Lindo este evento chamar-se Raias Poéticas. Três continentes traçam raias onde novos limites, fronteiras se constituem por semanas em torno da língua, letra, poesia, artes. Estamos num momento delicado em que as raias traçam um limite de um lugar que não pode ser e não deve ser ultrapassado, demarcam um espaço virtual intercontinental para nos ajudar a não passarmos das raias, dos limites, não excedermos no pandemônio da pandemia e virarmos sofrido manicômio e que raias luminosas que dividem o espectro solar tragam novos raiares dos dias que reforcem as raias, linhas ou sulcos de nossa mão para afirmar a vida.
Mas não podemos fugir da raia, evitar confronto, compromisso, dificuldade. A quarentena imposta pela pandemia do COVID19, desde março de 2020, que certamente para muitas gerações estabelecerá um outro tempo de AC e DC – antes do corona e depois do corona – tamanha a universalidade do medo da morte de si e do outro que trouxe, ao menos para aquela maioria que está acreditando na virulência contagiante e na gravidade da doença que traz que agora já levou a morte até hoje mais de 90000 pessoas no Brasil.
Esse tempo precisa, mais do que nunca, do princípio esperança como norteador em meio à crise profunda que fez o mundo parar e sacudir o tempo, e paradoxalmente ter no distanciamento social e no isolamento o desejo de salvar a si e ao outro, uma inclusão inédita do social por meio de uma tecnologia que vem salvando as redes de relação e de trabalho. Vindos da destruição ecológica de 2019, estamos imersos em tempos de crise e destruição onde a permanente reconstrução da esperança torna esse presente, motor de novos devires. Precisamos da ilusão de um futuro, de uma esperança teimosa para que de brincadeira ou de verdade possamos continuar dançando. No caso do Brasil, enfrentamos a necropolítica de um gabinete do ódio que modela um líder que nega a realidade e brinca com a morte, contra a humanidade e a sobrevivência de um povo, cujo veículo político e estratégico é um empobrecimento da linguagem, num projeto ideológico de pura destruição. Mas esse ódio destrutivo e autodestrutivo traz em seu bojo a necessidade de uma transformação que afirme um novo pacto social e político que diminua a gritante desigualdade social e preserve a democracia como forma de sobrevivência.
Temos visto uma transformação inédita da psicanálise, com atendimentos exclusivamente virtuais, a continuação dos cursos e trocas on line em lives, com novas plataformas de contato, onde temos tido de reinventar os circuitos afetivos, a maneira de engajar o corpo, para preservar a fala e a escuta como o caminho de acolher as angústias impensáveis que este momento da humanidade trouxe com esta súbita invasão do real inesperado do vírus. Temos visto uma democratização plural interinstitucional no campo da psicanálise, onde a generosidade vem fazendo parte fundamental do princípio esperança.
As 9as. Raias poéticas certamente fazem parte importante deste novo tempo de vir a ser, de redescoberta de nascentes.
A minha contribuição para isso veio com um último sentido das raias, o de linha, traço, risca. Quero falar sobre a origem da linguagem pela contribuição pioneira desta que se tornou uma espécie de avatar meu, pelos anos de pesquisa que dediquei a sua vida e obra, Sabina Spielrein, psicanalista e psiquiatra de origem russa que viveu entre 1885 a 1942. Nesse sentido as raias seriam os primeiros fonemas que na lalação do bebe inscrevem a linguagem em seu momento autista de puro prazer e jubilo para si mesmo na emissão e sem mensagem para o outro, ainda que seja na presença e causada pela presença do outro. Minha coronial netinha está neste momento de vida e minha filha generosamente me manda vídeos dessa aquisição agora entre os 3 e 4 meses de vida. Posso ver claramente o estímulo da mãe e o gozo para si mesma da linguagem nos , ö, o, a, e rrrrrr que emite, neste circuito pulsional entre mãe e filha.
Entre 1920 e 1923, Spielrein publicou três textos fundamentais e pioneiros da relação da psicanálise com a linguística nascente. Fruto das observações de sua filha e das crianças do Instituto Rousseau em Genebra. É deles que trago estes traços.
Nós humanos falamos. Quem criou a linguagem verbal? Foi o homem adulto ou a criança? A criança é capaz de criação espontânea na linguagem ou ela simplesmente se apropria da linguagem verbal fornecida pelos adultos, deformando-a? Essa questão bastante polêmica até hoje, não foi solucionada.
A linguagem surge com a ajuda do outro, do adulto. A mãe ou a ama, a pessoa que amamenta, não oferece só o leite através do seio, mas o seio através do leite que vai se constituir num objeto que se opõe à boca da criança e dando-lhe, aos poucos, a primeira noção de objeto oposto a si e de um si separado do objeto. Esse seio, primeiro objeto investido de desejo, proporciona à criança, além de prazer, a oportunidade do exercício de mamar, precursor do que ela chama de primeiros fonemas, o mamama e o papapa. O primeiro, quando a criança mama, o segundo, quando larga o peito. O balbucio revive a sensação da coisa. Não precisamos supor nenhuma imagem clara na cabecinha infantil, não é preciso que seja a imagem da mãe ou do ato de mamar, podem ser sensações bastante obscuras de algo quente, macio (no contato com o corpo da mãe), fluido, de saciedade etc. Naturalmente, a criança sempre vai querer ter essas sensações, assim ela instintivamente busca colocar sua pequena boca em uma certa posição que produz os sons acima mencionados. A ligação entre os sons “mã-mã” e as sensações correspondentes se torna, assim, cada vez mais profunda, ela se torna uma constante. A criança vai buscar gerar esses sons a fim de evocar um grupo de sensações conhecidas e já esperadas. Mas como determinados sons são vinculados a conteúdos bastante definidos, às sensações, e talvez já às representações, Spielrein afirma que já se pode falar em “palavras” que indicam ou significam esses conteúdos, ainda que em um estado autista, a palavra voltada para si mesma.
Aquilo que hoje em dia chamamos de lalação inicial da criança diz respeito principalmente ao desejo e o apelo à satisfação e à saciedade deste. E isso Spielrein tem como um universal, já que os fonemas emitidos a partir do mamar e deixar de mamar estão presentes em quase todas as línguas nas palavras que designam pai e mãe. Ela prefere os sons que foram especialmente estimulados em seu desenvolvimento pelo ato de mamar.
O outro que oferece o seio interpreta o que a criança quer e dirige-se a ela com uma forma de falar específica, o que hoje conhecemos com o nome de “manhês”, que é o adulto evocando de sua própria vida psíquica infantil, a partir de sua própria memória, da maneira como foi tratado pelo seu antepassado, o que lhe dá a entonação do “manhês” com que se dirige à criança. Esse é o primeiro sentido da constatação que o antepassado mora na criança e a criança mora no antepassado. Portanto, a linguagem só se instala pela convocação do outro adulto por meio do apelo da criança. O estado de desejo é o impulsionador de formas linguageiras não verbais, ligadas ao choro. A língua nasce do inconsciente. Porque nasce do inconsciente das mães e amas que se adaptam à capacidade de criação linguística da criança, estimulando os mecanismos linguísticos herdados dos antepassados. A língua nasce, portanto, entre a criança e o outro, entre a criança e a criança redespertada no adulto. A língua nasce da inter-relação entre o bebê e a mãe ou ama.
Mas antes mesmo dos fonemas “ma” e “pa”, a linguagem se apresenta em suas formas não verbais, como melodia, ritmo, intervalos de silêncio, mímica, gestos, linguagem visual. A linguagem verbal se instala na criança através do outro e posteriormente se torna predominante, mas traz em si sua origem não verbal. Se ela for apenas linguagem verbal, será descorticada, ou seja, cindida de sua fonte cinestésica nos movimentos corporais e das imagens desses movimentos e do prazer que os mesmos dão à criança. Mas se a linguagem permanecer apenas nos seus primórdios como linguagem autoerótica destinada a si mesma, ela permanece autista, o estado inicial da linguagem. A partir da articulação da linguagem com a abertura ao outro, ao mundo, momento em que a linguagem se torna heteroerótica, na percepção desse outro e do mundo por meio do princípio do prazer e do princípio de realidade, pode-se conceituar os três tipos de linguagem: a linguagem autista, destinada a si mesma, a linguagem mágica, destinada ao outro, mas onírica, carregada de interpretação fantasística, de desejo do mundo, na qual a palavra recebe um superssignificado que conjura a realidade, e a linguagem social, destinada à comunicação com o outro, de quem se percebe a dependência, e capaz de suportar adiamento e frustração, levando em conta o mundo por meio do princípio de realidade. Somente com o advento da linguagem verbal, o homem se torna um ser social. O pensamento de Spielrein permite recolocar algo sobre a origem do social: no início, era o verbo, diz a Bíblia, referindo-se ao verbo criador do mundo emitido por Deus. No início, era a ação, diz Freud ao substituir a palavra divina pelo assassinato do pai primevo como matriz de criação do social. Sabina Spielrein aponta que no início do verbo há uma ação específica: o mamar, origem do pensamento e da linguagem.
O afastamento do outro enquanto objeto de prazer e a alternância entre presença e ausência, afastamento e aproximação, contribuem não só para o surgimento da linguagem, mas para a aquisição da noção de tempo pela criança Assim, a aquisição da noção de espaço se torna primeira em relação à aquisição da noção de causalidade e a aquisição da noção de tempo é a última a ser adquirida pela criança. A repetição tem um papel crucial para a criança, que só adquire e assimila o novo passando pela repetição e a adesividade ao antigo, o que aparece também nos adultos afásicos por doença que danifica o aparelho de linguagem.
A língua é formada mais precisamente no pré-consciente e apresenta semelhanças com a imagem visual do sonho. O conceito de duração temporal é anterior ao de direção temporal tanto na língua como no pensamento onírico. A linguagem verbal, assim como o sonho, cria suas representações a partir de materiais pré-conscientes. Há também na organização da linguagem incipiente da criança o mesmo princípio da linguagem dos sonhos, onde o mais vivo da representação onírica é o mais valoroso afetivamente. A criança repete uma palavra (assim como uma frase) duas vezes como se fosse importante destacar aquilo que lhe é importante. Aqui surge a ligação com base no interesse, portanto, trata-se de uma relação de natureza psicológica e não biológica, ou seja, trata-se de uma relação afetiva. Conclusão importantíssima. Não é o acaso que determina a linguagem incipiente, mas a vida afetiva e psíquica e não a biológica e epistemológica., Nós pensamos principalmente de forma subconsciente, pois apenas o início e o fim de nossos pensamentos são conscientes para nós, o resto decorre no subconsciente. Sozinho, o pensamento subconsciente é suficiente para uma certa adaptação a este mundo, mas logo perderia o caráter de pensamento criativo, pois a disposição para criar alguma coisa, para fazer alguma coisa no mundo, o direcionamento total e a concentração sobre as funções da realidade faltam ao pensamento subconsciente, Apenas por meio da colaboração entre o pensamento consciente e o subconsciente é possível iniciar uma obra criativa neste mundo: o pensamento consciente precisa capturar e utilizar aquilo que o pensamento subconsciente nos oferece.
Como ar do tempo do interesse pela origem da linguagem, em 1915, durante a primeira guerra, Ferenczi no front escrevendo Thalassa (catástrofe) e Freud escrevendo um manuscrito sobre as neuroses de transferência especulavam sobre a origem filogenética da linguagem ligada a Era Glacial quando saindo dos tempos paradisíacos do ciclo sexual, a sexualidade e a angústia surgiram ligadas a sobrevivência e a transformação do sexual em sexualidade para fazer frente aos tempos difíceis simultaneamente à organização centralizadora do social na figura de um chefe primevo.
A poesia, o lapso, o ato falho, o tatibitate musical, o non sense provem deste gozo inicial e redescobrem o prazer da língua no ritmo e corporeidade não significativa, na desconstrução do simbólico. Foi o que Lacan nomeou lalangue 50 anos depois de Spielrein.
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Renata Udler Cromberg
Texto lido na mesa nº 13 do Raias Poéticas, edição online.
Referências Bibliográficas
Spielrein, S. (1920) Sobre a questão do surgimento e o desenvolvimento da linguagem oral, in Sabina Spielrein 2, São Paulo, Ed. Blucher, no prelo.
Spielrein, S. (1922) O surgimento das palavras infantis papai e mamãe – Algumas observações sobre diversos estágios no desenvolvimento da linguagem, in Sabina Spielrein 2, São Paulo, Ed. Blucher, no prelo
Ferenczi, S. Thalassa – Ensaio sobre a teoria da genitalidade, São Paulo, Martins Fontes,, 1990
Freud, S., Neurose de transferência: uma síntese (manuscrito recém- descoberto), RJ, Imago, 1987
Renata Udler Cromberg, Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pos-doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, professora convidada do curso de Teoria Psicanalítica do COGEAE/PUC – SP e autora de Paranoia (col. Clínica Psicanalítica), Cena Incestuosa (Coleção Clínica Psicanalítica) e Sabina Spielrein, uma pioneira da Psicanálise, obras completas, vol.1 e de Sabina Spielrein 2 (no prelo).
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