Tinha o cabelo branco e muito encaracolado, um cabelo que rodeava o seu rosto movendo-se como fios de chuva agitados no vento. Era magra, mas duma magreza elegante e delicada. Era desse tipo de pessoas às que olhavas com gosto, atraída por algo indefinido que não era o seu perfume, a sua beleza, a sua elegância… mas era tudo.
A primeira vez que a encontrei, eu caminhava rápido para chegar a qualquer lugar desinteressante. Não a conhecia mas tive que parar na sua frente, ela só me olhou, com o sorriso nos olhos e na boca cumprimentando como escusando a minha pressa. Juro que vi como a lua ficava pendurada do seu rosto enquanto eu seguia pesarosa o meu caminho. Não é metáfora. Levava uma lua pendurada do rosto e a luz de prata refletia no cabelo agitado.
Talvez aquele dia ainda não senti o medo. A pressa tinha-me deixado completamente inútil para os sentidos. Nem medo nem surpresa. Só um aquele de estranheza que ficou pairando por cima da minha consciência. Aquele foi o primeiro de muitos acasos em que encontrava inexplicavelmente com a mulher da lua.
Naquela altura tinha o vício de investigar vários jornais ao dia e o ânimo começava a azedar-se. Caminhava amarga, sempre com pressa, desconfiava, como o resto, da magia da vida. Era mais uma fantasma numa cidade de fantasmas invisíveis.
Por isso, mesmo no meu estado de inconsciência, acabei por reparar que aquela mulher com uma lua pendurada no rosto aparecia cada vez mais no meu caminho.
Naquele mundo de covardes e assassinos em que vivia era fácil cair na paranoia. Cada dia no jornal mergulhava na podrémia dum mundo que parecia não ter limite para a maldade. Do alto da pirámide jogavam bosta e restinhos de comida. Nadávamos no meio daquela imundícia tentando não ficar demasiado sujos nem demasiado famintos. Escapando à tentação de roubar os restos do do lado.
Por isso acreditei que a mulher da lua era uma psicópata. Porque se movia isolada do lixo. E aquela sua indiferença com a fealdade do mundo tornava-a perigosa.
Por isso acreditei que era psicópata, que me seguia com um plano premeditado e desconhecido e que aconteceriam cousas terríveis comigo. E decidi agir primeiro. Pegá-la no descuido e tirar vantagem. Mas cada vez que me aproximava dela, sorria do mesmo jeito que a primeira vez, cumprimentava como entendendo tudo e seguia o seu caminho.
Aquilo alimentava a paranoia, ficava com medo mas também com raiva polo descontrolo. Passei a sair à rua espreitando ao meu redor na espera de encontrá-la. Mas como se pudesse prever os meus passos, fugia dos lugares em que eu andava e, nos poucos momentos em que esquecia a personagem, aparecia de novo com a sua meia lua de prata e aquele sorriso que me dizia algo indecifrável.
Passamos meses como gato e rato que se desafiam. Embora o desafio parecesse unidireccional e, em certa medida, inútil.
Passaram meses de encontros breves e inesperados em que ficava cada vez mais surpresa e menos atemorizada. Ficava fascinada com aquele cabelo branco, longuíssimo e riçado que se agitava mesmo sem vento. Mesmo a lua pendurada do seu rosto começou a tornar-se apenas uma anedota, como quem tem um sinalzinho bem encima da sobrancelha e é uma marca mais da sua identidade.
Tinha passado quase meio ano de encontros e percebi, pola primeira vez, que deixara de ler jornais cada manhã. Imperceptivelmente, cada dia ia dedicando menos tempo àquela actividade diária até chegar quase a desaparecer da minha vida.
E também sem dar-me conta, conseguia evitar o lixo jogado da pirámide. Já não comia tantos restos, havia maneira de alimentar-se sem acodir a eles. Não sei como aconteceu, ou em que medida aquela mulher de lua pendurada no rosto tinha a ver com a situação nova. Mas sei que quando percebi isso, deixei de ter medo.
Todos os encontros eram da mesma maneira. Até que um dia um pequeno movimento mudou a cena. A mulher deixou cair um papel do meu lado. Sabia que era para mim e não havia nada de casual nele. “Estás pronta”. Sim, estava pronta. Sabia que era o momento.
Segui aquela mulher que tanto me tinha apavorado com uma confiança extraterrestre, uma fé sobrenatural. Estava pronta.
Não sei qual foi o caminho que figemos. Não poderia repetir nem o primeiro passo. Mas sei perfeitamente quantas mulheres de sorriso nos olhos e lua pendurada íamos encontrando. Mulheres de cabelo vermelho ou cabelo preto, magras e gordas, grandes e pequenas. Todas de lua pendurada e olhos faladores. Dirigida pola minha particular Beatriz atravessei caminhos cheios de todo tipo de mulheres pecadoras: luxuriosas, suicidas, sábias em excesso, airadas, vagabundas, amantes e amadas… Todas com a mesma lua pendurada e com sorriso nos olhos e na boca.
Não sei como, chegamos a um paraíso. Um lugar perfeito que sou incapaz de descrever. Poderia inventar o meu locus amoenus, um lago de águas puras ou pássaros cantores. Poderia mentir e falar de mares e ar fresco e límpido. Mas não era nada disso e era tudo. A minha guia falou por primeira vez com uma voz de mulher muito mais nova do que semelhava: “Este é o tesouro que ganhache”. E desapareceu.
Fiquei lá. E estava em casa. De novo em casa, com os mesmos móveis e as mesmas paredes. Com os mesmos limites. Eu sei bem qual foi o tesouro que ganhei.
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