Kalahari, de Luís Serguilha, dá continuidade a uma das poéticas mais heterodoxas, radicais e solitárias da literatura portuguesa. Preside à sua criação a dádiva absoluta a uma causa, a convicção e a crença num caminho escolhido e trilhado por entre cepticismos e rejeições, uma atitude estóica que suporta uma poética rude, num corpo a corpo com a linguagem que lhe serve de meio vital e de obstáculo a transpor. Em cerca de meio milhar de páginas compactas, sob a mancha gráfica da prosa, o poeta, dando sequência ao livro anterior, KOA’E, empreende um intenso exercício estético que parece bastar-se a si mesmo, ignorando ostensivamente o leitor, com a excepção do poeta enquanto leitor de si mesmo, leitor primeiro e decisivo desta obra que aposta tudo na expressão hiperbólica do “eu” profundo em seu cruzamento vital com o mundo em sua dinâmica absoluta. O único leitor ideal desta poesia é pois o seu próprio criador, visto que ela imana do que há de mais interno da sua visão do real. Exprimir-se, exprimindo a heterogeneidade existencial, recorrendo a todos os materiais literários e extra-literários que lhe permitam fazer de cada sua obra uma amostra do mundo, um emblema da existência, é a sua meta e o seu método. Claro que estamos, antes dos fundamentos gnosiológicos que enformam esta poesia, perante um poeta e, por conseguinte, como qualquer verdadeiro poeta, ele procura antes de tudo o mais criar uma linguagem nova ou introduzir uma novidade na linguagem; a marca da sua personalidade criadora. Há pois uma infinita fala energética que perpassa por estas formas poéticas construídas sob o signo da expressão torrencial, cuja imagem primeira é realmente a vastidão do deserto como poderia ser a vastidão do mar, como assinala E. M. Melo e Castro sobre a poesia do nosso autor. Sendo a escrita de Luís Serguilha um poema contínuo, tendencialmente ilimitado, que avança regularmente em expansão e profundidade, eu, enquanto seu leitor, entro no livro frequentemente ao acaso e, assim, cada contacto com esta poesia revela-se uma experiência única de leitura, colhendo dela uma sensação aleatória de surpresa e revelação, nos planos da linguagem e da realidade que ela convoca. Neste caso, seguir o fio da ordenação habitual não me levaria literalmente a lado nenhum, porque é essa precisamente a intenção do escritor, deixar o seu leitor algures num ponto incerto entre o espaço e o tempo, recriando pela escrita poética uma experiência híbrida do espaço-tempo.
O poeta rejeita a ordem pragmática da comunicação, expressa-se em transe, onirismo, delírio e vertigem, irrompendo a sua linguagem entre manchas de claridade e uma luminosidade alucinada pelo sol a pino do deserto, onde a visão e o visto se fundem numa ordem que decompõe o real e o dá a ver segundo uma subjetividade inventiva e recriadora. Expressionismo, Futurismo, Surrealismo, Cubismo, Simultaneismo, Neo-Barroco, Neo-Gótico, parecem ser matrizes, e matizes, plausíveis para compor esta arquitectura verbal, formas estéticas de que o poeta se socorre para dar corpo ao seu poema gigantesco e proteiforme, subordinado a uma acção criativa que balança entre o épico e o agónico, entre o excesso e a perda. Da lição modernista interioriza o desregramento do sentido e dos sentidos, da voz e da fala, embora se possa considerar, globalmente, que se contém dentro da circunscrição lábil de uma semântica e de uma sintaxe vistas em obliquidade e perda. Ainda assim, atrás do irrepresentável e da aparente recusa da mimesis do real, podemos entrever uma shopenhaueriana vontade de representação, subordinada a uma proliferação das formas barrocas e góticas espiraladas, cuja rosácea gótica parece suportar a ordem emblemática que o inspira e orienta. O livro torna-se assim infindo e labiríntico, biblioteca e mundo, onde se pode notar a marca inexaurível de criadores como Mallarmé ou Jorge Luís Borges; a discursividade torna-se centrífuga e o sentido do texto parece sistematicamente alucinar, extravasar das suas margens semânticas e dos horizontes experienciais do leitor, demonstrando que Luís Serguilha pretende nas suas obras indiciar a dimensão profunda e multímoda do real, numa recusa sistemática do poema enquanto objecto descritivo, diegético ou micro-narrativa. O texto, na lição de Ovídio, aparece ante nós enquanto elemento metamórfico por excelência, e de Fernando Pessoa privilegia, para além do primado da sensação como forma primeira de ligação ao mundo, a técnica interseccionista de planos, que faz com que as suas imagens se apresentem como movimentos fílmicos, segundo uma ordem gradativa ascendente e descendente, uma fonografia em movimentos contínuos e sobrepostos que parecem continuar para além do fim material das frases e do poema, numa vibração ondulada, em ecos e estremecimentos.
O poema é outrossim encarado enquanto cosmogonia, ele próprio se dá enquanto miniatura do mundo que visa alegorizar e simbolizar, e para isso o poeta socorre-se de todos os saberes que a humanidade lhe foi oferecendo ao longo da sua viagem civilizacional: Dos pré-socráticos como Heráclito, Parménides, Anaxímenes, Anaximandro, Epicuro, Zenão, Lucrécio ou Empédocles até à Física Quântica, dos clássicos, filósofos e poetas, como Platão, Aristóteles ou Horácio até às mais modernas experiências dos fractais (“o uivo amplia o fractal do mundo”1), tudo isto absorvido pela sua peculiar linguagem poética, que na sua abrangência totalizante procura suportar dentro de si a infinda diversidade da existência, em excertos de uma dicção hiperbólica e idiossincrática, como se pode ver: “Um arco de garras embrionárias satura-se nos HOLOFOTES […], feixes de laser, ondas-partículas […]”2. Dos poetas modernos, para além dos já referidos, procura aqueles cujas poéticas mais se aproximam da arquitectónica da sua composição, os poetas (ou ficcionistas poéticos como Joyce) da vasta respiração, da frase de longo fôlego, do verso amplo, do tom maior, do poema enquanto estrutura viva, orgânica: de Ezra Pound a Eliot, de Walt Whitman a Allen Ginsberg, do Baudelaire dos Pequenos Poemas em Prosa ao Álvaro de Campos das Grandes Odes.
Como referimos, o poeta capta os materiais da referência em todos os campos do saber: ciência, cultura, literatura, arte. A sua escrita poliédrica, multifacetada, verdadeira “aventura caleidoscópica”3, como lhe chama Fernando Segolin, apresenta-se como uma enorme tela verbal cuja composição passa muito pelos ensinamentos da música e da pintura. A vertente fortemente auditiva remete-nos para a imagem alegórica de uma complexa e longa sinfonia em seus andamentos, ritmos, modulações, sonoridades, harmonias, gradações, intensidades, abrandamentos, silêncios, arranques, cuja compreensão viva só pode ser captada plenamente quando passamos pela experiência de ouvir o poeta dizer excertos das suas composições, também elas espécie de “congeminações das gigantescas harmónicas de Villa-Lobos”4, “nos faróis SINFÓNICOS dos contrários”5.
A construção cinematográfica a que já fizemos referência é igualmente uma lição fecunda desta visualidade textual, mas parece-nos ser a pintura o elemento mais vivo que preside à sua visão poética. As pinceladas agrestes de Van Gogh são a primeira imagem analógica que nos surge, perante a sua escrita intensa, pastosa, saturada, de manchas e tonalidades pesadamente carregadas, verdadeira “paleta cromática”, interpelando o leitor pela consistência rugosa do traço, da luz, da coloração. Esta equivalência estética é complementada e confirmada por uma imensa galeria de grandes pintores que perpassam pelos textos: para além de Van Gohg, acima referido, são convocados, Caravaggio, El Greco, Dali, Kandinsky, Klint, Paul Klee, Miro, Picasso, Mondrian, Munch, Magritte entre tantos outros, que parecem conferir à massa poemática a base cromática, pictórica e geométrica que lhe subjaz, construindo a “poesia-tela”6 de que fala Daniel de Oliveira Gomes. Estes pintores, sobretudo os modernos, concorrem para a abstração do sentido que percorre os livros de Luís Serguilha, a que se associa este espaço-tempo alegorizado pelo deserto, lugar de encontro e de perda, de escassez e de excesso, de distância e de intimidade, lugar aberto mas fechado por ausência do Outro, território de desterro e de regresso a si mesmo. Assim, estamos perante a extensa página nua onde tudo é dito e nada é representado, pois o poeta constata na sua laboração uma absoluta impossibilidade de representação de um real sempre em deslocamento, transfiguração e metamorfose.
O poema de Luís Serguilha assenta pois numa estrutura dialéctica entre o racionalizado e o impensado, entre uma interioridade alucinada e uma exterioridade solar, entre o subterrâneo do sentido e o horizonte da construção estética. A corrente poética assume-se como um ser movente, dinâmico, em travessia; o deserto, como o poema, é pois um lugar de passagem, de errância do ser e da linguagem. O poeta tem consciência desse “corpo em instabilidade. Corpo movediço”7, em simultâneo construído meticulosamente enquanto teia que se expande, irradiante pelo infindo horizonte de Kalahari. Daí que o poema recuse o constrangimento do verso e desemboque na sua origem primeira, a prosa, como nos indica Agamben8; a vasta página do deserto é a matriz adequada para a irrupção dessa prosa em extensão e alargamento, rumando por caminhos à sorte como se ora mesmo abertos pelo nomadismo babélico. Poesia por conseguinte que mergulha as suas raízes na prosa, prosa que recorre aos materiais e às técnicas da poesia, lugar indiviso onde a palavra vale por si mesma. Perante esta longa hesitação, onde cedem a semântica normativa, a lógica, a verosimilhança mimética, parece que a incomensurabilidade do deserto prefigura a agonia da linguagem comunicativa, e é aqui que Luís Serguilha instala o seu texto híbrido, hiper-género, nesse lugar silente e germinativo, porque “onde acaba a linguagem, começa, não o indizível, mas a matéria da palavra”9. Estamos, para nos socorrermos também dos ensinamentos de Gérard Genette e do proême de Francis Ponge, perante um estado poético que é antes de mais um estado prosético, onde se conjugam dois planos habitualmente opostos: “a polissemia do poema e a polimorfia da prosa”10. Há na escrita de Luís Serguilha uma indissolubilidade entre poesia e prosa que assenta numa exímia técnica compositiva onde um aparente automatismo de escrita é suportado por uma poderosa capacidade de construção. Os materiais requerem esta forma, o texto apresenta-se segundo a sua necessidade interna, respira segundo a sua vívida organicidade.
Outra das marcas mais impressivas da sua escrita é a invenção de uma multímoda nominalização, como se essa obsessão de transpor o mundo para os seus livros passasse por uma essencial necessidade de dar nome ao inominável ou ao ainda não nomeado. De certa forma, assistimos a uma técnica cratilista de correspondência entre o nome e a coisa nomeada e essa palavra no texto ocupa o lugar da coisa, criando assim uma sensação cinemática no leitor: “um transferidor cinemático repleto de alvenarias e de policristais ressurge”11, dá-se conta o poeta. Ele é então o onomaturgo que em arrebatamento verbal levanta da página uma renovada nomeação, que é uma criação paralela ao mundo e à linguagem habituais. Na senda de Mallarmé, também ele tem a secreta esperança de corrigir a social imperfeição da língua, dar-lhe uma renovada fisionomia. Frequentemente, ultrapassa a habitual relação entre o objecto e a palavra que o identifica para erguer a palavra enquanto objecto autónomo, o que como se sabe é uma das traves mestras da condição poética. Construir nomes, como refere Gennete no seu Mimologiques, não é um acto fácil, “é um trabalho, é portanto uma profissão”12. Sob a aparência do caos semântico, ergue-se no texto de Luís Serguilha uma ordem peculiar, necessária ao tipo de criação, ao tipo de linguagem. Em pensamento emotivo, o poeta procura a vastidão despojada do deserto para instalar o seu mundo paralelo, em derramamento e êxtase. Por alargamento, analogia, associação, injunção, conjunção e aproximação vai o poeta levantando o seu prosema, infindo ou não contável como os infinitos grão de areia do Kalahari; também a sua uma “língua do deserto”13.
Desprende-se da obra de Serguilha uma espécie de mecânica gravitacional, procura atrair ao livro a densidade do mundo e este parece ressurgir aí, em espessas e palimpsésticas camadas, estruturas sobrepostas de sentido, em desdobramento, complementaridade e obliquidade. Na leitura destes textos alegoriza-se de certa forma ante nós a penalização babélica, entre o mito e esta escrita parece verificar-se uma homologia profunda, que se sente no entrechoque das palavras em tropel, na ânsia desmedida de exprimir-se, no paradoxal e dramático impulso de dizer, em simultâneo com o fechamento do sentido.
Este texto deixa pois o leitor em sua solidão primeira, quebra-lhe o fio da inferência e da elucubração, frente a frente uma linguagem que pelo excesso decai no silêncio e um silêncio que não integra no seu arco esta palavra escrita. Luís Serguilha questiona assim implicitamente todo o horizonte da recepção, os seus longos livros-poema ou poemas-livro partem do silêncio do deserto e nesse mesmo silêncio desembocam; literalmente kantiana essa finalidade sem fim: linguagem enquanto forma de mudez e incomunicabilidade: por excesso, por desmesura.
Que resposta para a questão colocada por Daniel de Oliveira Gomes no seu posfácio?: “o livro que não se lê, o que é?”14. Blanchot, citado pelo ensaísta brasileiro, diria que é algo que ainda não foi escrito. Mas os livros de Luís Serguilha estão aí, escritos, vivos, incessantes; plenos em suas ressonâncias, em seus silêncios, em seus sentidos circulares, a rasar o incomunicável.
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Fernando de Castro Branco, Duas Igrejas (1959). Doutor em Literaturas e Culturas Românicas, Especialidade de Estética Literária, com a Dissertação de Doutoramento Adolfo Casais Monteiro e a Doutrina Estética da Presença, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Publicou o ensaio Poética do Sensível em Albano Martins e vários livros de poesia: Alquimia das Constelações (2005), Nome dos Mortos (2006), Estrelas Mínimas (2008), Plantas Hidropónicas (2008), A Caminho de Avoriaz (2010), Assinatura Irreconhecível (2011), Carta a Mim Mesmo (2016) e Desde Portugal (2016). Em 2009 reuniu a poesia até aí trazida a público no volume A Carvão. Publicou também poemas, contos e ensaios em revistas literárias portuguesas e estrangeiras. Está representado em múltiplas antologias poéticas.
1 Luís Serguilha, Kalahari, São Paulo, Ofício das Palavras Editora, 2013, p. 32.
2 Luís Serguilha, Kalahari, ob. cit., p. 33.
3 Fernando Segolin, “A Poética Rizomático-Holográfica de Luís Serguilha”, Prefácio a Kalahari, São Paulo, Ofício das Palavras, 2013, p. 12.
4 Luís Serguilha, Kalahari, ob. cit., p. 388.
5 Idem, p. 33.
6 Daniel de Oliveira Gomes, “Ser (PELO MAR DESERTO) Guilha, Posfácio à 2º edição de Kahalari, Edições Esgotadas, 2015, p. 465.
7 Luís Serguilha, Kalahari, ob. cit., p. 35.
8 Cf., Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, Lisboa, Edições Cotovia, 1999.
9 Idem, ob. cit., p. 29.
10 Gérard Genette, Mimologiques, Paris, Éditions du Seuil, 1976, p. 332.
11 Luís Serguilha, Kalahari, ob. cit., pp. 32 e 33.
12 Gérard Genette, Mimologiques, ob. cit., p. 15.
13 Idem, p. 275.
14 Daniel de Oliveira Gomes, “Ser (PELO MAR DESERTO) Guilha, ob. cit., p. 504.
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