Entre finais do século XI e princípios do século XII, na região que corresponde hoje ao sul e sudoeste de França (Provença, Aquitânia, Gasconha, Toulouse, Limousin, Auvergne, Delfinado), tem início um dos movimentos literários e culturais mais importantes e fecundos do cultura europeia, a chamada poesia provençal. Escrevendo e cantando em “língua vulgar” (a língua do “vulgo”, no caso, o provençal ou occitânico) e já não em latim, esse grupo de músicos-poetas, conhecidos como trovadores, constrói igualmente os alicerces sobre os quais se vai edificar não só toda a poesia medieval europeia dos dois séculos seguintes (incluindo a galego-portuguesa), mas toda a poesia ocidental posterior.
Trata-se, na verdade, de um temps novel, como canta o primeiro trovador conhecido, Guilherme, IX duque da Aquitânia e VII conde de Poitiers, numa das suas mais célebres composições (a primeira desta curta antologia), um tempo onde a poesia e o canto inventam uma refinada cultura profana (exterior à ordem eclesiástica), em formas artísticas inovadores e magnificamente trabalhadas, mas também na definição de novos valores de sociabilidade, nomeadamente no que diz respeito à arte de amar, de que o fin’amor (o “amor cortês”, numa tradução simplista) é o elemento mais conhecido. Durante os dois séculos seguintes, o Sul de França, então politicamente autónomo do Norte, e dividido em territórios semi-independentes onde se multiplicam os castelos e as cortes de pequenos ou grandes senhores feudais, vai conhecer uma brilhante civilização, que os seus numerosos e talentosos trovadores e jograis vão dar a conhecer a toda a Europa.
Disseminando uma nova cultura e uma nova mentalidade, muito particularmente no que diz respeito ao amor e à figura da mulher, mas também, convém não esquecer, no que diz respeito à reivindicação de um papel político ativo para a poesia (de que são testemunhos os numerosos sirventeses satíricos e políticos que nos chegaram), este canto novo em occitânico transforma-se assim no modelo artístico que, de forma mais ou menos gradual, em breve passará a ser adoptado pelos poetas e criadores de toda a Europa, agora em língua própria – ou “cada um em seu latim”, para citar de novo a cantiga de Guilhem de Poitiers antes referida. Desta forma, pertencendo aos trovadores (ou aos trouvères franceses e aos minnesängers alemães e húngaros) os mais antigos textos literários (ou mesmo, textos, simplesmente) em língua vulgar, uma parte significativa das literaturas europeias modernas têm na sua génese a poesia trovadoresca provençal.
Curiosamente, na raiz deste movimento está uma língua, o occitânico ou língua d’oc, que, embora não tenha desaparecido, é hoje uma língua sem expressão nacional e claramente minoritária. Na geografia política e linguística da Europa do século XII o panorama era bem diferente, como vimos. Mas o facto é que esta circunstância não deixou de contribuir para o destino futuro da grande arte provençal. Um futuro desde logo condicionado pelas alterações político-religiosas que têm lugar no século XIII no sul de França, sujeito, a partir de 1208, à ação da violenta da cruzada contra a chamada heresia cátara, lançada pelo papa Inocêncio III (que cria então o tribunal da Inquisição), pretexto para a invasão militar levada a cabo pela dinastia francesa dos Capetos, e de que resultou a definitiva integração destas regiões na França do norte, em 1244. A gradual destruição das brilhantes cortes dos poderosos senhores provençais que esta nova situação acarreta, obriga também à dispersão mais ou menos definitiva dos trovadores e jograis que as animam. Culturalmente, é um movimento enriquecedor ao nível europeu, uma vez que vai potenciar a eclosão ou consolidação de outras escolas trovadorescas, bem como a sua posterior transformação em formas novas, de que o dolce stil nuovo italiano é o exemplo mais perfeito. Trabalhando a partir das formas provençais, que muito admira, e das formas inovadoras delas recentemente derivadas (como a passagem do son provençal ao soneto, ou pequeno son,Dante (1265-1321) inaugura o “novo tempo” que marcará a literatura e a cultura da Europa nos séculos seguintes, um tempo que põe fim ao “tempo novo” da poesia provençal, cujo destino passa a estar em grande parte ligado ao da sua língua, minoritária e quase esquecida. Na Europa do Renascimento, o canto dos trovadores occitânicos, suscitando muito embora o interesse de alguns eruditos humanistas (como o italiano Colocci), é já praticamente desconhecido. E será só a partir de inícios do século XIX que a situação começa a alterar-se um pouco, muito por ação da filologia romântica oitocentista, que recupera os textos, mas deles extrai quase sempre uma vulgata simplista, centrada na equívoca questão do “amor cortês” (expressão da autoria de Gaston de Paris, e datada de 1883). Já no século XX assistimos a um renovado interesse pelo canto provençal, tanto por parte de estudiosos e especialistas, quer da literatura, quer da música, como por parte de um público mais alargado. Para este alargamento contribuem também alguns grandes poetas contemporâneos, como Erza Pound, que não só traduz para inglês numerosos cantigas, como explicitamente faz da lírica occitânica uma das grandes matrizes dos seus Cantos. Seja como for, e sendo hoje efetivamente difícil de ler na sua língua original, a magnífica poesia dos trovadores provençais está ainda longe de ocupar o lugar no cânon literário e cultural ocidental que a sua qualidade e importância merecem.
Em termos gerais, a lírica amorosa (na forma da cansó, cançon, chançon – a grafia varia), e a poesia satírica e de intervenção política (o sirventês) constituem os dois grandes eixos do canto trovadoresco provençal. E se, em ambos os casos, o brilhantismo dos trovadores é indiscutível, o certo é que a canção de amor foi e continua a ser, de facto, o legado mais marcante dos provençais. “Proençais soem mui bem trobar/ e dizem eles que é com amor”, canta D. Dinis já em finais do século XIII, numa composição que é também um testemunho do modo como a canção de amor marcava decididamente, para os contemporâneos, imagem da lírica occitânica. Os versos de D. Dinis apontam certeiramente, aliás, para os dois fatores que explicam a riqueza e a eficácia artística da cançon provençal: por um lado, a mestria técnica e línguística com que os trovadores seguem as regras de uma nova e complexa a arte de trobar, e por outro, o facto de esta mesma arte de trobar ser inseparável de uma nova e refinada “arte de amar”, um universo de valores e regras de comportamento, plasmado no conceito genérico do fin’amor. Trata-se de um universo no qual a mulher passa a desempenhar um papel central, já que a ela cabe a definição e condução do jogo erótico, que o leal amador deve aceitar e a quem deve obedecer, como servidor. Vassalo de uma senhora (a dona ou midons) sempre incomparável, a voz que canta o seu louvor espera merecê-la pela sua fidelidade e lealdade. São estes os termos definem o fin’amor provençal, termos estes que, muito embora umbilicalmente ligados ao mundo e aos valores feudais (o serviço é o que deve um vassalo ao seu senhor, por exemplo), não deixam de configurar uma verdadeira revolução no que toca à conceção do amor e das relações entre os sexos no interior dessa mesma sociedade feudal.
Entendido como sentimento livremente aceite, o fin’amor opõe-se, de facto, não só aos tradicionais contratos sociais que, em regra, presidem, na época, às relações entre os sexos, nomeadamente no tocante ao casamento, mas opõe-se igualmente ao entendimento dessas relações em termos de pura satisfação de instintos básicos (o comércio sexual, que faz da mulher um puro e descartável objeto de prazer). Na verdade, se o amor cantado pelos trovadores é inseparável do desir (desejo), ele é também inseparável do serviço e da cortesia. Por seu lado a cortesia, emanando, obviamente (e como o seu nome indica), das cortes onde esta cultura nasce e se desenvolve, e sendo, assim, a marca cultural e socialmente distintiva de uma elite, é-o duplamente, uma vez que estabelece como linha de demarcação a distinção entre o fino amante e o homem vulgar, nos dois sentidos que o adjetivo ainda hoje tem: o homem do vulgo (os vilãos), mas também qualquer representante de uma nobreza primária e inculta. O canto de amor provençal, se é, pois, indiscutivelmente, uma arte aristocrática, tende a definir a aristocracia sobretudo em termos culturais: a nobreza (ou ricor) dos amantes é avaliada menos em termos de nascimento e de estatuto do que em termos de comportamento. De resto, e confirmando a importância da mulher nesta nova ordem cultural, convém ainda não esquecer que a poesia provençal conhece igualmente, e de forma inovadora, brilhantes autoras femininas, as trobairitz, cuja voz espelha, pelo lado feminino, este novo universo amoroso.
Nos trovadores da primeira fase do movimento, esta “arte de amar” é decididamente erótica, incluindo regras, fases e graus, num movimento quase iniciático, que começa no olhar e culmina no momento em que o servidor se transforma em drutz (amante). O encontro no quarto ou no jardim, o beijo, o corpo nu feminino (ou masculino, na voz das trobairitz) fazem abertamente parte deste universo poético-amoroso, quer como objetivo diferido em esperançoso sofrimento (até à ansiada mercê da senhora, nomeadamente através da concessão do assai, ou prova), quer como memória efetiva do amor plenamente realizado, ainda que pontual. As alterações político-religiosas que têm lugar no século XIII no Sul de França, e a que já aludimos, contribuem, de certa forma, para uma mudança de tom no canto trovadoresco provençal mais tardio, que gradualmente se vai centrando na expressão do desejo insatisfeito e do sofrimento (o que será a coita galego-portuguesa) do servidor de uma senhora cada vez mais distante, inacessível e abstrata. Mas, mesmo nesta época mais tardia, a cançon provençal nunca abandona totalmente a matriz que encontramos já em funcionamento em Guilherme IX e nos primeiros trovadores, e de que fazem parte um conjunto de valores que incluem a joi (a alegria, o prazer, a exaltação amorosa) e a jovens (a juventude, não tanto no sentido da idade, mas no sentido do ímpeto generoso e da capacidade de entrega desinteressada).
Resumir a poesia provençal à canção de amor e à “arte de amar” que nela se desenvolve seria, no entanto, não só redutor, como significaria ainda passar ao lado de alguns importantes aspetos da lírica occitânica, e até dos que mais apelam à nossa modernidade. Entre esses aspetos está o facto de muitas destas mesmas cançons serem obras mistas, que entrelaçam o canto do fin’amor com considerações de outro género, nomeadamente metapoéticas e políticas.
A reflexão sobre a “arte de trovar” e a discussão das suas normas ocupam, de facto, um largo espaço na canção provençal. Numa síntese muito breve, dois temas sobressaem neste debate: um deles, talvez o mais retomado, diz respeito à distinção entre o trobar clus (fechado, obscuro) e o trobar leu (leve, fácil). Entre os adeptos da complexidade e a subtileza da expressão (como Marcabru ou Raimbaut d’Aurenga, mestres nesta arte) e os adeptos de uma poesia clara e límpida (como Jaufré de Rudel ou Bernart de Ventador) estabelece-se assim um interessante diálogo, cuja atualidade é ainda manifesta. A tenção (cantiga dialogada) entre o mesmo Raimbaut d’Aurenga e Girault de Bornelh, incluída nesta antologia, poderá ser uma boa introdução a esse debate. Trata-se, aliás, de uma composição onde o caráter misto, acima referido, é muito nítido, já que ao diálogo sobre a “arte de trovar” estabelecido pelos dois nas primeiras estrofes se seguem (e sem transição aparente) considerações sobre as respetivas damas, que os ocupam nas estrofes finais. Relacionado com o trobar clus, mas partindo de pressupostos distintos, é o trobar ric, um modo que assenta essencialmente na utilização de rimas caras, ou seja, rimas pouco frequentes e por isso mesmo difíceis. O mestre incontestado do trobar ric é o grande Arnault Daniel, cujas cantigas são quase todas filigranas sonoras extraordinárias (tornando difícil ou mesmo impossível a sua tradução).
Para além das reflexões metapoéticas, a canção pode incluir ainda abundantes considerações políticas, resultando naquilo que os especialistas habitualmente designam como canção-sirventês. Neste registo misto ou num registo único do sirventês, o canto provençal afirma-se também, de facto, como uma declarada arte de intervenção. O comentário à atualidade política e social do seu tempo, na forma da crítica, do aconselhamento, do incitamento à ação ou do riso satírico faz parte integrante da atividade trovadoresca, que desta forma se afirma como força socialmente ativa, propagandistica ou moral. O desassombro com que muitos trovadores e mesmo alguns jograis erguem a sua voz crítica no seio de uma sociedade feudal e aristocrática é um sintoma do espaço próprio que a arte trovadoresca tinha já conseguido desenhar, se bem que não possamos esquecer que, como em todas as épocas, os poderes instituídos conheciam a força da propaganda, e viam, portanto, no canto um instrumento priveligiado de combate e defesa das suas posições. Seja como for, pelo sirventês passam quase todos os mais importantes acontecimentos da Europa da época, dos conflitos entre senhores e reinos à cruzada contra os cátaros, da chamada reconquista ibérica às cruzadas de Oriente, para citar apenas as grandes linhas gerais. Do tom apocaliticamente moral de Marcabru à violência militar de Bertran de Born ou ao riso satírico e pessoalizado de muitos outros, o sirventês occitânico mostra, tanto como a canção de amor, a versatilidade da arte trovadoresca e o extraordinário talento dos seus autores.
A importância da poesia dos trovadores provençais não tem correspondência na efetiva leitura que hoje em dia dela se faz. Escrita, como disse, numa língua praticamente sem falantes há vários séculos, ela é, de facto, mais referida do que efetivamente conhecida. Em Galego, a lacuna foi, pelo menos parte, recentemente preenchida com a publicação da cuidada edição antológica bilingue de Darío Xohán Cabana, Os Trobadores de Occitania (Edicións da Curuxa, Romeán, Lugo, 2011). Em português, as únicas traduções atualmente disponíveis são, ao que julgo saber, os textos incluídos na antologia bilingue de Segismundo Spina A lírica trovadoresca (Editora da Universidade de S. Paulo, 3ª ed., 1991), as traduções (relativamente livres) de algumas composições de Raimbaut d’Aurenga e Arnaut Daniel que os irmãos Augusto e Haroldo de Campos publicaram em 1982, e a edição bilingue, da responsabilidade de Arnaldo Saraiva, da obra de Guilhem IX da Aquitânia (Assírio e Alvim, Lisboa, 2007).
As traduções que aqui se apresentam, e que procuram ser apenas uma reduzidíssima amostra da vasta e diversificada lírica provençal, a partir de alguns dos seus mais ilustres trovadores (de diferentes fases) e de algumas das suas mais famosas composições, fazem parte de uma edição antológica maior que estou a preparar, a ser publicada nos próximos tempos. Procurando também colmatar uma lacuna em Português, elas procuram sobretudo incitivar a curiosidade que poderá conduzir a uma leitura mais abrangente.
Uma curta palavra final sobre os critérios que segui. A poesia dos trovadores provençais, arte performativa essencialmente oral, como disse, chegou até nós através de recolhas coletivas, os cancioneiros, elaborados já numa fase tardia (finais do século XIII ou século XIV), e que nos transmitem, no seu conjunto, um pouco mais de 2500 composições, muitas delas acompanhadas de notação musical. O elevado números dos manuscritos sobreviventes (cerca de 40, se contarmos apenas os grandes cancioneiros, ou 95, se incluirmos as pequenas recolhas autónomas e as folhas volantes), juntamente com a diversidade da sua origem (Itália, donde provém a larga maioria, Occitânia, França e Catalunha) testemunha o interesse pelos textos em si, numa fase em que a leitura seria já a atividade dominante. Mas dificulta igualmente a edição moderna das composições, uma vez que são inúmeras as variantes, textuais, gráficas, ou mesmo atributivas (a autoria das composições).
As versões que aqui se apresentam são da minha responsabilidade. Para os textos originais, foram consultadas as edições de Martin de Riquer, Los trovadores, Historia literaria y textos, 3 vols., Barcelona, Ariel, 1975 (a edição mais completa atualmente disponível em livro, e de que tomei também as datas relativas à cronologia dos autores ou da sua presumível atividade), a referida edição de Spina, a de Gérard Zuchetto e Jörn Gruber (Le livre d’or des troubadours, Les Éditions de Paris, Paris, 1998) e ainda a edição de Darío Cabana (que tem em conta numerosas edições monográficas recentes), para além das várias edições online atualmente disponíveis, como http://www.trobar.org/troubadours/index.php (onde podem ser lidos numerosos trovadores, na versão original, com traduções, para inglês de algumas cantigas), e ainda os projetos Corpus des Troubadours e Trovatori.
Procedi, dados os diferentes critérios editoriais destes vários editores, a uma uniformização da grafia, procurando simplificá-la com vista a facilitar a leitura atual dos textos, sem desfigurar o que podemos pensar ter sido a sonoridade do Occitânico medieval. Uma palavra particular no que toca à acentuação que proponho: concordando em quase tudo com a cuidada justificação que Darío Cabana expõe, na introdução à sua antologia, relativa às opções gráficas e ortográficas que seguiu, faço notar que optei por seguir aqui o sistema de acentuação do Português atual (diferente Galego, do Castelhano e também do Francês), nomeadamento no que toca aos acentos agudo e grave.
Quanto à tradução propriamente dita, procurei, sempre que possível, manter-me próxima do original, tanto do ponto de vista linguístico como poético (mas, neste caso, desistindo, desde logo, da rima). Tratando-se de uma tarefa quase impossível, pode o leitor escolher usar as traduções como mero suporte para a leitura dos textos originais. Como defesa dos textos traduzidos, só me resta alegar o verdadeiro prazer que este trabalho me deu.
Graça Videira Lopes
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