A moça achegava-se cautelosamente do homem que sentava a oito ou dez metros diante dela. Pelo espelho da parede pôdo ver que tinha um bigode considerável, o qual era um dos elementos que o personalizavam.
━ Há reconhecê-lo pelo bigode ━ dixeram-lhe, e ela ia aproximando-se dele com passo lento, como se quisesse prolongar o tempo até chegar ao pé dele.
Mas chegou. Antes de lhe tocar o ombro para atrair a sua atenção, a moça comprovou que não estava só. Vários homens sentavam num par de mesas de mármore formando uma espécie de círculo, embora fosse com forma de retângulo. Alguns deles de seguida ergueram a vista para ela, como se intuíssem que dalguma maneira fosse interromper as sagradas discussões que ali tinham lugar.
Tratava-se de uma tertúlia, uma antiquíssima, que se remontava a três décadas atrás. Finalmente a moça quedou do lado direito do homem e perguntou-lhe:
━ Dom Virgílio Altarote?
O aludido já dera conta que uma mulher nova, atrativa, estava a caminhar para ele. Também ele a vira no grande espelho de frente, mas fezo como que não lhe prestara atenção. Porém, quando sentiu que perguntava por ele uma mulher formosa como aquela, de vinte e poucos anos, de compridos cabelos pretos, soltos, vestida com umas calças cingidas, primeiro virou-se e depois ergueu-se. Composo o seu melhor sorriso e perguntou:
━ Quem é esta beleza que por mim pergunta? ━ inquiriu ele tentando que a sua voz soasse como a dum barítono, embora sem cantar, enquanto beijava a sua mão, como se se tratasse de uma cena de séculos pretéritos, onde ele era um cavalheiro e ela era uma dama.
━ Chamo-me Sandra Garcia e encarregaram-me que lhe faga umas perguntas.
Aquilo soou a música celestial ao Virgílio Altarote. Havia já meses que nenhuma revista ou jornal se ocupava com a sua carreira literária. Ainda bem que por fim iam procurar uma solução àquela injustiça de o deixarem num semi-ostracismo durante meses. O peito do homem encheu de satisfação.
━ Quem lhe dixo que estava aqui? ━ perguntou ele curioso, embora era bem sabido nos ambientes literários que ele frequentava aquela tertúlia mensal do centro da capital, onde sempre tentava ser o centro de interesse.
━ De facto foi a sua mulher. Consegui falar com ela ao telefone, porque o senhor não tem telemóvel e é impossível marcar um encontro consigo ━ explicou ela.
━ Bem certo ━ assentiu ele com um sorriso.
Todos sabiam que dom Virgílio Altarote odiava as modernidades. Não podia possuir um telemóvel porque era um artefato do demo. Com ele, todos sabiam onde é que ele estava. Tampouco usava computador para escrever, ele pertencia à velha escola, aquela que escrevera por sempre numa máquina de escrever. A sua era uma Olivetti, que já herdara do pai e que continuava a fazer o seu trabalho seriamente. Só de vez em quando falhava a fita, que ia para onde não devia. Mas nada sério, pois opinava que os seus manuscritos, cheios de nódoas de tinta, eram também parte da sua arte criativa.
━ Sente e tome algo ━ofereceu ele todo galante, retirando vários jornais e livros da mesa que havia a sua direita, ainda desocupada━. Penso que seja bom que veja como fago aqui na tertúlia, no meu ambiente natural. Há-lhe fornecer uma visom mais completa e autêntica de mim que a das meras perguntas. Ademais, com o que vai ouvir aqui, acho que nem vai precisar de formular qualquer pergunta depois.
Ela ia retrucar, mas não tevo vagar, pois ele perguntou-lhe:
━ O que quer tomar?
━ Um chá…
━ António! ━chamou imediatamente Dom Virgílio Altarote.
Aos poucos acudiu um camareiro gordecho, todo vestido de branco, salvo pelo avental, que era preto e tinha o logótipo do café centenário debuxado precisamente sobre os genitais do homem.
━ O que lhe sirvo, Dom Virgílio?
━ Um chá, e que seja com muito amor, porque é para esta senhorita que poderia deixar-te sem alento só com o bater dessas suas pestanas que parecem leques.
━ Ouvido, Dom Virgílio ━respondeu o camareiro, que devia estar já mais que afeito aos comentários do velho escritor.
A Sandra, pela sua parte, limitou-se a olhar para mármore da mesa, como se aquilo não fosse com ela.
━ Escute o que se fala ━dixo-lhe o Virgílio Altarote enquanto ela esperava pela infusão, dado que ele tinha certeza que a rapariga apreenderia muito simplesmente ouvindo.
Ela reparou então no velhote que estava sentado à sua direita. A sua posição era estranha, pois à sua esquerda tinha Dom Virgílio e à direita tinha aquele velhote, que se apresentou ele sozinho. A questão é que ela estava sentada numa cadeira num lado da mesa, enquanto os outros dous homens estavam em lados diferentes. Porém, de repente, começou a sentir uma estranha pressão, era algo indizível, algo que não sentira nunca. Acontecia que sentia como se dous lutadores de sumo japonês estivessem sentados a ambos os seus lados. Nenhum daqueles dous homens a tocava, mas parecia que sim, e que nem só lhe roubavam o espaço físico, mas também o ar. Custava-lhe respirar.
Por fim trouxeram-lhe o chá. Ela botou o açúcar e remexeu suave, distraidamente, enquanto começava uma discussão em que participava aquele velhote sentado à sua direita, que até o momento se limitara a falar com outro tipo sentado ao seu carão, que fingia escutar as suas guerras, mas que de facto estava mais atento ao seu telemóvel.
━ A nova antologia do nosso grupo poético não me parece que recolha a essência do grupo ━dixo de repente Virgílio Altarote, pondo acima da mesa a antologia em questão.
O tipo do telemóvel ergueu os olhos e fitou para o livro, mas não dixo uma palavra.
━ A ver, Amadeu ━ dirigiu-se o Virgílio ao tipo do telemóvel, que teria cerca de quarenta e cinco anos━, tu és o antologista. Como pudeste fazer uma cousa assim? É que não consideras que uma antologia como esta precisa de um prólogo ajeitado? Por que não o pediste a mim?
O tal Amadeu passou a mão pelos lábios, como se quisesse provocar as palavras para saírem, mas antes de elas chegarem até a sua boca, já o Virgílio Altarote lançou outra bomba.
━ E por cima, Amadeu, tu consideras que Dom Vítor Castelo-Branco ━e aí acenou para o velhote━ não pertence ao nosso grupo poético?
Aí o velhote, o tal Dom Vítor Castelo-Branco, saltou com uma energia para um ancião que devia ter já quase noventa anos. E com voz potente começou a largar comentários sobre como ele aparecia nas crónicas literárias da cidade, ou como estudiosos de fama se ocuparam da sua obra, incluindo-o entre os poetas do século. O Amadeu era o alvo das iras do velho, enquanto Dom Virgílio Altarote sorria e se afagava o bigode, a gozar do espetáculo, do ataque que ele provocara. O Amadeu não falava, não tinha opção. O velho falava para ele, mas ao mesmo tempo ignorava-o, embora estivesse sentado ao seu lado. O resto dos participantes na tertúlia nem abriram a boca, contemplavam a cena com pasmo. Talvez aqueles espetáculos fossem menos habituais do que parecia.
Felizmente a cousa acalmou. O velhote acougou e falou com a Sandra, repetindo os mesmos argumentos, mas agora mais tranquilamente. De vez em quando, Dom Virgílio Altarote interrompia o velho e comentava com a rapariga qualquer estupidez, como que ele visitava todos os anos Florência e até chegara a compor um livro de poemas na cidade depois de sete visitas; ou que cozinhava os espaguetes à carbonara como um verdadeiro italiano, porque ele, no fundo, era um italiano debaixo da sua pele, e para o demostrar, começou a cantar nessa língua, com voz potente, tanto que era audível em todo o café:
━ Oh, cara mia, tu mi fai sentire la notte bagnata, io ti faccio sentire che sei la più adorata…!
A Sandra nem sabia onde se esconder. Porém, ao mesmo tempo voltara a sensação de angústia que lhe tornava mais difícil a respiração. Tomou o chá em dous grolos e disposo-se a ir embora, não o aturava mais. Precisava sair para a rua e respirar ar fresco. Ainda precisaria de mais tempo e de mais experiências como aquela para dar compreendido que o que lhe causava aquela asfixiante sensação era estar entre dous egos superlativos, o de Dom Virgílio Altarote e o de Dom Vítor Castelo-Branco, só podia afogá-la. Mas antes de se mexer, Dom Virgílio Altarote concentrou novamente toda a sua atenção nela.
━ E bem, minha cara ━prosseguiu Dom Virgílio Altarote━, se ainda quer que lhe responda algumas perguntas, hei-o fazer com muito prazer, mas acho que já tem uma visom geral de como eu sou… Mas ainda não me dixo para que revista trabalha: Letras de Hoje, A Voz do Escritor, Plumas e Teclas?
━ Bom, de facto não trabalho para nenhuma delas.
━ E logo? É que criaram alguma revista nova ultimamente e não fiquei a saber?
━ Não, senhor Altarote…
━ Então?
━ Eu trabalho para a companhia dos seguros A Sempiterna e vim para lhe fazer uma pesquisa sobre o seu grau de satisfação com a nossa apólice que o senhor tem connosco desde há quarenta anos…
Ali o rostro de Dom Virgílio Altarote mudou. Até pareceu que as pontas do bigode desciam levemente. Olhou arredor para comprovar que os outros participantes da tertúlia não deram conta da conversa. Parecia que não.
━ Senhorita, uma beleza como a sua não pode ser atendida como é devido num café como este. Com prazer responderei as perguntas da sua revista e, se quiser, até podemos fazê-lo jantando. Deia-me o seu número de telefone que já ligarei eu para si ━dixo então num tom alto demais para os outros o ouvirem perfeitamente━. E agora, lamento que tenha que ir embora tão cedo. Mas eu acompanho-a até a porta, que para isso sou um cavalheiro. Ah, e não esqueça deixar dous euros na mesa para pagar o chá.
© Frantz Ferentz, 2015
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