A Editora Urutau nasceu no Brasil (São Paulo) “no meio de uma atmosfera social propicia, numa explosão de debates à volta da poesia que engendrou o que é hoje a editora” afirma o seu editor Wladimir Vaz. Desde então, nos cerca de 200 livros já publicados, a imensa maioria de poesia, vêm promovendo um intenso e singular diálogo com a contemporaneidade, e o seu catálogo de autores revela isso mesmo. Editando na Galiza, Portugal e no Brasil a Urutau manifesta-se na sua diversidade cultural ímpar unindo sonoridades e gerações de poetas. Para Wladimir, a poesia deve sair de um status elitista, sem complexos de género e incorporar vozes LGTBQ, negras e negros, refugiados e indígenas. Hoje quisemos conhecer um pouco mais do seu instigante labor no mundo da edição:
São 4 anos de vida e 200 livros publicados. Conta-nos como surge a Editora Urutau?
De maneira mais concreta, a editora nasceu com fim da editora Medita (2011–2015). Quando trabalhei nessa editora conheci o poeta e editor Tiago Fabris Rendelli e a pesquisadora Ana Penteado e juntos decidimos montar a Urutau. Mas também sinto que a editora surgiu de uma atmosfera social propícia, em nosso entorno, naquele momento na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), havia uma explosão de debates ao redor da poesia, grupos organizando saraus em espaços públicos e reverberava naquele momento um desejo de juventude em conhecer o que cada um andava escrevendo, lendo e pensando, acho que isso tudo engendrou o que é hoje a editora.
A ideia de construir uma editora de poesia num tempo onde, segundo as últimas estatísticas, lêem-se cada vez menos livros em formato tradicional, pode ter alguma cota de risco?
Acho que abrir uma editora independente de poesia em qualquer época é um risco. O nosso tempo é bem duro, no entanto, ele também é mais plural, noto enquanto editor e leitor uma efervescência de novas vozes que até décadas passadas não eram ouvidas/lidas, eu acho belíssimo ver o movimento de poesia nas periferias das grandes cidades brasileiras, o movimento de escritoras e escritores LGBTQ, de poetas negras e negros, e indígenas.
E, no entanto, aquilo que parecia estar em descrédito (a edição de poesia) começou de repente a ser valorizada, o próprio livro enquanto objeto de valor, o desenho, o tipo de papel, os materiais usados…
Eu não sei se estava em descrédito, mas existia, em certa parte ainda existe, um imaginário construído que somente as grandes editoras conseguiam fazer livros de qualidade, acho que sempre tiveram iniciativas que fizeram livros belíssimos, mas os críticos, as livrarias e os prémios ignoraram.
As editoras tradicionais ficaram presas naquilo que dá efeito financeiro imediato, enquanto nós, as pequenas, não temos muito a perder
O facto das editoras independentes tratarem hoje com muito mais cuidado as suas edições e também os próprios autores faz com que aumente a confiança nos leitores?
Eu não consigo concordar contigo, primeiro, enquanto editor independente de poesia, eu sigo a tradição de Massao Ohno, um senhor que já nos anos 50 publicava livros de maneira independente e de muita qualidade no Brasil, ele foi o responsável por editar Hilda Hilst, Roberto Piva e Cláudio Willer. Destarte não sinto que estamos fazendo algo tão novo, no entanto, é válido ressaltar que as editoras independentes conseguem ter um catálogo em diálogo constante com a contemporaneidade, quando vejo os livros da Douda Correria, Saurobuks e Luna Parque, somente para citar três, me dá uma alegria imensa, cada título reverberante com o nosso tempo, acho que as editoras tradicionais ficaram presas naquilo que dá efeito financeiro imediato, enquanto nós, as pequenas, não temos muito a perder.
Em 2008, na Feira do livro de Frankfurt, os editores tiveram uma visão catastrofista, afirmando que em 10 anos não haveriam livros em papel; o que não sucedeu. Qual é a vossa relação com o digital, é possível essa convivência com o livro tradicional?
A primeira parte da pergunta me faz lembrar os textos dedicados a Maio de 68, onde se falava que a principal herança desse movimento era questionar as autoridades, a opinião dos editores ou CEOs que se reuniram em Frankfurt, não me importa muito, sou pequeno perto deles e sendo pequeno recordo do poema de Manuel de Barros: Que uma boneca de trapos que abre e fecha os olhinhos azuis nas mãos de uma criança é mais importante para ela do que o Empire State Building. Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear. Nesse ponto, para mim, a opinião de Nuno Moura, Elena Medel, Tiago Fabris Rendelli, Oriana Alves, Francisco Macías e Eduardo Lacerda são mais importantes do que os diagnósticos tendenciosos dos “de Frankfurt¨. E acerca da segunda parte, nunca tivemos demanda de leitores de livro digital de poesia.
Como é administrar um catálogo tão vasto como o vosso, a atenção dada às obras que já foram publicadas, a prospeção para novos autores e até mesmo a junção de várias gerações poéticas?
É uma dor e uma delícia, o catálogo da editora é vasto de vozes distintas e cada livro representa algum desejo, é uma delícia trabalhar o livro com os autores e estar lado a lado na busca de novos leitores e é uma dor ver que nem todos os livros terão atenção do público como merecem. Os livros publicados tentamos que sigam vivos através de relançamentos e críticas, revista como Palavra Comum, Triplov, Gueto e também críticos generosos e sem prejuízos com as editoras pequenas como Armando Requeixo, Daniel Salgado, Tomaz Amorim, são fundamentais para alcançarmos novos leitores.
Acho belíssimo ver o movimento de poesia nas periferias das grandes cidades brasileiras, o movimento de escritoras e escritores LGBTQ, de poetas negras e negros, e indígenas
Editam no Brasil, Portugal e na Galiza, conta-nos um pouco como é ser editor em âmbitos culturais tão ricos e ao mesmo tempo tão singulares.
Atualmente quem cuida da edição dos livros da Urutau no Brasil é o Tiago Fabris Rendelli, enquanto que na Galiza e Portugal cabe a mim fazer as edições, desde logo, é uma experiência singular ser editor estrangeiro nos dois países. Se por um lado, sinto que existe uma certa desconfiança de uma ala literária conservadora acerca da editora, por outro, é maravilhoso conhecer um pouco sobre a poesia contemporânea galega e portuguesa de perto. A minha sorte também é contar com bons amigos/conselheiros galegos e portugueses como Silvia Estévez Penas, Marcus Daniel Cabada, Maria Azenha, Maria do Céu, Elena Balboa, Maria Estela Guedes, Pedro Loureiro, Judite Canha Fernandes e Gil T. Sousa, são essas amizades poéticas generosas que me dão um apoio intelectual e afectivo para seguir em frente com a editora.
Dizes numa entrevista (Sermos Galiza) que na Galiza há “… un modo de ollar o mar, un modo de ollar a terra”, “por exemplo, a figura da avoa está moi presente na poesía galega”. Um brasileiro pode encontrar muitos símbolos próximos a si na poesia galega?
O Brasil é continental, somos leitores dos russos, alemães, gregos e tenho certeza que muitos brasileiros encontrariam os símbolos próximos de si na literatura galega, mas falando por mim, o que me encanta na literatura galega é aquilo ou modo de ver o mundo diferente do meu, sou antropófago a la Oswald de Andrade, quando eu falo do mar da Galiza é um mar diferente do meu, eu conheci o mar quando tinha 10 anos, antes dessa idade o mar era uma abstração, o mar na literatura e cancioneiro galego é um ente que até ¨dá bicos na areia¨.
Lutar para que a sensibilidade sempre sobreviva, ser íntimo da dúvida e chamar os pássaros com um sorriso
E a poesia galega devia ser mais lida nos países lusófonos? O que achas que os leitores teriam a ganhar?
Sim, será que alguém responde que não? Os leitores ganhariam um jardim e uma amiga confessional lírica com Silvia Estévez Penas, um olhar que viaja por muitas terras de Moncho Iglesias Míguez, uma metafísica poética com Marcus Daniel Cabada, um infinito com Manuel Miragaia, um livro de horas com Rebeca Baceiredo, um punk-beat diy com Alfonso Rodríguez Rodríguez, uma juventude orgiástica com Fátima N. Delgado, um tempo com Eli Ríos, um horizonte e um rugir de uma ausência com Arancha Nogueira, algo para ficar marcado com Cristina Corral Soilán, a medir uma areia com Gaspar Domínguez, dois hemisférios e uma lua com Yolanda López, um calendário com Noa Moreira, a experiência de não-maternidade de Patricia Meira e onde colocar as bombas com Ronsel Pan. Isso citando os editados pela Urutau, sem falar das cerejeiras de Quico, a cidade industrial de Yolanda Zuñiga, o não saber construir barcos de Tamara Andrés, a sonata brutal ou o vulcão de Olga Novo, um útero de cavalo de Lupe Gómez, os sete leões de Luisa Castro e as nuvens de Chus Pato.
Num tempo tão turvo como é aquele no qual vivemos, a sombra do fascismo que paira de novo sob as nossas sociedades, qual deve ser para ti o papel da poesia?
Dessacralizar & tirar a poesia de um status elitista, amplificar vozes que por séculos foram forçadas a se calar, incomodar os bons costumes, lutar para que a sensibilidade sempre sobreviva, ser íntimo da dúvida e chamar os pássaros com um sorriso.
E a Urutau, como a vês daqui a 10 anos?
Desejo que possamos seguir com a vontade de desafinar o ¨coro dos contentes¨, que o nosso catálogo tenha cada vez mais e mais poetas LGBTQ, negras e negros, refugiadas e indígenas — que possamos contribuir para que a poesia galega contemporânea atravesse o charco e se torne íntima dos leitores brasileiros.
Wladimir Vaz (1986) é descendente de caipiras com indígenas tupi-guaranis. É licenciado em Filosofia (IFCH/Unicamp) e mestre em Artes Visuais (IA/Unicamp). Foi editor da Editora Medita e da revista euOnça. Atualmente é editor da editora brasileira-galega Urutau e vive em Pontevedra.
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