- Filosofia e tradição.
Vi uma criança levando uma luz.
Perguntei-lhe de onde a trazia
Ela apagou-a e disse-me:
“Agora diz tu para onde se foi”
Hasão de Basra
Diz literalmente Marinho no texto intitulado Historicismo e verdade1:
“O não haver sobre certos acontecimentos e homens passados documentos suficientes dá mais decididamente aos historiadores a ilusão de reconstruirem com verdade o já vivido. Mas quem pudera explicar a própria vida, quanto mais a que outros viveram!”
E mais adiante diz:
“A história, esse romance do passado, é, todavia, necessária àqueles cujo espírito se não libertou para a busca direta da verdade. O animado do sério amor da verdade já só à verdade procura; a verdade para esse não se encontra nos escritos, palavras ou acções dos passados, contemporâneos ou vindouros. A verdade encontra-a quem verdadeiramente a procura, não quem a procura indiretamente através das obras de qualquer espécie dos que outrora a procuraram”
Não nega Marinho a utilidade da história, desde o momento em que esta seja um ponto de referência para uma hermenêutica em que a história mesma se dissolva como feito positivista. A crença na história como lugar imanente da verdade humana, aparece-lhe a Marinho como uma alienação mais da consciência contemporânea. É mais uma forma de ideologia, uma forma degradada do mito, que se apresenta como verdade e que constitui a forma dóxica dominante. Isto tem importantes consequências no desenvolvimento da filosofia em vários sentidos:
- Por um lado na maneira de preterir a responsabilidade do homem (também dos filósofos) da sua realidade sincrónica, presente, que não pode evitar deslocar sempre para um passado melhor ou prolongar-se cara uma projeção futura de carácter progressista.
- Por outro nas conceções assentes na expressão “cristianismo histórico”. Aqui fica patente que o cristianismo não pode ser algo “histórico” sob o risco de deixar de ser cristianismo realmente. Entramos aqui na questão chave que nos põe a anagogia2. Se existe uma compreensão superior da tradição religiosa e filosófica, de que maneira existe uma continuidade no tempo e no espaço? E sobretudo: como, segundo as aparências, pode esta perder-se?. Se existe uma óbvia continuidade histórica, de que maneira se produziria a continuidade viva da iniciação?
Existe uma ambiguidade aqui exprimida por Marinho ao referir-se à situação do homem no presente respeito dos conhecimentos que lhe seriam necessários3:
“A confiança dos grandes filósofos matemáticos e religiosos, como Pitágoras e Leibniz, em conciliar as duas vias [refere-se à filosofia como “amor à sabedoria” e como “ciência das ciências” é adequada ao ensino da filosofia e à educação filosófica, mesmo quando, como hoje ocorre, não tenhamos saber ou formação para plenamente a garantir” .
E mais adiante ainda:
“…que nos falta hoje saber e informação para encontrar a convergência e harmonia entre os diversos e os opostos neste vasto domínio onde a unicidade do saber e a insondável pluralidade nos aparecem em insanável divergência e conflito A situação atual do homem é, com efeito, na ordem do espírito como em mais práticos domínios, a de uma imensidade de possibilidades e recursos sem nexo ou intrínseca relação harmoniosa”
Hesito em considerar este “hoje” do que fala Marinho como circunscrito exclusivamente a este tempo. É o mesmo “hoje” da ignorância universal, no tempo e no espaço, que condena (democraticamente) a morte a Sócrates ou se decide por Barrabás. O contexto em que se exprime o filósofo português esta claramente limitado a uma audiência de professores e é perfeitamente compreensível que Marinho reflita deste modo. Modo que não seria plenamente coerente considerado em termos mais dilatados ou em relação estrita com o seu próprio pensamento. Porque se há uma via iniciática que atravessa as limitações do historicismo, ou corre dum jeito vivo, em que sentido “hoje” saberíamos menos que ontem, ou ontem saberiam mais que hoje. Quem seria o sujeito desse saber ou saberes? Se a sabedoria é o que liga com a consciência do Absoluto, se esta da-se no interior dum magistério espiritual de homens vivos, tal e como defende Marinho, de que modo pode perder-se a efeitos práticos, para além dos nominalismos e das formas exteriores?. É um problema intempestivo, como diria Nietzsche, que cada homem deve resolver por si mesmo ainda que não solitariamente. É também uma questão não só intempestiva senão intemporal ou eterna. Vale a pena lembrar as Teses de filosofia da história de Walter Benjamin: o pensador judeu-alemão certifica a maneira en que o historiador historicista (mas que historiador não acaba sendo historicista?) fica preso da melancolia ao comprovar como a sucessão histórica é uma tautologia de um poder que se continua entre crimes e barbárie e onde, afinal, fica a conclusão inevitavelmente cheia de misantropia: sempre o poder se sucede a si mesmo4.Seria curioso que a barbárie tivesse um poder tão universalista e a sabedoria fosse tão inepta como para não encontrar a maneira de se continuar entre os homens. Seria preciso aqui termos em conta o aforismo metafísico: “O ouro falso existe porque existe o ouro verdadeiro”, aforismo que esta a altura do Parménides ou do Sofista, se se compreende com verdadeira profundidade.
Marinho clarifica o intemporal destes problemas no seguinte texto a propósito das religiões:
“Os cristãos e os não cristãos falam ainda em suas obras e discursos da crise da religião. Ora, se religião e cristianismo têm um sentido, a crise da religião é já muito antiga e anterior ao cristianismo, nem deixou de prosseguir com o próprio cristianismo e no seu seio”5
Vemos refletida aqui a ideia que no texto anterior se focava, aparentemente, numa outra direção. A intemporal presença de uma problemática que não é histórica mas substancial à condição humana. Como contraste caberia lembrar a S. Agostinho e a sua apreciação de que o cristianismo, no seu sentido essencial, existia antes de Cristo. Acho que tais considerações podem perfeitamente ser levadas não só ao âmbito estrito da religião mas ao da filosofia, pois agora podemos sentir que se encontram necessariamente interligadas em atenção à sua finalidade transcendente. É bom referir ainda algumas considerações filosóficas a este respeito que espero que possam formar uma imagem quase caleidoscópica do que estou tentando dizer, e que possam evitar qualquer equívoco:
Saber que o autêntico ateísmo equivale à teologia mística dos últimos cumes libertar-nos-ia de vários aspetos da falsa fé ou da descrença presunçosa. Verificamos, porém, aqui como noutros pontos como é difícil o mais simples…[e continua mais adiante em harmonia com Teixeira de Pascoaes Aquele que sabe como Deus reservou para si o autêntico ateísmo, torna-se, e por isso mesmo, infinitamente reservado mas muito atento perante os ateus e perante toda forma de descrença6.
Quiçá toda a questão se reduza a essa dupla qualificação: “autêntico ateísmo”, ainda que simplesmente bastaria, segundo já se vê, com ser autêntico.
“A história, esse romance do passado, é, todavia, necessária àqueles cujo espírito se não libertou para a busca direta da verdade”
Desde este ponto de vista resulta verdadeiramente difícil estabelecer critérios supostamente objetivos da experiência da verdadeira espiritualidade, tal e como o pensamento comum costuma formular e pretende exigir, sem fazer uma investigação comprometida que necessariamente ameaçaria o seu “estatus”.
O que esta em jogo é a compreensão da tradição desde a sua realidade efetiva, realidade efetiva que parece sempre discorrer através de uma diversidade de formas de manifestação que não são unificáveis a partir de um processo de intelectualização mas a partir de uma compreensão de outra ordem. Se admitimos a necessidade de um magistério espiritual que dá sentido à inevitável caducidade da filosofia ou da religião (desde o momento em que estas mesmas são concebidas como veículos, mais que como fins propriamente ditos) o primeiro ideologema que é preciso destituir é precisamente aquele que encerra dito magistério numa limitação histórica (no melhor dos casos) ou numa forma institucional ou mesmo pessoal determinada, mas ao mesmo tempo é preciso reconhecer a necessidade de uma cadeia iniciática que o mantenha vivo ao longo do tempo. A razão é muito simples: se a sabedoria existe, esta só tem sentido em homens concretos, vivos, e não em abstrações mais ou menos elaboradas. Se o magistério espiritual deve cumprir a sua função não terá menos necessidade de relacionar-se com todos os âmbitos da existência e constituir assim uma forma de comunicação permanente, em diferentes níveis, que lhe permita levar adiante as suas finalidades. É algo que não se improvisa, que não depende da genialidade tão cara aos românticos, e também algo que não pode subsistir como um ato individualista: se há algo que a própria noção de uma tradição iniciática põe em claro é a continuidade trans-histórica de um legado confiado que não pode ser dilapidado nem apropriado por nenhuma religião, grupo, igreja, nação, pessoa ou qualquer outra instância. Pelo menos estas são as conclusões às que podemos chegar se fizermos caso aos diferentes espirituais que, procedentes de diferentes tradições culturais, têm exprimido uma e outra vez. Vejamos a este respeito o que diz Ahmad Yasavi, mestre espiritual de Ásia Central no século XIV:
“Através de toda a literatura dervixe encontrarás que dizemos reiteradamente que não nos concerne a tua religião ou o teu ateísmo.
(…)
O refinamento do homem é a meta e o ensino interior de todos os credos tem este objetivo. Para poder lograr pervive uma tradição transmitida por uma cadeia vivente de adeptos que selecionam candidatos a quem transmitir este conhecimento
Este ensino tem sido transmitido a homens de todas as classes. Devido à nossa dedicação à essência temos reunido, neste caminho, a todas aquelas pessoas que estão menos interessadas no externo e de essa maneira conservamos pura, e secretamente, a nossa capacidade para continuar a sucessão. Nas religiões dogmáticas literalistas judia, cristã, zoroástrica, hindu e muçulmana este elemento precioso perdeu-se (…)
Só quando conheças o Fator Superior, advertirás a verdadeira situação das religiões atuais e da falta de fé. E ainda esta mesma incredulidade é uma religião com a sua própria forma de crença”7
Estas mesmas considerações ou análogas podemos encontra-las nas antologias realizadas pelo estudioso das civilizações orientais, Thomas Cleary. Especialmente no que respeita à transmissão interior do budismo e do taoísmo. Cleary evidencia, através dos textos, o verdadeiro esforço e continuidade dos mestres por manter a viveza da tradição numa renovação permanente. As características de todas estas escolas são similares mas fica patente a necessidade e o ênfase por superar as formas culturalistas. Por exemplo, mentres a influência cultural do zen é enorme, os mestres que renovaram a prática sempre são extremamente críticos com este uso meramente cultural (artístico, literário, etc).
Um outro exemplo contemporâneo do estudo da tradição, atendendo à sua hermenêutica própria, está em Henry Corbin. Particularmente, e na direção que estamos tratando, o ensaio intitulado A iniciação ismaeli ou o esoterismo e o verbo8 Corbin comenta um texto do S. X intitulado “O livro do sábio e o discípulo” em que é posta em toda a sua nudez o problema da transmissão iniciática do legado espiritual, que as tradições literalistas, neste caso do Islão, pretendem limitar à condição histórica do profeta Muhammad ou aos seus sucessores imediatos, sem ter em conta a tradição renovada dos hermeneutas espirituais, os Amigos de Deus, a Walayat. O que aqui se exprime de um jeito radical e com uma viveza dramática é a sempre presente função dos Amigos (wali), velados ou ocultos9 mas inevitavelmente presentes em função de um desenho cósmico, como equidade divina.
Todas estas informações permitem focar a ideia de uma transmissão espiritual através de um exercício que vai bastante além da mera reflexão filosófica à beira do fogão tranquilo e sábio, como diria Marinho.
Seria agora interessante retomar algumas frases do nosso filósofo a propósito de algo que também nos permitiria conectar com o direito natural espinoziano. Trata-se do texto intitulado Providência e estado que reproduzo a seguir:
“Há uma verdadeira política que é o processo pelo qual os homens se revelam, coexistindo, as suas possibilidades e criam as condições para realizá-las e as realizam. E há um artifício político pelo qual o homem, para chegar por milagre alheio àquilo à que só pode chegar por próprio esforço, criou, em substituição da oculta e suave vidência de Deus, a pomposa e degradante providência do Estado”
Uma das ideias presentes no contexto da Modernidade consiste em fazer que a “pomposa e degradante providência de Estado” se converta em artigo de fé. Os resultados parecem ter levado a certo pessimismo a Marinho quanto ao destino terrestre do homem. De qualquer maneira que o foquemos a questão está em saber se essa providência pode realmente substituir a “oculta e suave vidência de Deus” ou não. Se a resposta é negativa, como penso que deve ser, será preciso não só informação mas uma modificação da mentalidade à hora de focar o esforço filosófico. Restituindo e reconduzindo a experiência filosófica até o limite das suas possibilidades, para compreender a inutilidade de continuar moendo o já moído. Chegados a certo limite do pensamento é preciso perceber-se da insuficiência da reflexão respeito da formulação socrática do “conhece-te a ti mesmo”. A atitude filosófica recorda aqui, em muitos casos, ao Barão de Munchausen tentando sair do poço apanhando-se a si mesmo pelos cabelos. Um complexo de autossuficiência que denota uma impotência patente. Incapacidade que não pode ser resolvida enquanto a forma seja mais importante que o fundo, por utilizar velhas palavras que são facilmente refutáveis, é claro, aos filósofos.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA PARA ESTA COMUNICAÇÃO:
Marinho, José, Filosofia: ensino ou iniciação?, 1972, Lisboa.
Aforismos sobre o que mais importa, 1994, Lisboa.
Ensaios de Aprofundamento e outros textos, 1995.
Corbin, Henry, El hombre y su ángel, 1995, Destino, Barcelona.
Shah, Idries, El camino del sufi, 1992, Paidós, Barcelona
Ali-Shah, Omar, Pensamientos y conversaciones, Madrid, 2004.
Durant, Gilbert, Ciencia del hombre y tradición, Paidós, 1999.
Cleary, Thomas, Antologia zen, Edaf, 1994.
1 José Marinho, Ensaios de Aprofundamento e outros textos, Lisboa, 1995.
2 Para Marinho a anagogia revela-se como “aquela forma de educação sem limite nem fronteira em que mitos e poesia, em que a mística, a religião e tudo quanto não tem ou a quem não basta nome ou palavra, vem corresponder ao alvo supremo”. Digamos já que isto se corresponde com a noção de uma teosophia, uma santa sabedoria que liga a consciência de uma tradição iniciática, portanto, transhistórica.
3 Filosofia: ensino ou iniciação?, Lisboa, 1972.
4 Foi Aristóteles o que falou da melancolia dos grandes homens. Seria interessante discorrer sobre este sentimento em relação ao poder e à tirania. Os que não são grandes homens podem experimentar outros sentimentos: humor e ironia. Sócrates até foi o personagem d’As Nuvens de Aristófanes. Seria interessante seguir as vicissitudes dos verdadeiros sábios em relação à comédia, a ironia e o humor. A ironia seria o momento exterior e social de um sentido do humor que é realmente riso, que é o segredo profundo do sábio. Existe ainda uma tradição de sábios que se proclamam idiotas. São os discípulos do inefável Nasrudim: quem nunca disse nem dirá a verdade!
5 Aforismos sobre o que mais importa, Lisboa, 1994
6 Ibid.
7 Idries Shah, El Camino del sufi, 1992, Paidós. Idries Shah era considerado como o mestre sufi da época. Faleceu em Londres em 1996. Neste livro podem encontrar-se múltiplos textos de mestres clássicos e entrevistas a mestres contemporâneos.
8 Henry Corbin, El hombre y su ángel. Iniciación y caballería espiritual, 1995, Destino.
9 Esta ocultação pode ter múltiplas formas mas a mais evidente é devida à negação que o homem comum, e sobretudo religioso, realiza. É a própria negação a que “oculta” ao Amigo. A superstição comum diz algo assim: “os Amigos de Deus podem existir mas nunca aqui, ao meu lado”.
Nota do autor: Este texto foi apresentado no simpósio comemorativo do centenário de José Marinho em 2004 na Faculdade de Letras do Porto. Foi publicado no livro “Repensar José Marinho” em 2005 na Ed. Campo das letras
Fotografia de capa por José Lorvão.
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