forças advindas desse encontro, transformam, em gesto de transubstanciação, essas chamadas “vibrações da carne”, ao estilo proustiano, em palavra escrita. É necessário portanto entrar em contato com as referências visuais sugeridas, referidas e ressignificadas pelo autor de nossa escolha para que se crie um desenho de crítica literária a ser composto por diversas vidas-obras cujos cruzamentos deverão considerar inicialmente as imagens artísticas do campo de gosto do escritor/a escolhido.
Volto, em gesto de (re)volta à pintora Georgia O’Keeffe, porque, embora ela não pertença ao elenco de pintores das Visões capitais (1998), está na formação, ou em outras palavras, na eclosão plástica do que chamo de barroco floral, acompanhando as vidas-obras que servirão de base para a investigação temática a partir das vidas-obras em torno da trilogia do gênio feminino de Kristeva, a saber, a condição estrangeira; a relação entre linguagem poética e o nascimento das imagens no cruzamento com possíveis discursos sobre a maternidade; a animalidade escrita; o cruzamento dos afetos nas florações; as composições escritas que desabrocham na contracorrente da herança filosófica do imperativo visual. Para além de uma escolha, de um capricho a circular nas escolhas de Kristeva ou mesmo nas minhas escolhas, O’Keeffe ocupa um espaço notável nessa genealogia12, participando das transformações artísticas de seu tempo, inscrevendo-se singularmente na história da pintura, nas intersecções de um tempo invadido pelo incremento da técnica e do embate com as forças da natureza que amiúde atravessam os corpos dos pintores de diferentes épocas. É preciso acrescentar a esses temas a questão da técnica, uma vez que a pintura, assim como a escrita, necessita de algum suporte para vir à luz. Desde a minha tese de doutorado13, tenho me interessado pelas tensões entre a técnica e o corpo. Por essa ótica, considero que o par técnica e corpo, sobretudo depois dos estudos da desconstrução que recuperam as pesquisas de Leroi-Gourhan (cf. Da gramatologia), para citar um exemplo da maquinalidade que atravessa a nossa carne, não podem ser meramente contrapostos, mas antes devem se manter abertos para fecundas discussões, a considerar a manutenção das “forças da pintura”, expressão que tomo de empréstimo do pensamento de Deleuze, do volume Francis Bacon: a lógica da sensação (Kristeva, 2007, p. 64-69).
A eleger inicialmente dessa complexa lista temática aquilo que nasce do gesto de pintar O’Keeffiano e que, em Kristeva, aparece no ensaio “Le forme inévitable”, do volume O ódio e o perdão (2005), nota-se que a pintora pode ser facilmente aproximada da atividade da escrita. Kristeva reconhece uma conexão “floral” e também da ordem “sideral” e “coloridas” (Kristeva, 2005, p. 485) entre O’Keeffe e a poeta intimista Emily Dickinson, além de perceber possibilidade de aproximação com “L’huître” ou “Le savon”, de Frangis Ponge, com a forma de pintar de O’Keeffe. A relação da pintora com os poetas parece se pautar nas “intensidades cromáticas” (Kristeva, 2005, p. 486), que Kristeva analisará como objeto desse ensaio cujo título reenvia à forma. A teórica buscará nas cartas da pintora para o seu companheiro, o fotógrafo Alfred Stieglitz, elementos que são chamados de “sensações” e de “respirações”, que evidenciam o que será lido pela teórica como “desdém pelas palavras” (Kristeva, 2005, p. 485) – mas antes de ser lido como uma embate com as palavras escritas, seria oportuno buscar uma outra forma de entrar em contato com a escrita. O’Keeffe parece esboçar um outro modo de escrever, no qual a cor atravessa e modifica os signos. Possivelmente, a pintora toca elementos semiotizáveis no âmbito cromático, dando-nos em fragmento de carta recuperado por Kristeva uma declaração de amor à palavra pintada: “A cor é uma das grandes coisas desse mundo que faz com que a vida valha a pena ser vivida, e desde que eu comecei a pensar em pintura, me esforço a criar com os tubos de cor um equivalente para o mundo – a vida como eu a vejo” (O’Keeffe apud Kristeva, 2005, p. 494).
Nessa perspectiva do Barroco Floral, temos que considerar o par antitético natureza x técnica. Em virtude de esse par apresentar uma indispensável e robusta herança filosófica, cuja historicidade não cabe no limite desse estudo, será preciso optar por um caminho entre outros possíveis ao longo da ampliação dessa pesquisa. Para efeito desse estudo, cujo recorte está na pintura, será relevante considerar o contato dessa pintora com a natureza, reconhecendo que as forças da natureza atravessam e compõem indelevelmente suas pinturas, de modo a agir sobre os elementos técnicos que participam da atividade de qualquer pintor. Telas, panos, pinceis, tintas, pigmentos, gestos, suportes, para citar os aparatos mais divulgados na experiência da pintura, participam da técnica dessa atividade. Como observamos em algumas pesquisas dedicadas a sua vida-obra da pintora, entre as quais estão os trabalhos de Britta Benke (2003), Roxana Robinson (2020), Nancy Scott (2015) e Lisa Volpe (2021), o deserto se manifesta como uma marca O’keeffiana, inspirando efeitos pictóricos que eclodem dessas pinturas, especialmente aquelas que apresentam paisagens inspiradas pelos deslocamentos da pintora.
Para compor as paisagens desérticas, O’Keeffe trabalhará intensamente o uso da cor em suas telas. Esse vasto tema que percorre diferentes pensadores como Goethe, em A doutrina das cores; Kandinsky, em Do espiritual na arte e mesmo Wittgenstein, em Anotações sobre as cores, para citar alguns, percorrerá as nossas diferentes leituras ao longo de estudos em torno do Barroco Floral nesse encontro imagético com poetas e escritores e suas escolhas pictóricas. Das técnicas que participam da experiência da pintura, o uso da cor atravessa zonas que despertam, em seus diferentes receptores, tentativas de traduções poéticas, afetivas, as quais estão em sintonia com as diversas experiências sensíveis sobre as quais a proposta dessa genealogia tem inserido algumas manifestações. Partiremos de O’Keeffe para pensar sobre a cor, essa pintora preocupada com a forma e com a cor, que, segundo já destaquei de fragmento de carta, reconhece no elemento cor algo que “faz com que a vida valha a pena ser vivida” (O’Keeffe apud Kristeva, 2005, p. 494). Talvez, para O’Keeffe, tenhamos que pensar diferentemente a relação entre o par natureza/técnica, de modo a expandir a tensão dicotômica, assim como ela localiza a técnica da cor em sua pintura para além de sugestões ligadas à materialidade, inclusive provocando a sua aproximação com o despertar de afetos em seu espectadores, o que tece laços sólidos entre a materialidade intrínseca à pintura (nesse exemplo dos tubos de tintas) – incluindo o caráter utilitário que constitui o termo “técnica” – em tensão com a natureza ou algo na natureza cuja tendência se reveste de mistério, de velamento, a voltar, por exemplo, ao legado de Parmênides, que num de seus aforismos dizia que a natureza ama ocultar-se (Hadot, 2006, p. 37). Em O’Keeffe, desenha-se uma tendência para pintar o movimento que ela localiza na vida, pois algo que ela desejava, conforme lemos em sua troca epistolar, era esse contato com o que chamará, em carta de 1923, de “forma realmente viva”:
“[…] O resultado natural dos esforços de um indivíduo para criar essa coisa viva a partir daquilo que seu espírito, se aventurando no desconhecido, experimentou, sentiu – sem compreendê-lo –, e dessa experiência nasce o desejo de revelar esse desconhecido” (O’Keeffe apud Kristeva, 2005, p. 486).
Ao falar sobre a uso que faz da cor, O’Keeffe nos oferece uma pista de sua singularidade quando diz em carta pintar “a vida como eu a vejo” (O’Keeffe apud Kristeva, 2005, p. 494). Observa-se, no resgate da tradição do sentido visual, que as problematizações em torno do que pode ser visto quanto ao uso da cor remontam às reflexões aristotélicas. Didi-Huberman retorna aos livros Da Alma, II, 7, 418a e Do Sentido, III, 439a, de Aristóteles, especialmente na parte final de Da Alma, para reforçar a ideia de que não podemos confundir a cor com uma superfície (Didi-Huberman, 2012, p. 43). Nessa perspectiva, entra em cena o caminho para alcançarmos a noção aristotélica do diáfano, que é traduzida por Didi-Huberman como “meio do visível”, sendo, na leitura do filósofo grego, algo como “veículo da visibilidade, sua dinâmica” (apud Didi-Huberman, 2012, p. 40). Didi-Huberman, ao longo do seu ensaio intitulado a pintura encarnada, recolhe algumas sínteses da cor, de acordo com as suas leituras aristotélicas: “Ela não está depositada na superfície dos corpos; é um jogo lábil do limite, um folheado sutil; vacila de plano em plano no espaço, segundo o ar, segundo a água” (Didi-Huberman, 2012, p. 40). Em seguida, podemos associar a diafaneidade da cor ao seu estado de potência, a partir da distinção do par aristotélico ato e potência, tendo em vista a tatilidade que vem ao lado de um amplo conceito de corpo: “ela está no corpo, entre o diáfano (a passagem invisível) e a pele (a intensidade de uma carícia)” (Didi-Huberman, 2012, p. 43).
Nota-se que a pele, assim como a cor, também não pode ser reduzida à noção de superfície. No entanto, como meros admiradores de telas, temos a tendência a sustentar essas simplificações para tentar localizar cor e pele, dando-lhes limites espaciais através do nosso campo visual. Essa tendência demarcatória nos faz pensar sobre a experiência da pintura, que se compõe da semelhança corpo-pele e até mesmo do equívoco de reduzir esses conceitos a superfícies. Não é à toa que o título desse ensaio de Didi-Huberman apresenta expressivo vínculo com a carne (A pintura encarnada), também em relação de proximidade com a pele – encarnação. Percebe-se que também não é fortuita a retomada que ele faz de textos de Descartes (Tratado sobre o homem e Descrição do corpo humano). Neste último, Didi-Huberman reconstrói a superfície pele como uma “superfície de separação”, dividindo-a naquelas que se formam a partir dos corpos e aquelas que se formam por separação desses corpos. Sem nos fixarmos nessa tipologia, o interessante para essa análise, de início envolvida com o sentido visual, está nesse deslizamento, que, a exemplo da experiência das visões de Santa Teresa, se desloca dos olhos do corpo para experiências cuja eclosão irá atingir as cavidades invisíveis de seu corpo, a percorrer o sistema digestivo até chegar ao vínculo com o sentido da visão e por conseguinte a uma experiência mais ampla, qual seja, a das visões, na sua experiência interior. No retorno ao pensamento cartesiano, são referidas as peles que revestem as “superfícies do pulmão, do fígado, do baço, dos rins e todas as glândulas”, também são mencionadas as peles do “coração, do pericárdio e de todos os músculos” (Didi-Huberman, 2012, p. 44). Na investigação cartesiana recuperada por Didi-Huberman, não faltam buscas para dar conta do revestimento do ínfimo, a englobar veias, artérias, até chegar ao nome dado pelo próprio filósofo para essas coberturas, a saber, “pequenos filetes”, que, por suas subdivisões e fricções, sem movimentam pelos intervalos do corpo humano (2012, p. 44). Didi-Huberman, com base em Descartes, especialmente no ensaio “A descrição do corpo humano”, nos oferece uma definição para a pele, em comunhão com a própria definição do encarnado – conceitos importantes para entendermos a função da cor na pintura:
A se persistir nessa lógica, o encarnado seria então o colorido-filete de um entremeio da noção mesma da noção mesma de pele: entre limite-separação (a pele como interposição) e limite-indistinção (a pele como manifestação de seu colorido fibrilar), limite-superfície e limite-entrelaçamento (Didi-Huberman, 2012, p. 45).
Didi-Huberman volta a Descartes porque pretende pôr em pauta a questão do encarnado, que participa da discussão por meio da novela de Balzac, A obra-prima desconhecida, na qual se põe em xeque a legitimidade de uma pintura, por meio de uma ausência de carnalidade que poderá ser lida na relação com o uso da cor. O que falta à tela de Porbus, segundo o personagem Frenhofer, está no fato de a mulher da tela não ser retratada com a ideia de um “dar a volta em torno”, restringindo-se a uma figura desvitalizada. Segundo Didi-Huberman, o problema está na ausência de “interstício”, que ele também chamará de um estado do “manter-se entre” (Didi-Huberman, 2012, p. 45).
Seria oportuno estabelecer conexões entre o diáfano, de acordo com a leitura de Aristóteles, com a teia intersticial de Descartes, reconhecendo obviamente as diferenças históricas, e a tentativa ambiciosa de O’Keeffe de revelar uma forma desconhecida. Por essa forma, de acordo com carta da pintora mencionada por Kristeva, envolve o indivíduo que sabe ou mesmo desconhece o que procura, podendo estar também no que ela chama metaforicamente de “escuro absoluto”; no entanto, O’Keeffe revela uma certeza: trata-se de um “trabalho que deve ser feito” (O’Keeffe apud Kristeva, 2005, p. 486).
Nesse sentido, podemos entrar em contato com a ambiciosa e desafiadora busca da pintora, dando-lhe o status semiótico da cor, que, em pinturas que privilegiam grandes detalhes a fazer perder o todo, como sinalizam suas imensas flores, produzem o efeito de que se está diante da formação da forma – ao estilo do proto-espaço da chora semiótica, que permite analogia com o corpo da Virgem Maria. A sugestão desse caminho de leitura se origina do meu contato com a tela intitulada “Abstraction, White Rose II,” de 1927, no qual as sucessivas camadas brancas, azuladas e levemente amareladas, essa última em pinceladas sutis, criam sensações aquosas semelhantes ao leite – uma imagem ainda mais fluida do que a sugerida pela pétala-floral, seguindo a orientação visual dada pelo título. Uma rosa branca vista de muito perto pode perder a sua forma de flor, ampliar-se a perder o conjunto da forma, a expansão de suas pétalas se dilui pelas camadas que se esparramam, e a divisão se deixa marcar por um contraste mais escuro, quase um verde fechado, que por ali somente acentua as pinceladas com muitos brancos acumulados. Leite materno? É possível. Na abstração dessa rosa branca o que desabrocha está no deslocamento do primado visual para o paladar. Roxana Robinson observa a influência do pintor William Merrit Chase sobre O’Keeffe. Chase, em aulas que foram frequentadas pela pintora, passava adiante técnicas de pintura que trabalhavam com texturas cremosas (Robinson, 2020, p. 234). O’Keeffe também ficou fascinada pelas aquarelas de flores e frutos de Charles Demuth (Robinson, 2020, p. 247).
Escrever sobre as flores de O’Keeffe implica considerar uma certa genealogia que se tece com Demuth, que era tido por ela como um dos seus, o que significava uma opção na contracorrente do modernismo aliado ao cubismo e a formas consideradas industriais. O grupo de artistas que O’Keeffe frequentava, assim como ela, não escapava totalmente dessa influência, mas, segundo Robinson, eles a reinventavam a sua moda (Robinson, 2020, p. 245). Nessa genealogia floral, a pintora não deixa de mencionar as pequenas e delicadas flores pintadas por Fantin-Latour (Robinson, 2020, p. 278). No depoimento de O’Keeffe sobre essa inspiração, nota-se que ela estava atenta a uma sensibilidade que não era mais de seu antecessor, pois estava no fluxo de um mundo em transformação pelos incrementos da técnica: “Percebi que se eu pintasse as mesmas flores tão pequenas ninguém as olharia, porque eu era desconhecida. Então pensei em fazê-las grandes como os arranha-céus que despontavam. As pessoas ficarão surpresas – elas terão que olhar para elas – e elas o fizeram” (apud Robinson, 2020, p. 278). Em outro momento ela dirá: “quando você pega uma flor na sua mão e realmente olha para ela, ela se torna o seu mundo no momento. Eu queria dar esse mundo para outra pessoa” (apud Robinson, 2020, p. 279). A ideia de pintar as flores em larga escala deve-se também à influência do grupo de Alfred Stieglitz, companheiro de O’Keeffe, e fotógrafo. Foi através de Stieglitz que ela entrou em contato com o trabalho do fotógrafo Paul Strand, conhecido pela ousada técnica dos close-ups. Seguindo a pesquisa de Robinson, O’Keeffe escreve para Strand, em 1917, para lhe dizer que costumava olhar para as coisas do mundo como ele as fotografava (Robinson, 2020, p. 280). Dois anos depois, em 1919, a pintora começa a pintura de pequenas flores por meio da técnica dos recortes e dos close-ups. Apenas sete anos mais tarde, ela irá pintar nas imensas telas suas flores deslumbrantes. Apesar desse encontro, O’Keeffe não tributa à fotografia, tampouco a Strand, a influência sobre seu estilo floral. Segundo Robinson, a pintora tinha o costume de negar influências de outras fontes, e, no caso de Strand, no máximo se pode referir a influências no plano inconsciente (Robinson, 2020, p. 280).
O interessante é perceber que O’Keeffe não era indiferente à técnica fotográfica. Do seu relacionamento com Stieglitz, temos a série de fotos em que ela aparece como musa, tendo, em seguida, conforme nos conta Robinson, optado por um investimento na sua carreira de pintora. Ao trabalhar no museu Georgia O’Keeffe, Lisa Volpe (2021) encontrou uma série de fotografias, possivelmente de autoria da própria pintora. Embora a maioria das imagens não tenha datas, o que torna essa relação com as imagens técnicas um tanto nebulosa, há uma série de fotografias em que O’Keeffe se deixa fotografar por Todd Webb, especialmente em paisagens desérticas, que eram a sua obsessão, tendo nas mãos uma câmera fotográfica. Para Volpe, por detrás das lentes de O’Keeffe, se descortina um mundo que fará parte de sua assinatura artística, incluindo seus interesses que logo serão incorporados aos temas de suas pinturas, entre eles as paisagens do sudoeste, os ossos, as flores e a estrada sinuosa (Volpe, 2021, p. 3). Não há, portanto, como escapar de alguma problematização da técnica fotográfica na pintura OKeeffiana. Para além de O’Keeffe, Didi-Huberman nos leva para os primórdios dessa relação entre pintura e fotografia. O filósofo ampara-se na noção de superfície para desmanchar crenças do senso comum. Cor e pele, como já recuperamos de sua análise, não podem ser confundidas com superfícies. Nessa perspectiva, o quadro de pintura, que poderá estar em tela ou tecido, também não pode ser confundido com uma superfície (Didi-Huberman, 2012, p. 48). Em seguida, o quadro é definido como “estrutura de redobra”, “interstício” (Didi-Huberman, 2012, p. 48), semelhante às definições de pele e de cor. Para melhor entender o quadro e mesmo a cor no seu entrelaçamento com a pele, abarcando assim também a complexidade da “carne”, é preciso buscar o que o filósofo pretende quando define o quadro como um “efeito de plano pungente” (Didi-Huberman, 2012, p. 55) e a partir do que punge já é possível reconhecer uma ligação com a técnica fotográfica e as considerações de Roland Barthes, em A Câmara clara, com base no desdobramento do punctum. Didi-Huberman percorre um longo e complexo caminho que retorna ao tratado Da alma, III, 13, 435a-435b, para nos dizer da necessidade do sentido do tato para o sentido da visão, uma vez que está no tato o que chamará de “limite” [eschaton] da visão (Didi-Huberman, 2012, p. 67). Nesse contato com o mundo do que pode ser visto, os nossos sentidos se confundem, na medida em que, seguindo Paul Schilder, em A imagem do corpo, Didi-Huberman reconhece que o exterior da nossa pele não está bem demarcado em relação à exterioridade do mundo, o que provoca uma confusão demarcatória entre o par mundo exterior e corpo. Voltemos ao quadro para ver como ele se relaciona esses dois movimentos contrastantes, a saber, aquele que se liga ao que é do visível, que o filósofo reconhece como plano e aquele que implica uma experiência alucinatória, que é plano da pele (Didi-Huberman, 2012, p. 69).
É com O visível e o invisível, de Merleau-Ponty, a partir da referência à noção de carne, que Didi-Huberman estabelece uma importante conexão que nos levará do plano do quadro para o pano do quadro. Ao sintetizar a noção de carne para o filósofo, Didi-Huberman põe em destaque temas como trama, tecido, os quais se relacionam ao que poderemos associar ao pano, além de referir tato e distância, o que levará à visão háptica, anteriormente problematizada por Aristóteles, e na pós-modernidade será interesse de Deleuze. Ao resumir o ponto de vista do filósofo Merleau-Ponty sobre as cores, em O visível e o invisível, Didi-Huberman evidencia a conexão entre pano (tecido), que duplica a experiência da visibilidade, e a noção de carne das coisas, o que desemboca no argumento da reviravolta da visibilidade: “quando acreditamos ver o quadro, estamos de fato sendo olhados” (Didi-Huberman, 2012, p. 54). Mas o que seria o pano e em que medida o plano se transforma em pano na pintura? Didi-Huberman resgata em dicionário etimológico essa relação entre plano e pano. Inicialmente, o termo pano “significava a extensão de um corpo em altura e largura”; pannus tendo o significado de “retalho de um plano”, adquirindo mais adiante a ideia de plano e volume até alcançar noções que podem ser de “local”, de “fragmento”, de “pedaço”, de “retalho” (Didi-Huberman, 2012, p. 56). Tais desdobramentos da noção de pano, levadas ao quadro da pintura, viabilizam o que Didi-Huberman reconhecerá como “uma capacidade de metamorfose do quadro” (Didi-Huberman, 2012, p. 55).
No que se refere à inserção metamórfica da técnica fotográfica, as noções do pano apontadas por Didi-Huberman, a partir do dicionário de etimologia, estão inevitavelmente ligadas ao punctum de Barthes. Gostaria de recuperar diretamente de Barthes as aproximações poéticas que ele tece a partir do punctum. Em A câmara clara (1984), Barthes chama o punctum de “picada”, de “pequeno buraco”, de “pequena mancha”, “pequeno corte” (Barthes, 1984, p. 46). Fiquemos com o impacto dessa pequena mancha, que não pode ser dissociada da sugestão de ferimentos a atingir o corpo do espectador. A não esquecer que o punctum “parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar” (Barthes, 1984, p. 46). Didi-Huberman faz uma referência explícita ao punctum barthesiano ao reproduzir do próprio autor a expressão “força de expansão”, que é acrescida de sua paradoxalidade, uma vez que agrega a essa expansão uma temporalidade do “instante”, da “escansão”, do “suplemento” e do “fantasma” (Didi-Huberman, 2012, p. 55) — elementos que foram indicados já por Barthes em seu estudo sobre fotografia. No capítulo “A dúvida (o desejo) do pintor”, Didi-Huberman aprofunda a noção de mancha não para retomar o detalhe outrora percebido por Barthes através do punctum, mas para falar do colorido que está na encarnação. Trata-se de dar à mancha o seu vínculo com a carne pintada e do sangue, do tom vermelho que acompanha essa marca cromática que envolve a noção de carne. Didi-Huberman defende a tese segundo a qual o encarnado proposto pelos pintores conecta-se com a esfera do desejo, e assim recorta de Balzac uma citação de que o diabo seria um “grande colorista”, o que faz jus ao risco dessa experiência ao situar o encarnado como o “grande inferno” do pintor. Nesse sentido, o encarnado também carregaria algo do feminino feiticeiro, estando no vermelho a sua cor (Didi-Huberman, 2012, p. 81-82). No âmbito dos afetos, o vermelho do encarnado remete tanto ao sangue que está no corpo quanto ao caráter espiritual que está nos olhos, a conter também o desejo. Ao consultar tratados de estética, Didi-Huberman realça as propriedades do encarnado com a pele, referindo gordura e sensibilidade na experiência tátil, o que o oferece um atributo cuja herança não pode ser desvalorizada – o encarnado foi chamado de “a voz da carne”. Reproduzo do tratado de pintura de Lodovico Dolce, referido por Didi-Huberman, os afetos que circundam o encarnado: “Ele seria como que o colorido-carícia e, por isso mesmo, “significa” o prazer amoroso, amoroso piacer, lê-se nos tratados, ou melhor, desejo de amor, desire d’amore” (Didi-Huberman, 2012, p. 82). A pensar sobre o cuidado com a cor e o interesse dos pintores pelo amor no seu vínculo com o prazer. A mancha, que também apresenta a cor vermelha e se mostra em estreita ligação com o corpo, com a carne, revela uma dinâmica diferente, pois sinaliza para a mácula, a impureza, o vício. A mácula que desperta o interesse de Didi-Huberman vem de um comentário de Lodovico Dolce para Alessandro Contarini, no qual ele comenta a tela “Adônis e Vênus”, de Ticiano, que, longe de apontar para a imperfeição que poderia sugerir a ideia de mancha, nos põe em estado de perplexidade diante de um corpo para além do corpo humano, um corpo portanto diferente dos seus espectadores: “(…) aquela Vênus ‘de uma beleza não apenas extraordinária, mas divina’” (apud Didi-Huberman, 2012, p. 83). Seguindo a carta de Dolce, Didi-Huberman recorta o seguinte: “(…) o golpe parece vir não de um pincel, mas da ‘própria mão da natureza’” (apud Didi-Huberman, 2012, p. 83).
Nesse momento, a mancha da pintura pode se encontrar com a mancha (punctum) da máquina fotográfica de Roland Barthes. Para isso, precisamos (re)voltar ao mandylion, esse manto que teria coberto a face de Cristo e gerado a primeira impressão, o que confere a esse episódio uma gama de mistério e interesse científico. No ensaio “História de um espectro”, de Mondzain (2013), acompanhamos o percurso desse movimento polêmico e algumas versões nas quais é narrada a história de que Cristo, que, por não poder se deslocar para a cura do rei de Edessa, Abgar, envia um pedaço de pano, também chamado de mandylion, depois de tê-lo passado pela Face. A impressão da Santa Face de Cristo nesse tecido ficou conhecida como a promessa de cura. Essa imagem impressa recebeu a designação de aquiropoética, por não ter sido produzida pelas mãos humanas, além de ter circulado pelos textos teológicos ao longo dos séculos. Importa, no ensaio de Mondzain, recolher alguns pontos acerca da imagem fotográfica, essa imagem técnica, que, conforme a pensadora, traz à cena algo da ordem eucarística, ou seja, novamente entramos em contato com o sentido do paladar. Embora sem o uso das palavras e dos gestos, essa “foto”, impressão de Cristo, busca ainda provas do seu corpo e sangue. “Os olhos do fiel comungarão com ela e serão abertos por ela” (Mondzain, 2013, p. 261). Nessa perspectiva, Mondzain busca entender, a partir da fotografia, como permanecer com o que chama de “produtor de imagens aquiropoéticas”, pois resta a esta imagem técnica a interpenetração de vocábulos que vão do técnico para espiritual, a exemplo dos termos que ela inclui no sema do sonho: Luz, revelador, trevas, objetiva (Mondzain, 2013, p. 258). Mondzain nos chama a atenção para o fato de que a questão apresentada por meio do Santo Sudário revela certo descaso da gestualidade humana. A filósofa nos explica as implicações da imagem aquiropoética:
“[…] Por um lado, que a beleza, a perfeição do resultado, não pode ser obra da mão de um homem; mais ainda, a própria natureza da imagem e sua análise não permitem reconhecer nela o vestígio, a marca de nenhum gesto produtor. Se a fotografia vem corroborar essa afirmação, é porque, é por ser interpretada como não constituindo o resultado de nenhuma causa material, de nenhum gesto. Não feito por mão humana significa que a mão, especificamente, não teve nada a ver com isso” (Mondzain, 2013, p. 264).
Nesse caso que põe em dúvida a autoria, percebemos que Mondzain lança sutilmente a tensão com a experiência da pintura, sobretudo pelo exemplo dos pintores impressionistas, como Cézanne e Van Gogh, cuja arte estava impregnada de gestos e pelo toque dependente das mãos desses artistas visuais. Na pintura, como explica Mondzain, se desenvolveu a necessidade de uma assinatura; na fotografia, por sua vez, em virtude de ela atuar como o que chama de “instrumento de objetivação”, se perdeu a necessidade de assinatura, do toque e por extensão se perdeu a mão do artista (Mondzain, 2013, p. 265). Curiosamente, pintores abstratos como Kandinsky, Malevitch e Mondrian podem ter, em alguma medida, se filiado ao que Mondzain chamará de “fantasia aquiropoética da fotografia”, uma vez que suas pinturas são livres de “subjetividade gestual” e podem levar a sugestões de luminosidade, de divindade – e ela não deixa de mencionar Kandinsky em Sobre o espiritual na arte. No entanto, a pensadora reconhece que essa inclinação aquiropoética encontra uma crucial limitação, pois esses pintores privilegiaram a abstração em detrimento de buscas miméticas (Mondzain, 2013, p. 265). Temos que considerar que o sudário envolve manchas e não desenhos e nesse caso, como sagazmente aponta Mondzain, o Santo Sudário é uma anamorfose que está a serviço da iconicidade. De qualquer forma, a imagem fotográfica e sua herança aquiropoética, que se encontra parcialmente com a pintura abstrata, revela a distância entre a imagem e a fantasia do olhar. Ao evocar o véu de Verônica, referência anterior ao Sudário de Turim, Mondzain retorna à economia materna outrora inspirada na Virgem Maria e na sua Estética da Encarnação. Por aqui, a filósofa nos lança uma pergunta-provocação que poderá ser pensada à luz das pintoras de uma mulher envolvida com abstrações, O’Keeffe: “Será que os grandes pensadores e produtores da abstração não quiseram encontrar as raízes maternas e fecundas da iconicidade e ocupar o lugar enigmático da verônica?” (Mondzain, 2013, p. 266).
No ensaio “La vraie image: une sainte face”, do volume Visões capitais (2005), Kristeva nos oferece uma grande pista que nos joga para uma genealogia feminina demasiadamente explorada pelo universo pictórico. A teórica, por meio da pesquisa do historiador A. Grabar sobre a Santa Face de Laon, tem a sua intuição confirmada. O historiador compara a imagem de Cristo inscrita no manto sagrado, o mandylion, e a representação da medusa (Kristeva, 1998, p. 45). Na esteira da medusa, a fotografia de Georgia O’Keeffe tirada por Stieglitz, na qual ela aparece com um olhar penetrante e numa coreografia de mãos ao redor do rosto, atualiza o efeito petrificante da Górgona. No entanto, para além de uma pose, dos efeitos muito bem trabalhados pelo fotógrafo e pela gestualidade da fotografada, essa musa dá vida também às imagens desde suas próprias mãos. E suas telas desempenham um papel que observo na provocação instigada por Kristeva, especialmente no ensaio intitulado “Des madones aux nus: une représentation de la beauté feminine” (2005), no qual a teórica constata que as criações artísticas imagéticas que compõem o nosso imaginário impõem um imaginário do feminino que é da ordem do masculino (Kristeva, 2005, p. 149). O feminino do homem, segundo Kristeva, que pode ser analisado à luz da paixão de Cristo por seu Pai, se resume, considerando as reproduções de várias crucificações, na cópia das fragilidades do feminino que estão nas madonas, contendo um arranjo previsível de vulnerabilidades e também de repetições da experiência sensível dos retratos das madonas, a saber, “sofrimento”, “fraqueza”, “tristeza”, “graça”, “pudor”, “êxtase”, “alegria” (Kristeva, 2005, p. 149). Kristeva segue a tendência que o olhar masculino esculpiu a nossa ideia de beleza, que participa da história da arte ocidental, tendo a pintura religiosa, sobretudo fortalecida a partir dos ícones bizantinos, desempenhado um papel importante nessa disseminação. Até mesmo a literatura não irá desmentir o que se deixa revelar nas artes visuais, segundo a observação de Kristeva, que vê aproximações entre a Beatriz de Dante e as pinturas de Giotto, o que, em outro tempo, mostra que Georges Bataille e Joyce são acompanhados da pintura de Picasso (Kristeva, 2005, p. 147). Para Kristeva, as mulheres pintoras têm o hábito de reproduzir a beleza do feminino que foi estabelecida pelos homens, considerando o aspecto feminino da bissexualidade masculina, de forma a consolidar a mesma estrutura, com uma ligeira alteração, que pode, conforme os exemplos que ela oferece, conter o acréscimo de um sorriso e mesmo da crueldade (Kristeva, 2005, p. 150). A tese de Kristeva acerca desse ponto está no fato de que o olho é fálico (Kristeva, 2005, p. 150), o que nos levará, para além do sexo ou gênero, a um trabalho com o conceito freudiano da bissexualidade psíquica do artista em busca de retratar os flagrantes da invisibilidade. Assim, na arte realizada por mulheres, não se pode sustentar o que Kristeva chamará de uma “ruptura radical”, mas se pode articular variações do que a teórica, para retornar a um termo de empréstimo de Mondzain, observa como “economia”, que consiste numa “modulação” (Kristeva, 2005, p. 151). Nos exemplos escolhidos por Kristeva para revelar algumas modulações da pintura articuladas por mulheres estão as pintoras Artemísia Gentileschi e Georgia O’Keeffe. Artemísia, assim como Caravaggio, fez a sua leitura da degolação de Holofernes. Na descrição das cabeça perdida segundo a pintora, Kristeva refere uma “frieza suave”, ao passo que em Caravaggio chega a uma “grotesca jubilação sadomasoquista”. No exemplo de O’Keeffe, a comparação acontece com Cézanne. No aspecto floral, a pintura de O’Keeffe alcança o transbordamento desencadeado pela “impureza do sexo feminino”; já em Cézanne temos a “soberania de um gesto humano confundido com as vibrações do Ser” (Kristeva, 2005, p. 151). Tais modulações passam por uma escrita da pintura – investigação e proposta do Barroco Floral.
O fato de o olho ser fálico, incluindo seus efeitos sobre a experiência da pintura, além de acomodar as modulações entre os diferentes pontos de vista, considerando a perspectiva historicamente rebaixada das mulheres, se apresenta em movimento de desconstrução, de acordo com a leitura de Kristeva, que terá aliados nas artes moderna e pós-moderna e suas características de “abstração”, de “minimalismo” e inclusive de “psicose” (Kristeva, 2005, p. 151). Nessa perspectiva, as buscas pictóricas das pintoras se configuram naquelas que vão assumir o “risco” e o “escândalo” diante das tentativas de desvelamento do que nos é invisível.
Não é à toa que Kristeva fecha esse ensaio sobre a pintura com um longo debate em torno da importância iconográfica da Virgem Maria, de modo a dar, senão uma resposta, alguma orientação possível à pergunta feita por Mondzain no ensaio sobre fotografia. Essas duas pensadoras fazem um retorno etimológico ao corpo paradoxal da Virgem Maria – personagem que se tornará, segundo Kristeva, a patrona das artes (Kristeva, 2005, p. 160). A Virgem Maria é sobretudo aquela que nos levará a Kenose, ao vazio e à encarnação contidos nesse termo que atravessa o pensamento de Mondzain e de Kristeva – pensadoras que nos auxiliam a percorrer a genealogia a envolver uma Estética da Encarnação. A Virgem parece ampliar a paleta afetiva da pintura, na medida em que subjaz a uma busca pelo “amor infinito” (Kristeva, 2005, p. 151), o que abala a cartela de afetos ancorada na fragilidade e vulnerabilidade e na crueldade do feminino dos pintores, que nos foi oferecida e repetida com diferença entre pintores e pintoras. Se a economia do corpo da Virgem não produz uma ruptura radical, porque como vimos o olho é fálico e estamos enredados em modulações, a imagem da Virgem pode dar vazão ao risco, porque está em permanente flerte com a kenose, esse vazio imprevisível que seduz as mulheres rebeldes. Será que podemos reconhecer algum vestígio das invisibilidades contidas no corpo da Virgem na pintura de O’Keeffe? A Abstração da rosa branca, de 1927, já não guarda semelhanças com o rosto de uma mulher ou mesmo de alguém ou algo portador de uma cabeça, mas aquelas camadas de tinta branca remontam, entre outras leituras possíveis, ao aspecto nutriz do leite materno, fazendo conexões heréticas com a paradoxalidade do corpo materno da Virgem. Não a geratriz, mas o seu leite, que reenvia a camadas afetivas de um sexo-flor a ampliar a tradução dos elementos semiotizáveis, transformando as paixões para estados a serem repensados e escritos a partir de pinturas.
As pinturas de O’Keeffe interferem na forma como ela escrevia suas cartas. Kristeva chama de “estranha” as tentativas de tradução de tradução do visível, que se chocam com as palavras (Kristeva, 2005, p. 489) – e aí se desenvolve a condição estrangeira dessa pintora que buscava “respirar sem interrupção a força da vida” (Kristeva, 2005, p. 489).
Impossível não reconhecer que a sua forma de dar vida às telas impregnava-se de seus afetos. E estados depressivos não permanecem com ela por muito tempo. Em cartas de 1932, Kristeva recorta as alternativas da pintora para escapar das tristezas, entre elas estavam a atividade da natação e as aventuras para outras paisagens, o “fora” O’Keeffiano se reveste de um charmoso “faraway” para locações desérticas (Kristeva, 2005, p. 490). Além disso, o riso era uma companhia permanente. Em carta de 1939, Kristeva observa que a compreensão das palavras para a pintora precisava passar por um estado de riso, o que também acontecia ao ler as cartas que recebia. Obviamente que essa reação revela alegria ao lado da ironia, segundo a leitura de Kristeva de outras cartas (Kristeva, 2005, p. 491). O estilo da escrita da correspondência de O’Keeffe recebe a análise de Kristeva, que percebe em sua forma o que chama de “matéria plástica”. No lugar dos dois pontos, O’Keeffe utiliza serpentinas, que no momento da impressão são substituídas por um traço, a dar um efeito de travessão. Kristeva nota que essa forma peculiar de escrever sinaliza a “respiração do corpo” da pintora (Kristeva, 2005, p. 492). A sintaxe de O’Keeffe se faz por vezes com palavras isoladas, sugerindo fragmentação. Segundo Kristeva, a pintora se recusava a aprisionar suas emoções através de uma escrita dentro de convenções. Kristeva nos explica que tanto a perspectiva na pintura quanto a sintaxe na linguagem são responsáveis por um distanciamento para a organização dos afetos, e sua tradução passa pelo sentido da visão. O’Keeffe, no entanto, se recusa a esse afastamento. Nesse sentido, sua escrita apresenta uma frase considerada “irregular”, que também pode chegar ao caráter “brutal” e à ambiguidade, pois a pintora pretendia o contato com a “matéria vivida”, segundo Kristeva (Kristeva, 2005, p. 492). No uso das cores, acontece algo semelhante à tomada de riscos, ao que é da ordem da “fascinação-fusão com a cor”, que, em seguida, na comparação com a correspondência, será chamado de uma escrita que, embora tenha uma aparência um tanto negligente, é muito trabalhada – “costurada à mão” (Kristeva, 2005, p. 492).
Nesse momento revelador de seu ensaio, Kristeva insere um elemento fundamental na composição do Barroco Floral, a saber, o vínculo da animalidade com a escrita, que se soma ao chamado da criação ao estilo da manualidade da alta costura. E O’Keeffe, na investigação da teórica, esteve à procura de “metáforas do universo animal” (Kristeva, 2005, p. 492), o que, no ensaio “Des madones aux nus…” se encontra com as representações da Virgem Maria do século XIII, no período de evidência de São Francisco de Assis, o santo despojado e protetor dos animais, levando-a a imagens de uma Maria humanizada. Diferente de um culto à pobreza e ao que Kristeva reconhece sob o nome de “masoquismo feminino”, essa humanização conduz a aproximações com a trivialidade da vida, com os animais – algo na linha da Haecceitas, de Duns Scot (Kristeva, 2005, p. 160), pensador que tem sido amiúde associado pela teórica à singularidade do pensamento, de modo a inspirar reflexões sobre o feminino que são um tanto distantes de buscas identitárias14.
O’Keeffe não retrata diretamente a Virgem, mas a kenose se revela em diversos momentos de sua arte pictórica, entre eles na Abstração da rosa branca, com sua economia nutriz e, como vimos por meio da análise de Kristeva, de sua escrita epistolar. Estão nos crânios de vaca com rosas, recolhidos pela pintora em suas moradas desérticas, com os quais ela se deixa fotografar, uma espécie de retorno da Virgem, ainda que por imagens oblíquas, as quais (re)voltam pela vida cotidiana de um animal, mas não qualquer animal. Uma vaca.
A vaca se manifesta como emblema da animalidade na proposta do Barroco Floral. Se cada escrita fascinada por imagens pintadas tem um bicho, a passar pelas escolhas das e dos poetas/escritores/escritoras, há que se levar em conta as eleições das pintoras e pintores nessa escrita de múltiplas redes fantasmais, incluindo o fantasma da castração. Ao segurar um crânio de vaca, O’Keeffe toca justamente no cerne de nossa ancestralidade feminina. Curiosamente, em trocas epistolares com a antropóloga Catherine Clément, no volume O feminino e o sagrado (2001), a importância da vaca se amplia em muitos sentidos. Clément, em carta de 16 de janeiro de 1997, para fundamentar a temática do sagrado que as acompanha nessa troca de cartas, anuncia os poderes nutrientes de uma vaca:
Como a deusa Hathor, no Egito, a vaca sagrada da Índia é o invólucro do universo porque foi da pele costurada de uma vaca que nasceu o primeiro ser humano. Macho, nem é preciso dizer. A vaca é, portanto, maternal e envolvente, admitamos. Os hindus tiram daí suas consequências: tudo aquilo que sai da vaca é não apenas sagrado, mas útil. Bebe-se o leite, faz-se a manteiga para a vida quotidiana, a mesma com a qual se vai aspergir o cadáver durante a cremação; come-se a nata que sobra, utiliza-se a urina como anti-séptico para limpar os assoalhos, e, como combustível, tijolos de bosta que secam em cima dos muros (Clément, 2001, p. 40, grifo nosso).
A economia do corpo da vaca, marcada pelo utilitarismo, se encontra com a imagem da Virgem Maria, também inserida na esfera materna e nutriz. Ao pintar o crânio de vaca, O’Keeffe nos coloca diante do vir antes, como encontramos no “a seguir”, do ensaio O animal que logo sou. A seguir, de Jacques Derrida, no qual ele investiga quem segue quem no par antitético homem x animal e conclui que estamos atrás do animal. Há, portanto, um antes da humanidade e da instituição de sua linguagem que nos perturba na pretensão de soberania sobre esse outro, historicamente rebaixado. O fato de o animal poder me olhar anda ao lado do que Derrida constata como um “esquecimento calculado” da atividade filosófica (Derrida, 2002, p. 28). Inscrito na seara literária, o Barroco Floral ambiciona pensar desde esse constrangedor esquecimento. Nessa ótica de ter um outro que vem antes de mim, um outro distante do logos, a fotografia em que O’Keeffe surge ao lado do crânio de vaca, sem fitá-la, demonstra algo diferente de um sentimento de vergonha, de sentir vergonha da própria vergonha, como é narrado por Derrida ao sentir um mal-estar (animal-estar) por estar nu e ser visto pelo próprio gato (Derrida, 2002, p. 44). Na fotografia intitulada “Georgia O’Keeffe: um retrato com um crânio de vaca”, de 1931, de autoria de Stieglitz, a pintora exibe o esqueleto do animal não como a vitória de um seguir ligado ao gesto da caça. Não há triunfo ou soberba na expressão de O’Keeffe, e seu rosto de apoia sobre uma superfície para suportar o peso da ancestralidade de uma vaca. Seus olhos ficam enceguecidos diante da luz natural, um olhar oblíquo das mulheres que contornam efeitos da castração eclode para nos dizer alguma coisa. O que seria?
Na correspondência com Catherine Clément, Kristeva tece algumas considerações sobre duas telas cuja inspiração está na kenose, a saber, Série I, n.1, 1918 e Crânio de vaca com rosas de algodão, de 1931. Curiosamente, antes de chegar aos quadros, Kristeva traça uma breve genealogia religiosa das visões femininas, retornando brevemente à Teresa d’Ávila, à Ângela de Foligno e também à religiosa Louise du Néant. A experiência que parece mais próxima da animalidade na busca de um nada que faz uma linha de sutura espiritual entre essas mulheres, e que vasculhamos por meio das imagens, se encontra em Hildegard de Bingen, cujas visões são narradas por imagens de animais – “cabeças de lobo, de leopardo, ursos e outros tantos leões” (Kristeva, 2001, p. 49). Segundo Kristeva, que transforma as visões de Hildegard em criações visuais, somos levados a interpretá-las visualmente por meio de “quadros”: Entre suas mais belas visões, tenho ainda diante dos olhos esses quadros penetrantes e devoradores de vísceras e secreções” (Kristeva, 2001, p. 49). O’Keeffe realiza o movimento inverso, transformando as suas telas em experiências visuais que, no ensaio “La forme inévitable”, adquirem, em algumas formulações, o status de visões: “Imaginemos que essas flores sejam o corpo interno, o desabrochar curvo e sensual da jovem mulher em êxtase que Alfred Stieglitz fotografou: Georgia O’Keeffe após seu retorno do Novo México (1929)” (Kristeva, 2005, p. 497). Sobre os crânios de vaca com rosas brancas, Kristeva faz aproximações com as “visões surrealistas”: “Adornadas com flores artificiais, essas visões surrealistas são nada mais nada menos do que uma zombaria da morte casada com a celebração: elas neutralizam o horror de uma e a pompa da outra, e impõem a permanência – serena ou sinistra?” (Kristeva, 2005, p. 498). Kristeva faz a pergunta e em seguida oferece o caminho para uma resposta: “Os crânios e os ossos transformam o tempo em um monumento: nada passa, tudo dura, vida e morte congeladas no artifício de uma visão calma e incomum” (Kristeva, 2005, p. 499). Uma ligeira (re)volta à medusa nesse tempo que se petrifica? Possivelmente na tela com crânio de vaca e rosas de algodão desabrocham as mulheres que compuseram esse quadro do Barroco Floral, a expandir-se entre outras composições imagéticas e outros gostos. O’Keeffe, assim como Arendt, não teve filhos, mas elas abriram caminhos do nascimento, do dar à luz a novos começos. Em O olho e o espírito, de Merleau-Ponty, a pintura se relaciona mais de uma vez com o nascimento, seguindo o que filósofo reproduz de André Marchand: “Pinto talvez para surgir” (Merleau-Ponty, 1964, p. 31). No mesmo ensaio, o corpo materno se inscreve para abalar o primado da visão, o que nos leva, conforme a indicação das transubstanciações (Merleau-Ponty, 1964, p. 16), a uma gestualidade onde a “visão e movimento” referidas pelo pensador contaminam-se pelo sentido do gosto: “A visão do pintor é um nascimento continuado” (Merleau-Ponty, 1964, p. 32).
Em O’Keeffe, o nascimento em pintura vem carregado de cromatismo. Os crânios de vaca se ampliam quando entramos em contato háptico com a série Pelvis, nas quais os ossos esbranquiçados e sutilmente frágeis, porosos, se confrontam com a imensidão de um céu aberto no limite entre o que parte e o que nasce para o ciclo da experiência sensível:
Para uma mulher que não tinha filhos e cuja paixão criativa nos últimos anos permaneceu na criação de formas coloridas, essa celebração de um ossuário pélvico é um triunfo sem precedentes sobre a angústia da morte, a afirmação definitiva de uma felicidade inteiramente absorvida pela realização estética. “E, é claro, eu amo minha vida”, escreve ela. Em outras palavras, eu amo minha vida até o ponto da morte, que eu transformo em uma eternidade estética (Kristeva, 2005, p. 500).
Temporalidade que eterniza um instante, o Barroco Floral vive em um tempo escandido. Escreve-se com expressiva vitalidade para aquelas e aqueles que viveram as delícias e os horrores da intensificação do tempo, de sua habitabilidade, a pensar nesse fecho junto com a dromologia e dromocracia de Paul Virilio em Velocidade e Política (1977/1996). Escritores e poetas que participam das mudanças radicais que atravessam os séculos XX e XXI aceleraram diferentes formas de escrita, possivelmente tocados por essas transformações técnicas vertiginosas. Entretanto, esses artífices da palavra ainda se revelam impregnados pelo magnetismo de imagens que atravessam seus corpos. Na esteira da avalanche das modificações dos últimos séculos, com seus vetores de destruição de massa, o Barroco Floral nasce da perturbadora fascinação a persistir no que resta do gosto do sujeito que escreve, eclodindo do contato com uma imagem a ser transcriada por um ou uma artista da palavra. E seus movimentos de leitura, diferentemente de um roteiro, desabrocham, a exemplo das flores, no choque inspirado pela experiência (re)volta íntima ambicionada por Kristeva e por sua genealogia, inicialmente formada por um trio, mas em seguida expandida para séculos anteriores e mesmo para a nossa herança religiosa, animal e mitológica, abrindo-se a caminhos imprevisíveis de leituras, a incluir os seguintes movimentos: a condição estrangeira; a relação entre linguagem poética e o nascimento das imagens no cruzamento com possíveis discursos sobre a maternidade; a animalidade escrita; o cruzamento dos afetos nas florações; as composições escritas que desabrocham na contracorrente da herança filosófica do imperativo visual.
O que está por vir a partir das florações brota de forma heterogênea a uma aplicação teórica na atividade poética – e a “imagem”, nosso ponto de perturbação, contribui para essa desobediência que faz o pensamento dançar enquanto fica enceguecido, já não mais se sustentando com a herança do imperativo visual.
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NOTAS:
1 O ensaio foi inicialmente apresentado no 11. Colóquio de Medicina e psicanálise. “O estatuto da mulher na medicina: corpo e psique”, em 2010. O ensaio está disponível no site oficial de Kristeva: Julia Kristeva – La maternité au carrefour de la biologie et du sens. Endereço consultado em 12 de dezembro de 2018.
2 “Chamaremos de melancolia a sintomatologia psiquiátrica de inibição e de assimbolia que, por momentos ou de forma crônica, se instala num indivíduo, em geral se alternando com a fase, dita maníaca, da exaltação” […] Ao mesmo tempo em que reconhece a diferença entre melancolia e depressão, a teoria freudiana revela, em todo lugar, o mesmo luto impossível do objeto materno (KRISTEVA, 1989, p. 16; 1987, p. 18-19).
3 “A experiência dramática da solidão se encurva, para concluir, num sentimento onipresente de isolamento que se mostra ser quase um conhecimento lúcido de nossa condição de seres separados, rejeitados de um paraíso que era, no entanto, um inferno, mas que nosso superego não cessa de idealizar para melhor nos convencer de que estamos em dívida com o impossível” (Kristeva, 2002, p. 131).
4 Retomo brevemente a partir de Kristeva, de acordo com os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, os tipos de perversão: “a) transgressões anatômicas das zonas corporais destinadas à união sexual, b) retenções da relação intermediária com o objeto sexual que, normalmente, devem ser rapidamente atravessadas no decorrer do objetivo sexual final” (Freud apud Kristeva, 2007, p. 178; 2002, p. 212). Kristeva recupera de a Introdução à psicanálise, de Freud, as manifestações da perversão na vida adulta: “desconhecimento de barreira específica (do abismo que separa o homem do animal), da barreira oposta pelo sentimento de desgosto, da barreira formada pelo incesto […], homossexualidade e finalmente transferência do papel genital a outros órgãos e partes do corpo” (Freud apud Kristeva 2007, p. 179; 2002, p. 213).
5 “Perguntava o motivo por que é que não seríamos felizes, ou que mais buscaríamos, se fôssemos imortais e vivêssemos em perpétuo gozo corporal, sem receio algum de o perder? Ainda ignorava que esta pergunta era fruto da minha grande miséria. Assim, imerso no vício e cego, não podia pensar na luz da Virtude e da Beleza que os olhos da carne não veem, e só o íntimo da alma distingue” (Agostinho, 1997, p. 137).
6 Durante o meu pós-doc realizado na Furg, além das atividades de docência na pós-graduação, desenvolvi uma pesquisa intitulada “Escritas do íntimo” (2018), que deu origem ao livro Literatura do íntimo, na qual proponho retomar algumas referências que constituem a revolta íntima, seguindo o pensamento de Kristeva, de modo a indicar reflexões em torno de uma “escrita do íntimo”. A vida-obra de Teresa d’Ávila participa dessa trajetória, acenando, naquele momento, para o esboço de uma genealogia do íntimo que atualmente eclode na formulação do Barroco Floral.
7 “Rien de plus lourd qu’on corps mort. Et la pesanteur du cadavre s’accroît davantage encore si la tête vient à manquer. Un visage – qu’il soit placide, livide ou déformé par la mort – donne du sens au corps et par conséquent l’allège. Les yeux, fussent-ils éteints, écarquillés ou exophtalmiques, la bouche, fût-elle tordue, sanglante ou tuméfiée, les cheveux, fussent-ils arrachés, plaqués sur la crâne ou en désordre, tous sont les nécessaires vecteurs d’une expression qu’on soupçonne être celle de la mort. Mais, sans yeux ni bouche, sans tête ni cheveux, un cadavre n’est plus qu’une pièce de boucherie. (…) Amputé de la funeste exubérance que peint le masque des trépassés, la mort est deux fois mort. Non que la victime soit privée de son humanité ou même de sa personnalité, qui persistent au contraire, minutieusement sculptées dans le torse décapité, dans les membres déjetés, dans l’abandon de la posture; mais la folie, qui est le sceau de l’humain et que trahit le visage, demeure – si cet indice capital fait défaut – littéralement invisible” (Kristeva, 1996, p. 11-12).
8 “Non, le sexe n’avait jamais été du viol pour Stéphanie, quoi qu’eussent pu prétendre ses amies féministes au nom de l’humanité, ou plutôt au nom de la féminité; c’est même là-dessus qu’elle avait dû se séparer d’elles. Jamais de viol. (…) Fleurs offertes au ciel sous le pinceau de Georgia O’Keefe. Fragrances devenues tactiles dans les pages de Colette. Stéphanie savait reconnaître dans les oeuvres des autres ce plaisir sans nom que lui donnaient, à elle, les hommes. Et qu’elle aimait préserver, voilé, insulaire” (Kristeva, 1996, p. 156).
9 Cf. os ensaios de Kristeva: Décollations. In: Visions Capitales (avec Liudvig Feïerbakh). Paris: Réunion des musées nationaux, 1998, pp. 81-100. De la guillotine à l’abolition la peine de mort. In: Visions Capitales (avec Liudvig Feïerbakh). Paris: Réunion des musées nationaux, 1998, pp. 101-110.
10 Recorro ao Dicionário de Psicanálise, no qual, segundo Roudinesco e Plon, o imaginário relaciona-se com a imaginação, estabelecendo vínculos “com a faculdade de representar coisas em pensamento, independentemente da realidade” (1998, p. 371).
11 “Toucher avec le verbe les vibrations du désir” (apud Kristeva, 1997, p. 103).
12 O tema da cor na pintura de Georgia O’Keeffe em meus estudos inicia em minha tese de doutorado (2008), sendo ampliado no ensaio intitulado Heranças da escrita desde a condição feminina: notas sobre pintura e literatura. Revista Aletria, Belo Horizonte, v. 29, n. 3, p. 283-304, 2019.
13 Destaque para o capítulo intitulado O corpo atravessado pela técnica. In: Clarice Lispector e Julia Kristeva: dois discursos sobre o corpo. Orientador: Maria Eunice Moreira. 2008. 565 f. Tese (Doutorado em Letras – Teoria da Literatura) – Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. p. 218-397.
14 Sobre a posição de Kristeva, sugiro a conversa-entrevista com Marie-Christine Navarro, na qual a teórica explica a provocação sobre ser “mais scotista do que feminista”, referindo interesse voltado à singularidade, conceito desenvolvido pelo filósofo (Kristeva, 2007, p. 25).
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Luciana Abreu Jardim é professora de literatura na Universidade Federal do Pampa. Doutora em Teoria da literatura pela PUCRS, Pós-doutora pela UFRGS, licenciada em Filosofia e bacharel em Comunicação Social-Jornalismo, pela PUCRS. Desde 2011 atua como professora colaboradora do Mestrado e Doutorado em História da Literatura, da FURG, dedicando-se a orientar pesquisadores e ministrar disciplinas relacionadas à Teoria da literatura.
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