Caderno Galego [04]:
Estrela negra
Era uma manhã cálida de início de ano, quebravam ainda as festas ao longe como sinal da biografia, alento curto de algumas canções do Natal, uma passagem veloz e sem recreios, recortada em formas distantes, e fomos ao molhe para tentar saber ou talvez recordar os cordames daquela língua já remota como quem de novo lança corrida para começar a escrever, só isso, e entretanto recuperar a segurança de umas quantas canções de David Bowie, outra vez o caminho de Janeiro na lembrança do mestre, falecido vai fazendo cada vez mais tempo, passavam agora quatro anos, e depois o mergulho rápido no mar e os dedos metidos uns nos outros, serenos mistérios para ostentar o segredo e a coluna da linguagem, o motor da linguagem, a temperatura da linguagem, o futuro da linguagem, sim, o futuro possível da linguagem como o embate do mar nessas pedras, uma página que ainda falta no caderno de aventuras galegas, porto novo para sossegar as madeiras do horizonte e o campo da frase, a meninice da frase, a estrela da frase, as mudanças da frase, os absolutos principiantes da frase, o pó do pó da frase, os heróis da frase, a vida na frase, as marcianas horas da frase, a estrela negra da frase, essa exagerada e magnífica estrela negra da frase, Lazarus para sempre, um sentido entusiasmo que vem crescendo das canções, pedras quase mudadas pelo romper da vaga, pedras voltadas no paredão, e então a ideia dos passos à volta, os passinhos mexidos nesse estranho fazer do Teatro Naval de Panxón, outra armadura na resistência.
**
Hugo Milhanas Machado nasceu em Lisboa [1984] e reside na Galiza. Exerceu como docente na Cátedra de Estudos Portugueses – Camões, I.P. da Universidade de Salamanca entre 2006 e 2019 e doutorou-se em Filologia Moderna pela mesma instituição, com a tese Ruy Belo, a ver os livros: ensaios na trajectória de uma obra poética [2015]. Dirigiu e coordenou o LAPELIPOSA – Laboratório Performativo de Língua Portuguesa de Salamanca, o TENSA – Teatro Naval de Salamanca, colectivo de pesquisa de artes de palco, e o programa semanal “Historias de la Música Portuguesa” na Radio USAL [2007-2019]. Desenvolve trabalhos em áreas como os estudos marítimos, a etnografia literária e musical portuguesa, a história velocipédica, os estudos radiofónicos, o teatro experimental e a música electrónica. Integra, com Julia García-Arévalo Alonso, o projecto multidisciplinar GLOSALENTA.
Foto da capa por Julia García-Arévalo Alonso.
You might also like
More from Hugo Milhanas Machado
Caderno Galego I Dezembro
Caderno Galego [06]: Dezembro Nem deste por isso, que a malta continua à janela e vai contando umas coisas engraçadas para aligeirar …
Dois poemas de “Estrela Tambor” de Hugo Milhanas Machado
NO CORAÇÃO DA FORMA, por adeus português Um verso capitão de remexer metros bravios, Curva de olhar ensinado na fola, miúdo tom Que …