Há quem diga que o dinheiro é o afrodisíaco por excelência.
E há relações amorosas que foram sempre uma espécie de campo de batalha. Por vezes, o desejo de subir na vida foi uma alienação ao serviço do bem-estar.
“Quem é? O senhor é fotógrafo?”
O telefone tocou. O som do obturador enchia o pequeno estúdio. O fotógrafo tinha reservado aquela manhã para duas sessões de trabalho que uma agência de moda lhe pediu. A modelo tinha dezanove anos, e parecia ser apenas mais um rosto inocente que contava com o aval de uma editora de moda espanhola. Aquela sessão começou há cinco minutos, mas o número de poses era uma prova em crescendo. O mundo ficava no exterior daquele estúdio, o mundo e seus cheiros, as discussões sem dó e sem piedade. Lá fora o mundo dava cabo de gente idealista, franca, e um tormento de contratos de trabalho fazia correr o sangue daquela gente mais jovem. Ao longo de uma dúzia de sarjetas há sangue de jovens e cinza de cigarros, que se fumam pacientemente. O corpo da modelo era objecto de arte que ia rodando, a par de uma série de efeitos das luzes. Érica sorria no momento de ensaiar uma nova pose, e seus lábios mexiam, quais chamas no nevoeiro. O cabelo parecia um leque nas mãos de uma rainha sem nome. O rosto tornou-se mais grave à medida que o toque de um telefone ia enchendo o estúdio. Érica olhava para o fotógrafo, mas não encontrou neste nenhum vislumbre de desassossego. O toque do telefone não parava, uma marcha de vibrações e de batidas. Os flashes da máquina fotográfica incomodavam aquele olhar pequeno, que desejava um momento de diálogo ou uma pausa. O fotógrafo deslocar-se-ia, então, à secretária de madeira. O toque de telefone, qual eco de um passado, pára. Érica sentir-se-ia como uma observadora no instante e lugar adequados, sem pressão e sem desconforto. Uma conversa de outrem é um episódio desta vida comum, a crítica de vozes, de palavras que se seleccionam, de erros que são provavelmente alvo de remendo. O número de vezes que se interrompe o interlocutor, assim como a comparação entre pronúncias, é um jogo de autocrítica do qual poderá surgir um traço de alegria. Érica estava a sorrir de pé, e a sua mão expôs pouco a pouco o mamilo esquerdo.
O fotógrafo continuava a fazer o seu trabalho. Da boca do fotógrafo não saía nenhuma palavra, e a modelo deixou cair completamente a camisa xadrez. O peito era assimétrico, um sinal de cada lado. O fotógrafo abrandou o ritmo de trabalho, e parecia esboçar um sorriso. Érica riu-se antes de tapar o peito com as mãos e alguns anéis. O telefone ainda tocava, e Érica deitou a língua de fora em direcção à secretária.
“O telefone.”
“Pode ser uma boa notícia”, disse Érica.
“Ninguém dá isso por telefone.”
“Há excepções”, disse Érica passando loção hidratante no pescoço.
“Ou é trabalho ou é oxímoro.”
“É o quê?”
“Conhaque envenenado, prenda maldita, por exemplo.”
O relógio marcava 10 horas, o fotógrafo pousou a máquina fotográfica verde, e deslocou-se à secretária. Por sua vez, Érica decidiu preparar café para ambos.
“Sim?”
“Quem é? O senhor é fotógrafo?”
“Eu sou…”
“Hoje seria possível marcar a produção de um book pessoal com o senhor?”
“Eu não vou trabalhar à tarde, e tenho a manhã preenchida. De momento não estou a produzir books pessoais.”
“O senhor deve ter só contratos com empresas, é o triunfo do dinheiro…”
“É uma maneira de ver a coisa. Eu tenho aqui dois trabalhos até ao final da manhã, e o tempo é dinheiro.”
A conversa por telefone durou cerca de 10 minutos. Embora o café estivesse frio, o fotógrafo bebeu-o com lentidão. Sem que lhe tivesse perguntado nada, o fotógrafo contou a Érica os detalhes daquele seu trato. Havia na voz uma dose de espanto e apreensão, e um tique tomou conta das mãos. Érica estava a ouvir o fotógrafo com atenção, e sorria, sem desejar quaisquer perguntas. A mulher mostrou ser teimosa, oferecendo por fim 2000 euros para a produção de um book pessoal, que, sempre que o fotógrafo produzia isso, custava 150 euros. Caso o fotógrafo aceitasse aquele trabalho teria de cancelar a segunda sessão daquela manhã. Além disso, a mulher exigira que a produção do seu book tivesse lugar na sua própria casa. Era uma questão de logística, e o fotógrafo aceitou sair do seu estúdio de fotografia.
Érica quis ajudar o fotógrafo na chamada para a modelo daquela sessão a excluir. Uma espécie de álibi, uma chamada dramática de quem tinha de acompanhar uma mulher ao hospital mais próximo. No fundo, a sã consciência dita que se amparem aqueles que desfaleceram, a responsabilidade é entregue à pessoa que vê ou sente o conflito. Érica sorria com um brilho no olhar, a derradeira série de fotografias agradou a ambos, e do estúdio ao carro foi uma marcha de atrapalhação. A distância era insignificativa, mas a presença de alguns documentos e de equipamento fotográfico impunha dificuldades. E até à entrada no carro o discurso de ambos era montado com exactidão, simulações de um espectáculo que chegava ao público em casa. O diálogo abrandava-lhes o passo, e braços sem controlo produziam uma visualidade com circunferências da misericórdia feita corpo.
Alguns vizinhos de trás espreitaram a cena que tinha lugar naquela rua. Havia palavras de inquietação e comentários sobre aqueles jovens que alcançavam a segurança do carro. Então, o fotógrafo pisou o acelerador rua abaixo, o fumo do escape espalhava-se com rapidez, era uma linha de substâncias no ponto de fuga.
O fotógrafo sorria timidamente para Érica. Mas na cabeça do fotógrafo a voz da sua nova cliente parecia imprimir alguma familiaridade. Há vozes idênticas, e há gente capaz de fazer imitação de vozes com pouco esforço. Por vezes, o timbre de uma voz poderá assolar mais do que um instrumento de tortura.
“Quem é? O senhor é fotógrafo?”
(…)
**
Fragmento do conto “Vedação” de A Cor Verde, obra que conquistou o PRÉMIO LITERÁRIO GERMANO SILVA (ROTARY CLUB DE PENAFIEL), 2018, e esta obra é composta por dois contos, “Vedação” e “Casebre”.
Jaime Soares nasceu a 14 de Janeiro de 1987, em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas (Português/Inglês) e mestre em Estudos Anglo-Americanos (Literatura e Cultura), pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Jaime Soares apresentou algumas comunicações em conferências no Porto, em Braga e em Boston (neste último caso, in absentia). A revista da Don DeLillo Society inclui um artigo da sua autoria intitulado “Don’t blame the players, blame the ‘system’: a systemic reading of Don DeLillo’s The Names” (2017). Por outro lado, a Revista Germina e a Revista TriploV, de Artes, Religiões e Ciências, contam com textos da sua autoria. Atualmente, Jaime Soares trabalha na indústria têxtil, lê e escreve nas horas vagas.
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