A tradição de os reformados partilharem o seu apartamento com jovens estudantes estava a triunfar em Madrid. Era uma política que estava a ter muito sucesso. Um ancião ganhava mais algum dinheiro e, sobretudo, companhia, metendo um jovem na casa. Assim, o velhote não vivia mais sozinho e sempre tinha com quem falar. Para o jovem, aquilo era um modo de pagar uma quantidade simbólica e gozar de uma habitação durante meses, talvez anos, enquanto fazia os seus estudos na universidade, longe da casa dele.
Eu quis experimentar também aquele sistema. Os meus pais já fizeram esforços demais para me pagarem a propina universitária, portanto era o meu turno de encontrar uma habitação que não supusesse uma despesa excessiva. Como aquele sistema estava sob o controlo da câmara municipal, tive que me inscrever numa lista. Não foi problema. Aos poucos dias, fui avisado que eu fora atribuído a Dom Armando.
Dom Armando era um simpático velhote que morava num ático do bairro de Lavapiés em Madrid. A habitação era invejável, pois para além de contar com oitenta metros de habitação, tinha aliás um terraço com quase a mesma extensão do que a habitação. Porém, para além das vistas esplêndidas, a casa tinha uma caraterística que a tornava única: que lá tudo era reciclável.
Dom Armando, quando entrou na reforma, dedicou-se a ler como nunca tinha lido na sua vida. Assim, depois de dez anos –na altura já tinha 75, mas tinha uma ótima saúde–, graças às suas leituras e à sua habilidade, conseguiu transformar o seu lar num espaço sustentável ecologicamente, onde tudo era reciclável. No terraço tinha um horto que lhe fornecia de todas as verduras que precisava e até dispunha de painéis solares disfarçados de quadros infantis (na altura, o governo espanhol impunha coimas àqueles que ousavam fornecer-se da energia solar porque havia mesmo um imposto ao sol).
O homem reciclava tudo. O lixo orgânico ia para o horto, só o que não era orgânico ia para os contentores da rua. A água era reciclada na sua maioria, por isso ele quase não gastava água da companhia das águas, o qual tornava malucos aos inspetores, que não davam compreendido como aquele velhote conseguia consumir uma quantidade tão ridícula de metros cúbicos, mas não se incomodavam em investigar, porque sempre lhe aplicavam a tarifa mínima.
Segundo fui conhecendo o sistema que tinha instalado Dom Armando no seu apartamento, ficava mais e mais de boca aberta. Aquele velhote simpático e falador era uma caixa de surpresas. Eu gostava de passar muitas horas lá, estudava à vontade, se me era possível fora, no terraço, onde colocava uma mesa de campismo e uma cadeira. Dom Armando muitas vezes se achegava até a mim com uma chávena de chá, um chá que ele próprio produzia naquele horto, ou uma macela, qualquer infusão que eu desejar, porque tinha uma produção incrível.
– Eu sou de aldeia –gostava de explicar-me ele–. Por isso, quando vim morar aqui, montei o meu horto neste terraço. Não quis renunciar a uma parte importante da minha vida.
Aquilo era fácil de compreender. Provavelmente toda a minha vida naquela casa teria sido como umas férias, embora estivesse na universidade. Porém, a minha curiosidade por aquele sistema de reciclagem era imensa.
Sempre perguntava a Dom Armando como fazia com tudo. Assim, um dia me explicou que até as fezes eram recicláveis.
– Como assim? –perguntei surpreendido.
Dom Armando, a sorrir como um miúdo, levou-me para a casa de banho, aparentemente normal. Explicou-me que cinco anos atrás lera numa revista que uma empresa chinesa inventara um sistema para reciclar as fezes como esterco. Aquilo na China era um negócio. De pequena escala ele conseguira aplicar aquela tecnologia à sua própria casa de banho. Lá todos os resíduos, os detritos, eram reciclados. Precisamente então estive ciente que ao lado da casa de banho havia uma porta. Até aquela altura me passara desapercebida. Tentei abri-la, mas estava fechada.
– Lá está o segredo de toda a minha reciclagem –explicou-me Dom Armando–. Algum dia, tu também conhecerás esse segredo –explicou-me, sorrindo como sempre fazia–. Mas por agora, desfruta destes tomates.
Não pude evitar sentir-me mais e mais curioso, mas não queria pensar que as minhas fezes serviam para alimentar aqueles tomates formosíssimos. Até pela minha cabeça começou a correr a ideia de que, se eu descobrir como funcionava o sistema de reciclagem doméstica de Dom Armando, ganharia mancheias de dinheiro.
Cheguei a me obcecar com aquela porta. Não havia nada de mau em que eu descobrisse como funcionava o mecanismo da reciclagem de Dom Armando. Nem lha ia roubar! Apenas tiraria fotos e, depois de algum tempo, reproduziria o sistema e, se calhar, até o poderia comercializar. Simplesmente estava a me procurar um futuro.
Devia ter passado já meio ano desde que viera morar na casa de Dom Armando. Uma noite ergui-me da cama e fui para a casa de banho. Depois de fazer chichi, tirei uma lima do bolso e comecei a fuçar na fechadura da portinha do lado. Como eu supunha, aquilo não podia ter muitas medidas de segurança. Logrei abrir facilmente a porta e entrei no quarto minúsculo. Porém, lá não havia qualquer luz. De repente, a porta fechou-se. Tentei abri-la, mas não tinha manilha. Bati nela, angustiado, realmente com medo.
Aos poucos ouvi do outro lado a voz de Dom Armando:
– És tu? –perguntou-me.
– Sou –a minha voz era puro pavor.
– Ah, bem, então fico tranquilo, não é um ladrão.
– Mas faça favor, abra, abra, abra! –e continuei a bater na porta.
Mas ele não abriu. Sabia que estava a sorrir com o seu sorriso de miúdo. Depois duns segundos disse:
– Bem, agora já conheces o segredo da minha reciclagem. Já viste que eu reciclo tudo, também os estudantes que vêm morar comigo cada seis meses.
E então, só então, ouvi as cutelas que se cerniam sobre mim e que em questão de segundos me deixariam reduzido a uma amálgama de carne, sangue e ossos e que depois seria engolido pelo esgoto que se estava a abrir aos meus pés. Soube então que em breve eu também seria alimento para tomates… ou leitugas, porque, como dizia Dom Armando, tudo, absolutamente tudo, é reciclável.
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