Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Gilles Deleuze
Escrever sobre um autor nada tem a ver com encaixar fragmentos dispersos por uma diáspora, para assim reconstruir uma identidade que existia antes do fluxo . Uma obra poética não é um quebra-cabeça a nos desafiar a inteligência para encontrar, sob o diverso, a unidade apolínia da obra. Uma obra poética não é um quebra-cabeça. Por isso, comentar uma obra poética , como ensina Deleuze, é como fazer um retrato em pintura: criamos uma perspectiva de acordo com nossas tintas. Mas é necessário que o retratado esteja ali presente : não aprisionado, mas em linha de fuga, e a possibilitar que o comentário que se faz também seja uma linha de fuga a toda pretensão de verdade última. Essa cautela espinosista vale ainda mais para uma obra poética como esta que Luís Serguilha nos oferece e desafia como singular caleidoscópio. Esta é a imagem que nos guia : ao invés de um quebra-cabeça, um caleidoscópio.
Há um conto de Borges no qual ele narra a história de um homem que adquire um livro diferente daquilo que a recognição acostumada, mesmal, rotula como um livro, pois o tal livro não estava contido nos limites de uma representação do que seja um livro. Disso logo se deu conta nosso personagem assim que examinou a obra : ao abrir o livro e ler uma página, ele o fechou para pensar no que leu. Depois, reabriu o livro para retomar à página recém lida. Porém, por mais que procurasse , não encontrava a tal página há pouco lida. Ele repetiu o experimento: leu uma nova página e fechou novamente a obra. Reabriu e buscou a página há pouco lida, mas nada…A página havia sumido da atualidade das páginas dadas. Nosso personagem tentou achar a primeira página, no entanto não a encontrava. Buscou a última página, contudo a última página não havia. O livro só tinha páginas do meio, e estas pareciam infinitas. Tais páginas não estavam contidas entre começo e fim, alfa e ômega. Elas cresciam pelo meio, como meio para leitura sempre nova. Mais do que de histórias, aquele livro era composto de acontecimentos para experimentais leituras. As páginas não contavam uma narrativa única, pois estas eram múltiplas. O livro era uma heterogênese. As páginas não formavam ordem linear, elas compunham uma série aberta . Como um animal, o livro crescia.
A leitura do livro “falar é morder uma epidemia”, de Luís Serguilha, nos coloca próximos a uma experiência semelhante àquela borgeana. Um livro-fluxo, assim nos parece o livro-poema de Serguilha.
Gilles Deleuze afirma que todo fluxo é como um rio que é mais veloz no meio e rói suas margens. Um livro-fluxo , por possuir apenas páginas do meio, escreve-se à velocidade do pensamento que desborda toda representação, e rói começo e fim. Um livro-fluxo é uma linha de fuga em relação às gramáticas, para assim afirmar sua poética agramatical ( pág. 29). Essa poética , quase uma apneia, está presente no livro-fluxo de Serguilha e no modo agramatical com que pontua e distribui ,nomadicamente, as partes do livro sobre o espaço do página.
O próprio autor, este “lobo-solitário” ( pág. 145) , às vezes propõe o que está a fazer, ao mesmo tempo que este fazer o faz. Ele tece um “ensaio labiríntico” ( pág. 120). Esse labirinto é onde o animal poético mora, como “poema-animal-vegetal-cósmico” ( p. 122). Esse labiríntico caleidoscópio é o plano imanente, um planômeno, de uma cerzida etopoética ( pág. 166).
Deleuze cita os biólogos ao afirmarem que a vida, antes de produzir uma mão diferenciada como direita ou esquerda, produz uma mão ainda não caracteriza como direita ou esquerda. Somente em um segundo momento determinado a mão rascunhada no plano imanente da vida se tornará direita ou esquerda. Essa mão anterior à dicotomia direita-esquerda não é uma mão indiferenciada . Ao contrário , ela é uma diferença no mais alto grau: mesmo na mão direita está essa mão , que se difere dela e da mão esquerda, sendo uma singular mão, uma hecceidade, não representável pela lógica binária. Essa mão também está na mão esquerda , porém não se confunde com sua forma, pois ela é apenas a simples potência-mão. Quando encontramos uma bifurcação no caminho e escolhemos um deles para seguir, necessariamente nos ausentamos daquele caminho não escolhido. Mas não é assim que procede a vida: ela própria é bifurcação e criação de caminhos , porém se mantendo em cada um deles, diferenciando-se de si mesma e estando , como causa imanente, em cada diferença sua que se torna uma bifurcação. Creio que o poema fabricado por Serguilha está num lugar semelhante: ele antecede as bifurcações que separam poesia e prosa, imagem e conceito, falar e morder. Seu animal poético também antecede as bifurcações entre gênero e espécie: Um “rigor babélico” ( pág. 12) assim se instaura. Os lobos-solitários andam em bando, em maltas ou grupelhos. Os lobos-solitários são companhias uns para os outros. O “veio espiralado” ( p. 16) do livro-fluxo de Serguilha faz companhia ao “Baphomet”, de Pierre Klossowski. O baphomet é pneuma anímico que desfaz a forma meramente subjetiva de eus líricos, performatizando uma “oratória desconhecida do corpo”(p.15) orgânico e estriado. Essa proximidade do livro-fluxo de Serguilha com o Baphomet de Klossowski celebra “a densidade dos fluxos”(pág. 26) ou um “anarquismo” ( p. 27) “sem Rei nem Regências”, como diria o lobo-solitário Manoel de Barros.
O estilo de Serguilha engendra uma rítmica liberta da mímesis, ensejando uma descrição cristalina de realidades que não preexistem à descrição. Como diz Manoel, um “afloramento de falas” nos parece a serguilhana epidemia. Falas do corpo e falas do cosmos, falas esquizos que muito nos custa calar. O poeta-Serguilha “transgeografa-se infinitamente nas holopalavras-espectrais” (p. 30). A holopalavra é aquela que não representa seu referente-objeto, ela o traz como seu corpo fantasmático e o dá a ver mais do que ao significante.
“O poema não se deixa capturar (120), adverte-nos o autor. O que não se pode capturar serve para contágios, agenciamentos, “afectação órfica” ( pág. 21). Por isso, ler Serguilha é afetar-se , como numa epidemia-afloramentos.
Há uma geografia da página neste livro-fluxo, pois o poeta não é um lírico ou um concreto, ele é um geógrafo que povoa desertos, espaços lisos. Distribui os blocos, mas sem reuni-los em uma unidade fechada. O livro-fluxo é um todo não totalizável, nisso nos lembrando o Uno selvagemente místico de Plotino (pág. 27): Caos-Germe ( pág. 30).
Ler o livro-fluxo de Serguilha também é se desterritorializar das estrias gramaticais que cerceiam o fluxo da leitura em uma determinada forma “acostumada”, sedentária. Por isso o trabalho de reinvenção sinalética que o fluxo pede, sobretudo no emprego de travessões e parênteses, além da não segmentarização do fluxo em capítulos ou subcapítulos exteriores uns aos outros. O texto é um continuum em fluxo espiralado, movimento aberrante de um pensamento acentrado, porém inteiro nas margens.
Outra imagem suscita o livro de Serguilha: o da dobra. Em toda dobra algo está implicado virtual e intensamente, e é este algo que o livro desdobra, extensivamente. A passagem do virtual do espírito à atualidade da letra é a criação do sentido da própria obra enquanto animal poético vivo. A vida é toda dobra, desdobra e redobra. O próprio cérebro é dobra sobre dobra , para assim implicar o espírito enquanto ideia do corpo. Se esticarmos um tecido dobrado , desdobrando-o, chegaremos a um estado no qual o tecido se torna liso. Na gênese de toda dobra não estão profundidades românticas ou alturas idealistas. Na gênese de toda dobra está uma superfície enquanto membrana entre o dentro e o fora, o subjetivo e o objetivo. A diferença entre um tecido e um livro é que o tecido se deixa esticar totalmente, ao passo que um livro-dobra aponta para o horizonte aberto como o seu desdobrar infinito, sem perder o infinito de potência que ele envolve. Como no ´paralelismo de Espinosa, um livro-dobra expressa-se como extensão escrita e pensamento intenso não redutível aos significantes da língua.
Antes de tudo, a leitura do livro-fluxo de Serguilha é uma experiência que nos põe no limite da própria leitura: como o rio de Heráclito, ele nos desafia a travessia. Entramos e nossos pés não acham o fundo. E quando nadamos até o meio, arrasta-nos a força desterritorializante do texto inaprisionável. A melhor forma de se fazer tal travessia-leitura? Deixar-se levar.
Elton Luiz Leite de Souza é filósofo, escritor, crítico literário e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
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