aroma de pinheiros:
um lagarto desliza veloz
pela pedra quente
Su Dongpo
Cadernos da Islândia é uma panorâmica pensante e viva, o reflexo de um paraíso que anuncia, através da palavra, um universo de sabedoria e experiência, mas também a sua própria impotência, ou a sua finitude. Poucas viagens são tão fundas na percepção e expressão daquilo que nos é verdadeiramente relevante e transcendente. Uma experiência estética que prolonga-se, claro, até ao ético, ou, por outro lado, o poeta que perante o contacto com o belo desenterioriza o seu próprio sujeito; uma retirada de si próprio que é essencial em termos de justiça, uma justiça sob esse exterior que ele recria, assumindo uma posição lateral, em vez de se impor sobre o caminho passando a ser ele mesmo uma figura que se retira em benefício do outro, dos outros. É essa, pois, desde logo, uma experiência que se afigura fundamental em Cadernos da Islândia, ir contra o predomínio narcísico dos nossos dias, ou como refere Alberto Pereira no prefácio: o poeta escreve com o intuito de pôr o ego em contraluz para se emancipar de todas as matérias fúteis. Essas matérias fúteis que hoje se assumem como objecto de consumo, o sujeito adopta uma posição central, egoísta. Porque nenhuma política do belo é hoje possível, a ética da verdade que tanto em Platão como Aristóteles aspirava à beleza, que incluia a justiça entre o mais belo. Não é hoje possível aspirar à verdade do belo porque todas as formas de coerção ou de necessidade despojam a acção da beleza, o belo hoje não possui negatividade; perante o liso, o polido, a ausência de vincos, no fundo, com o excesso de positividade, passamos a recusar a estranheza, a alteridade, que se avalia pelo seu carácter imediato ou pelo valor de uso e consumo.
Considero que Cadernos da Islândia abre uma linha de fuga: a verdade e as formas de vida do homem livre, o poeta como ser pensante, assumindo-se como potência libertadora que nos reconcilia e que torna possível essa vivência com o mundo, que diminui a entropia e o nível de ruído. Por que a beleza e a verdade são a algo de muito exclusivo e de difícil alcance: é necessário engendrar uma totalidade harmoniosa. Sobre isso refere Hegel: a arte consiste em transformar em olho toda a figura em todos os pontos da sua superfície visível, de maneira que nesse olho a alma livre se dê a conhecer na sua infinidade interior. Essa alma livre e transfigurada que opera com a sua aura encantatória, mágica, invisível, gerando som e sentido produzindo em nós uma certa magia balsâmica ou curativa, uma terapêutica benfeitora que se erige sob o colapso eminente do espírito contemporâneo. Nesse elemento vivo que aqui figura, vincula e gesta, permanece um elemento insuperável que repõe o sentido às coisas e se prolonga no outro(s) instituindo quem sabe um novo mundo ao mundo. Dessa experiência o poeta sabe que é necessária a negatividade de ver-se comovido e arrebatado, a negatividade da vulneração perante o belo. A experiência que se assemelha a uma travessia em que temos de nos expor ao perigo: corresponderá à fundura ou salinidade dos seus lagos a dimensão do sofrimento de cada povo? (Pergunto-me).
O poeta sabe que não há poema sem acidente, não há poema que se abra como uma ferida, mas também não o há que não fira. Sem ferida, não há poesia nem arte. Por isso reinventa então os significados, as intenções, todos os juízos, todas as encenações, todos os gestos, todos os códigos. O sismo da saudade abala-nos de vez em quando, provocando o tumulto da multidão que vive dentro de nós, mas o ar é puro e tudo se regenera pela única fé verdadeira. Torna assim o seu acto criativo num acontecimento da verdade, gera um diferente, fecunda e por fim, é poetizante. Uma manifestação humana que se erige sob essa fenda tectónica onde nos descobrimos desabitados, no limiar da falência das palavras, nessa inexorável urgência de viver.
Texto lido em Aveiro na apresentação de Cadernos da Islândia, de Paulo Ricardo Moreira.
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