Caderno Galego [05]:
Maltinha estais à janela
Tempos beras para jogatanas líricas, diz a vizinha tendo antes vindo mostrar o cão já velhote à janela, a gente percebe uma cantiga corrida lá ao fundo ou são talvez as passagens de um filme na televisão, volume ainda assim pequeno, sem grandes alegrias, ou é talvez e tão-só outra vida em directo para o mundo, streaming das nossas coisas de cá de casa lá para casa, máquinas da gente se chegar uma na outra, quartinho preparado para a ocasião porque a minha quarentena tem mais pinta do que a tua, ouves alguém dizer ou leste se calhar numa disputa embrulhada mantida na rede, e se não é a canção que agora vai tocando enquanto aproveitamos o sol à janela e as tarefas exigem paciência é talvez a espuma de uns quantos poemas convertidos em golpe viral ao colo de uma procissão de seguidores, a imagem de aborrecidos poetas no telemóvel lendo aqueles versos cheios de pompa e ressequido prestígio, uma coisa mole e que não dá para a gente dançar, a vizinha vem à janela mostrar o cão e lembra com graça que saudades íamos ter assim do futuro, e que saudades temos dos poetas menores, de poetas que também negociem no silêncio, tempo bera para mudar em texto mas o futuro não vira, malta, e cá vamos recolhendo algumas lições do interior, como por exemplo a malta muito mais gostar uns dos outros do que realmente pensava, a malta muito mais capaz afinal de mudar o futuro, talvez, e a malta mais feita ao futuro que não havia, ou que tão diferente se mostrava mesmo nas mais remotas e sensacionais fabulações, não era isto que tínhamos para nós, não era este o futuro que nos contávamos, tu nessa janela desde tua casa e eu aqui em frente enquanto vai passando a rua sem canções, só o recorte da sirene do farol quando passam outra vez as oito da tarde e lá longe aplaudem e ainda mais longe aplaudem também e a noite promete de novo não voltar como fazia, e ficam apenas essas guitarras de trazer o futuro todo outra vez, e é certo que aqui à janela fica complicado, que batem estranhos e incertos os pulsos do poema, mas o país é a gente a sonhar, o país é remar forte para ir mudando o horizonte.
**
Hugo Milhanas Machado nasceu em Lisboa [1984] e reside na Galiza. Exerceu como docente na Cátedra de Estudos Portugueses – Camões, I.P. da Universidade de Salamanca entre 2006 e 2019 e doutorou-se em Filologia Moderna pela mesma instituição, com a tese Ruy Belo, a ver os livros: ensaios na trajectória de uma obra poética [2015]. Dirigiu e coordenou o LAPELIPOSA – Laboratório Performativo de Língua Portuguesa de Salamanca, o TENSA – Teatro Naval de Salamanca, colectivo de pesquisa de artes de palco, e o programa semanal “Historias de la Música Portuguesa” na Radio USAL [2007-2019]. Desenvolve trabalhos em áreas como os estudos marítimos, a etnografia literária e musical portuguesa, a história velocipédica, os estudos radiofónicos, o teatro experimental e a música electrónica. Integra, com Julia García-Arévalo Alonso, o projecto multidisciplinar GLOSALENTA.
Fotografia de capa por Julia García-Arévalo Alonso.
You might also like
More from Hugo Milhanas Machado
Caderno Galego I Dezembro
Caderno Galego [06]: Dezembro Nem deste por isso, que a malta continua à janela e vai contando umas coisas engraçadas para aligeirar …
Dois poemas de “Estrela Tambor” de Hugo Milhanas Machado
NO CORAÇÃO DA FORMA, por adeus português Um verso capitão de remexer metros bravios, Curva de olhar ensinado na fola, miúdo tom Que …